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Gabriel Habib: A investigação prospectiva de associação criminosa

17 de maio de 2018, 6h33

Por Gabriel Habib

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É consabido que o objetivo da investigação criminal é a formação do conhecimento acerca de um crime praticado, para que se possa reunir elementos de prova que deem suporte à investigação criminal. A partir de um fato criminoso praticado, dá-se início a uma série de atos estatais investigatórios levados a efeito pela autoridade encarregada da persecução penal para que se chegue à conclusão acerca da materialidade e da autoria do delito praticado.

A persecução penal tem como finalidade a intervenção estatal para a obtenção de certeza, positiva ou negativa, do fundamento da pretensão punitiva derivada de um delito, um fato concreto, e destinado à aplicação de suas consequências jurídicas[1]. Trata-se de uma reconstrução histórica de um fato pré-existente, baseada e desenvolvida em raciocínio dedutivo, a partir de elementos pré-existentes no local onde o delito foi praticado, que formam o conjunto de vestígios deixados pela prática da infração penal, partindo-se do universal para o particular.

O modelo de investigação prospectiva, utilizado para investigar o delito de associação criminosa, não tem como objetivo a reconstituição histórica do fato delituoso, e sim a atividade presente e a antevisão do futuro. De forte pendor preventivo, a investigação prospectiva permite o conhecimento sobre uma realidade “que não constitui um passado estático que se pretende fixar ou reproduzir no tempo, mas sim uma realidade dinâmica e contemporânea, uma actividade em curso que se pretende interromper e neutralizar”[2].

Não obstante haja argumentos relevantes para a defesa desse modelo investigativo, percebe-se que ele causa uma inversão no modelo tradicional de investigação, a gerar exatamente a inversão de papéis, ou seja, ao invés de a investigação criminal ser feita a partir da prática de um delito com a finalidade de colheita de elementos nos quais se fundará a acusação, a investigação serve de meio para a obtenção de informações sobre delitos que serão praticados no futuro. Troca-se a atividade investigatória retrospectiva pela prospectiva.

Sustenta-se que a simples associação de pessoas já apresenta um perigo suficientemente grave para conturbar a paz pública e que o encontro das vontades individuais dos participantes dá origem a uma “realidade autônoma, diferente e superior às vontades e interesses dos singulares membros” e resulta em um “centro autônomo de imputação fática das acções prosseguidas ou a prosseguir em nome e no interesse do conjunto”[3], tendo em vista que a associação criminosa é uma fonte de perigo incrementado, uma vez que ela desenvolve uma dinâmica autônoma, que tem o condão de, por um lado, reduzir as barreiras inibitórias individuais e, por outro, reduzir de modo decisivo as dificuldades técnicas para a prática de crimes[4].

Entretanto, se é verdade que o tipo penal de associação criminosa traz como especial fim de agir a finalidade de cometer delitos, também é verdade que a investigação criminal que é feita sob esse delito tende a evitar a prática desses delitos futuros. Em outras palavras, a investigação criminal destina-se a interromper a associação criminosa, com a neutralização dos agentes, para evitar que venham a praticar outros delitos.

Deve ser questionado se esse modelo de investigação prospectiva é compatível com os princípios e dogmas do Direito Penal e se o delito de associação criminosa constitui um permissivo para a sua implementação, com visão prospectiva, como forma de obtenção de elementos de prova de futuros delitos sobre os quais não se tem sequer a certeza da efetiva ocorrência.

É verdade que uma associação criminosa pode representar uma fonte de perigo. Entretanto, a intervenção estatal somente pode ser legítima se houver um perigo real e concreto ao bem jurídico. A não ser assim, a simples invocação da configuração de uma associação de pessoas seria o suficiente para, de forma arbitrária, ensejar uma ilegítima interferência dos órgãos estatais no direito fundamental à liberdade, entre outros.

Sob o pretexto da suposta acentuada periculosidade de uma associação criminosa, inverte-se a ordem natural da persecução penal por conta da satisfação de um interesse estatal abstrato e hipotético, exercido por meio do jus puniendi. Com efeito, a ordem natural da persecução penal é a prática de atos investigatórios a partir da prática de um delito, isto é, a investigação policial, como busca de um elemento de prova da existência de um delito e de indícios de autoria, surge a partir da existência da prática de um delito. Primeiro, há a prática de um delito; depois, inaugura-se a investigação criminal.

Na investigação prospectiva realizada na associação criminosa ocorre justamente o contrário: primeiro, leva-se a efeito a intervenção policial a partir da reunião de pessoas, para, com isso, tentar encontrar elementos de prova que confirmem a futura prática de delitos por parte da associação criminosa. A existência de uma associação criminosa funciona como uma porta aberta para a investigação policial de futuros delitos que ainda não foram praticados ou que sequer chegaram à fase da preparação.

É evidente que, se houver indícios da prática de um crime, deverá haver a investigação policial. O que não é plausível é essa espécie de “carta branca” para a investigação da associação criminosa, pois não se investigam delitos que já ocorreram, mas, sim, delitos que ainda — talvez — ocorrerão, com base em um juízo hipotético.

Essa indesejada inversão da ordem natural da persecução penal parece presa à ideia de que o processo é apenas um meio para a satisfação do direito material, ideia essa que não mais se coaduna com o processo penal moderno. Com efeito, o processo penal moderno não pode mais ser encarado como mero instrumento para a aplicação do Direito Penal, para a satisfação do direito material, e sim como verdadeiro meio de garantia e de efetivação dos direitos humanos fundamentais do investigado, que funcionam como escudos que estão a protegê-lo contra o arbítrio estatal.

O processo penal não é um instrumento colocado somente a serviço da única finalidade de satisfação da pretensão punitiva estatal. O processo deve desempenhar a sua dupla função de, por um lado, tornar viável a aplicação da pena e, de outro, servir de instrumento de garantia dos direitos e liberdades individuais[5], tendo em vista que o Direito Processual não é outra coisa senão o Direito Constitucional aplicado[6].

A admissão desse modelo de investigação criminal prospectiva significa transformar o Direito Penal em um Direito Penal preventivo, isto é, um instrumento de controle preventivo, que terá a sua incidência independentemente de qualquer lesão a bens jurídicos. Trata-se de evidente instrumento de neutralização dos agentes, como forma de impedir que permaneçam soltos e pratiquem crimes, como forma de controle prévio de delitos que sequer foram praticados ou que poderão não ocorrer.

O Direito Penal surgiria como um raio neutralizador que visaria evitar que aquela associação de pessoas chegasse a praticar qualquer outro delito futuramente. Note-se que a investigação policial não teria como finalidade a reconstituição histórica do fato delituoso, mas, sim, a antevisão do futuro, e, a partir de uma visão prospectiva, figurar-se-ia hipoteticamente a prática de delitos futuros e, antes que eles viessem a ocorrer, neutralizar-se-iam os agentes como forma de interromper a sua atividade e de impedir que eles viessem a praticar os delitos para os quais estariam reunidos.

Com esse sistema de investigação, não há o que ser investigado, uma vez que ainda não há delito praticado. Na realidade, o delito a ser investigado ainda não ocorreu ou então sequer ultrapassou a fase da preparação. E, com isso, repita-se: o delito de associação criminosa serviria somente como uma porta de entrada para o Estado proceder à investigação criminal de delitos que ainda não ocorreram. Trata-se, portanto, de uma investigação reflexa, pois, sob o pretexto de investigar-se o delito de associação criminosa, busca-se a investigação de um delito inexistente, que somente será — se realmente for — praticado no futuro.

Tudo isso faz com que esse modelo de investigação criminal prospectivo encerre o exercício de uma finalidade de prevenção que não é típica do Direito Penal, destinado a evitar a prática de crimes futuros, com a tentativa de sua legitimação a partir da investigação de uma associação criminosa, não para investigar própria associação (pois dela já se tem notícia e prova de sua existência), mas, sim, para a investigação dos delitos que possam vir a ser praticados pela associação criminosa, desconexo de qualquer lesão ao bem jurídico tutelado.

Portanto, temos por ilegítima a técnica de investigação prospectiva desenvolvida nesse sistema de investigação criminal para os delitos associativos que tenta transformar o Direito Penal em um instrumento de controle preventivo.


[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, vol. I. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 29.
[2] BRAZ, José. Investigação criminal. A organização, o método e a prova. Os desafios da nova criminalidade, 2ª ed. Coimbra: Almedina, 2010, p. 337.
[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Comentário Conimbricense ao Código Penal. Parte Especial II, artigos 202º a 307º, dirigido por Figueiredo Dias. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 1161-1162.
[4] RUDOLPHI, Hans-Joachim. Verteidigerhandlen als Unterstützung einer Kriminellen oder terroristischen Vereinigung i. S. der §§ 129 und 129a StGB. Hans-Joachim Rudolphi, in Festschrift für Hans-Jürgen Bruns zum 70. Geburtstag. Herausgegeben von Wolfgang Frisch und Werner Schmid. Köln Berlin, Bonn, München: Carl Heymanns Verlag KG, 1978, pp. 317, 319 e 321.
[5] LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da instrumentalidade Garantista), 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 37.
[6] HASSEMER, Winfried. A segurança pública no Estado de Direito. Tradução de Carlos Eduardo Vasconcelos. Lisboa: AAFDL, 1995, p. 102.