Opinião

Admissibilidade de Habeas Corpus no STF e o descompasso dos precedentes judiciais

Autor

  • César Augusto Martins Carnaúba

    é mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo professor do programa de pós-graduação em Direito do Ibmec-SP advogado e mediador em São Paulo.

17 de maio de 2018, 16h01

1. Introdução
Visa o presente texto tratar da admissibilidade de Habeas Corpus no Supremo Tribunal Federal. Para tanto, faz-se um comentário à luz da recente decisão do STF no julgamento do HC 152.752.

O julgado em comento diz respeito à liminar concedida pelo STF no bojo do HC 152.752 em favor do paciente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a fim de impedir a execução da pena privativa de liberdade imediatamente após o esgotamento das vias recursais na segunda instância.

A sessão do Plenário do STF de 22 de março gerou celeuma na comunidade jurídica em dois momentos distintos: (i) quando do conhecimento do Habeas Corpus, e (ii) quanto à medida liminar concedida para obstar a eventual execução da pena antes do término do julgamento. A primeira delas — sobre a qual se debruça a partir de agora — trouxe perplexidade porque, afinal, em 6/10/2016, o mesmo Pleno da corte superior admitira a execução da pena após condenação em segunda instância[1].

À luz, portanto, da jurisprudência anterior do STF, passamos a analisar a possibilidade de conhecimento de Habeas Corpus no âmbito da corte constitucional brasileira.

2. Da decisão que conheceu do Habeas Corpus
Antes que pudesse adentrar no exame de mérito do Habeas Corpus em questão, o Supremo Tribunal Federal julgou, em caráter preliminar, a admissibilidade do remédio constitucional. Deu azo a essa decisão a discussão sobre a viabilidade de conhecimento do Habeas Corpus substitutivo do recurso ordinário.

Na esteira do entendimento do ministro relator, Edson Fachin, o HC não merecia ser conhecido, uma vez que o ato coator impugnado era decisão denegatória de ordem proferida pelo Superior Tribunal de Justiça (HC 434.766/PR, 5ª Turma, rel. min. Felix Fischer, j. 6/3/2018, DJe 15/3/2018). A via processual adequada para impugnar esse ato seria o recurso ordinário ao STF, conforme previsto no artigo 102, II da Constituição Federal.

De outro lado, também pende de julgamento o mérito das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44. Até pronunciamento final do tribunal, em tese, prevaleceria a orientação firmada em 2016, em sede de repercussão geral, segundo a qual a execução provisória da pena privativa de liberdade pode ser realizada assim que esgotada a tramitação do processo na segunda instância de julgamento.

O STF, por 7 votos a 4, decidiu conhecer do Habeas Corpus. A principal toada das argumentações, em linhas gerais, caminhou no sentido de que o “remédio heroico” era garantia constitucional, e a negação em sua apreciação seria negação de acesso à Justiça ao jurisdicionado.

2.1. Admissibilidade do Habeas Corpus à luz da teoria geral dos recursos
O sistema processual brasileiro estabelece uma disciplina rígida de impugnação de decisões judiciais, em que se insere a norma da unirrecorribilidade, também conhecido como singularidade ou unicidade recursal.

Seu significado é o de que cada decisão jurisdicional desafia o seu contraste por um e só por um recurso. Cada recurso, por assim dizer, tem aptidão de viabilizar o controle de determinadas decisões jurisdicionais com exclusão dos demais, sendo vedada — é este o ponto nodal do princípio — a interposição concomitante de mais de um recurso para o atingimento de uma mesma finalidade[2].

É dizer: uma decisão judicial pode ser impugnada de uma forma, e uma forma somente. A capacidade de reformar essa decisão, mediante apreciação do órgão jurisdicional imediatamente superior, se exerce mediante a interposição do recurso adequado para tanto.

Apesar dessa constatação, não se pode olvidar que há situações excepcionais à unicidade recursal. Trata-se de aplicação do princípio da fungibilidade recursal, enquanto consequência direta de outra norma mais abrangente, que consagra a instrumentalidade das formas. Ele se justifica “sempre que a correlação entre as decisões jurisdicionais e o recurso cabível, prescrita pelo legislador gerar algum tipo de dúvida no caso concreto”[3]. Dessa forma, “aplicar o princípio da fungibilidade significa admitir o recurso interposto ainda que não fosse o adequado, no lugar do que deveria ter sido ajuizado, sempre que o erro não puder ser considerado grosseiro”[4].

Mas não pode ser qualquer dúvida que enseje a aplicação da fungibilidade recursal. Fosse o caso, vislumbrar-se-ia uma verdadeira farra recursal, sem respeito a prazos ou a requisitos específicos de admissibilidade, em claro prejuízo da administração da Justiça e do ofício jurisdicional. Admite-se a fungibilidade recursal, como se vê em construção jurisprudencial já pacificada[5], quando presente dúvida objetiva sobre qual recurso deve ser interposto.

In casu, não se vê dúvida objetiva sobre o meio de impugnação cabível. Como o ministro Edson Fachin bem aduziu, a medida judicial apta a impugnar decisão de Habeas Corpus proferida por tribunal no exercício de sua competência originária é o recurso ordinário ao STF, previsto no artigo 102, II da Constituição Federal. Na espécie, o ato coator guerreado pelo impetrante era decisão do Superior Tribunal de Justiça que apreciou Habeas Corpus no exercício de sua competência originária.

Não se aplica, portanto, o princípio da fungibilidade recursal, por ausência de dúvida objetiva no presente caso.

2.2. Admissibilidade do Habeas Corpus à luz do sistema de precedentes
Exposto que, de acordo com a teoria geral dos recursos no Direito Processual, o Habeas Corpus não poderia ser medida apta a impugnar decisão do STJ que apreciou um outro Habeas Corpus no exercício de sua competência originária, é válido abordar a admissibilidade do HC em exame sob outro ponto de vista. Trata-se de analisar a adequação da decisão tomada pelo STF ao microssistema de precedentes judiciais instituído pelo Código de Processo Civil de 2015.

Essa perspectiva se justifica porque, em outubro de 2016, o Supremo Tribunal Federal proferiu decisão em sede de repercussão geral admitindo a execução provisória da pena privativa de liberdade após decisão pela segunda instância de julgamento. O pedido do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, contudo, consiste em impedir essa execução provisória, diametralmente oposto ao posicionamento firmado pela corte superior em oportunidade anterior.

Nesse momento, não é necessário discutir o acerto ou desacerto do posicionamento do STF sobre a execução da pena. Para fins de admissibilidade do remédio constitucional, que é o que ora se comenta, basta o fato de que há orientação jurisprudencial da própria corte superior num sentido diverso da tese pleiteada pelo impetrante.

Os artigos 926 e 927 do CPC estabelecem, respectivamente, a eficácia horizontal e vertical dos precedentes judiciais. Os tribunais observam, então, seus próprios precedentes, bem como os daqueles a que estiverem vinculados.

A primeira conclusão disso é muito simples: em razão da eficácia horizontal dos precedentes judiciais, o STF deve observar seus próprios precedentes. Afinal, dita o artigo 926 que os “tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

Existe uma alegoria sobre o Supremo Tribunal Federal que ilustra bem esse dever. Imagine-se que o STF é um grande transatlântico, e suas decisões determinam o rumo do navio. Decisões conflitantes, mudanças constantes de posicionamento e votos com parca fundamentação são razões para que o leme desse transatlântico se torne incontrolável, e suas sucessivas curvas, ao final, causem o naufrágio do navio e de todos seus passageiros — os jurisdicionados. É por isso que o STF (e, mutatis mutandis, todos os demais tribunais) deve manter sua jurisprudência estável: para que, como bom timoneiro, forneça aos passageiros desse transatlântico uma viagem calma e segura, tal como esperada por eles.

Mas em que consiste esse dever de observar os precedentes judiciais?

O significado do termo “observarão” é triplo: dever de considerar, dever de interpretar e, em sendo o caso, dever de aplicar o precedente ou a jurisprudência vinculante atinente ao caso. Isso quer dizer que existe no direito brasileiro um forte efeito vinculante dos precedentes (“strong-biding-force”)[6].

Que o STF considerou e interpretou o precedente, reconhece-se. Considerou, porque a decisão de outubro de 2016 foi tema frequente no debate entre os ministros nessa oportunidade de julgamento. Interpretou, porque ciente dos fundamentos aduzidos naquele precedente e em que medida se aplicariam a um novo caso — ademais, a composição da corte se manteve a mesma, não havendo razão para acreditar que algum ministro simplesmente desconheceria as razões dessa importante decisão.

Todavia, o passo seguinte seria aplicar o precedente ao caso concreto, ou afastá-lo mediante técnicas específicas para tanto. Não foi o que ocorreu.

Como visto, o precedente (que permitia a execução provisória da pena) não foi aplicado, uma vez que se conheceu de Habeas Corpus cuja tese era oposta à da decisão judicial (e após, como adiante se examinará, foi concedida tutela provisória acautelatória ao paciente).

O Supremo Tribunal Federal, por óbvio, deve possuir competência para, sendo o caso, não aplicar um determinado precedente — do contrário, engessar-se-ia todo o Poder Judiciário. Para tanto, algumas técnicas (fortemente inspiradas no Direito anglo-saxônico) podem ser utilizadas.

Em primeiro, poderia o STF entender que as circunstâncias do caso do ex-presidente Lula eram diversas dos fatos que ensejaram a criação do precedente das ADCs 43 e 44. Dessa forma, afastaria a aplicação do precedente neste específico caso concreto, uma vez que a orientação jurisprudencial deve ser a mesma enquanto forem as mesmas as circunstâncias fáticas analisadas. Através da técnica do distinguishing, o STF poderia afastar o precedente para este específico caso[7].

Além disso, considerando que o precedente paradigmático era de lavra do STF, o próprio STF poderia superá-lo, por entender que o precedente se tornou inconsistente. Razões para tanto poderiam ser a impraticabilidade da fundamentação contida no precedente, o raciocínio subjacente desatualizado em relação aos valores e às expectativas da sociedade, ou mesmo a superveniência de norma de direito positivo derrogatória da orientação jurisprudencial. A técnica para a superação do precedente seria, nesse caso, o overruling[8].

Ainda numa terceira hipótese, o STF poderia não superar totalmente o precedente de 2016, mas apenas limitar seu alcance, esclarecer os fundamentos então utilizados ou algo afim. Nessa situação, denominada overriding, poder-se-ia dizer que houve uma superação parcial do precedente. Para o caso em exame, isso seria suficiente para adotar conclusão diversa (impedindo, portanto, a execução provisória da pena)[9].

Ocorre que, para todas essas técnicas de análise do precedente judicial — e outras tantas que não cabe aqui demonstrar —, é necessária uma robusta fundamentação da decisão judicial, e um intenso cotejo entre as circunstâncias e os fundamentos do precedente paradigmático com as da ulterior decisão paragonada.

Não foi o que se observou no caso. Os ministros que votaram pela admissibilidade do remédio expuseram suas razões, certamente louváveis, mas nenhuma delas consiste em técnica de superação ou afastamento do precedente. Há, portanto, grave violação do dever de fundamentação da decisão judicial (insculpido no artigo 93, IX da Constituição Federal e no artigo 489, parágrafo 1º do CPC): um (quiçá o principal) argumento da parte contrária ao impetrante era justamente a existência de precedente judicial de orientação oposta ao quanto pedido, e existem técnicas próprias de argumentação para a superação ou o afastamento do precedente. Nenhuma delas foi utilizada pelos ministros.

3. Conclusão
Pelo exposto, conclui-se que o STF andou mal, em descompasso com o microssistema do Direito Processual recursal e dos precedentes judiciais, na decisão que admitiu o Habeas Corpus do ex-presidente Lula.


[1] A decisão ocorreu no bojo das ações declaratórias de constitucionalidade (ADC) 43 e 44, sob relatoria do ministro Marco Aurélio.
[2] BUENO, Cassio Scarpinella. Manual de Direito Processual Civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 787.
[3] BUENO, Cassio Scarpinella. Op. cit., p. 788.
[4] CÂMARA, Alexandre de Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 17. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 64-66.
[5] Por todos, ver: STJ, REsp 1.163.577/SE, 2ª Turma, rel. min. Mauro Campbell Marques, j. 2/9/2010, DJe 4/10/2010.
[6] MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 926 ao 975. In: MARINONI, Luiz Guilherme (dir.); ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil, vol. XV. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, comentários ao artigo 927, p. 63.
[7] “É intuitivo que, para aplicar a ratio decidendi a um caso, é necessário comparar o caso de que provém a ratio decidendi com o caso sob julgamento, analisando-se as suas circunstâncias fáticas. Isso significa uma diferenciação ou distinção de casos, que assume a forma de técnica jurídica voltada a permitir a aplicação dos precedentes. Nesse sentido fala-se, no common law, em distinguishing. O distinguishing expressa a distinção entre casos para o efeito de se subordinar, ou não, o caso sob julgamento a um precedente. A necessidade de distinguishing exige, como antecedente lógico, a identificação da ratio decidendi do precedente. Como a ratio espelha o precedente que deriva do caso, trata-se de opor o caso sob julgamento à ratio do precedente decorrente do primeiro caso” (MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 326).
[8] “A revogação de um precedente depende de adequada confrontação entre os requisitos básicos para o overruling — ou seja, a perda de congruência social e o surgimento de inconsistência sistêmica — e os critérios que ditam as razões para a estabilidade ou para a preservação do precedente — basicamente a confiança justificada e a prevenção contra a surpresa injusta” (MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 392).
[9] “O overriding apenas limita ou restringe a incidência do precedente, aproximando-se, neste sentido, de uma revogação parcial. Mas no overriding não há propriamente revogação, nem mesmo parcial, do precedente, embora o resultado da decisão com ele tomada não seja compatível com a totalidade do precedente. Mediante este expediente, a Corte deixa de adotar precedente em princípio aplicável, liberando-se da sua incidência. Assim, a sua aproximação é maior em relação ao distinguishing. O overriding se baseia na necessidade de compatibilização do precedente com um entendimento posteriormente formado. A distinção que se faz, para se deixar de aplicar o precedente em virtude do novo entendimento, é consistente com as razões que estiveram à base da decisão que deu origem ao precedente” (MARINONI, Luiz Guilherme. Op. cit., p. 347).

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