Opinião

Deveres de proteção e flagelo do Direito do Consumidor na perspectiva fragmentada

Autor

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

16 de maio de 2018, 6h05

Em 29 de março de 2012, o antigo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça foi guindado à posição de Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Além da ampliação de competências estabelecidas ao antigo DPDC — como nas hipóteses de atendimento do cidadão; auxílio na instalação de Procons; criação de estruturas para educação financeira; proteção de dados pessoais; monitoramento e fiscalização da novas tecnologias e comércio eletrônico, passo propositivo e complementar ao artigo 102 do CDC —, a alteração, na época, contou com intensa causa subjacente valorativa: o reconhecimento de que a proteção ao consumidor é instrumento fundamental para a garantia da cidadania e para o equilíbrio nas relações de consumo.

O acerto na evolução da estrutura organizacional da União, até então, encontrou sustentação ampla no ponto de vista argumentativo, quer no âmbito da explicação, quer na justificação. A decisão política foi dirigida à resolução prática de problemas: atendimento promocional do consumidor e equilíbrio no mercado (fins explicados). Igualmente, as razões em que se apoiava essa decisão eram válidas materialmente: dever de proteção do consumidor pelo Estado (correção justificada). Enfim, explicar e justificar para argumentar[1].

Na partida, basta perceber o fortalecimento do sistema nacional administrativo de defesa do consumidor, porquanto dotado de unidade, eficiência, acessibilidade e, sobretudo, competência temática compatível aos assuntos da sociedade contemporânea (digital, referencial, plural, reflexiva) que deve atuar conjunturalmente em redes[2] (institucional e dialogicamente: Procons, Ministério Público, órgãos públicos de posturas sancionatórias, órgãos de fiscalização de preço, abastecimento, segurança etc).

Pois bem. Passados seis anos[3], houve nova "readequação" das estruturas regimentais e quadros do Ministério da Justiça, substituindo-se a Senacon pela Secretaria Nacional das Relações de Consumo e, de soslaio, ressuscitando o DPDC. Este último, agora, desconfigurado das funções originalmente tocadas pela codificação consumerista.

Oposto a isso, é importante dizer que a Constituição Federal pretendendo alcançar a igualdade substancial, por vezes, designa[4] destacadamente determinados sujeitos reais de direito, a fim de atingir a necessária promoção mediante direitos positivados fundamentalmente. Assim o fez expressamente com: idosos (CF, artigo 230); mulheres (CF, artigo 5º, inciso I); crianças e adolescentes (CF, artigo 227); trabalhadores (CF, artigo 7º); aposentados (CF, artigo 194, inciso VII); eleitores (CF, artigo 61, parágrafo 2º); e também com consumidores (CF, artigo 5º, inciso XXXII).

Observe que, enquanto a Senacon era funcionalmente dedicada à promoção do "consumidor", a atual Secretaria Nacional das Relações de Consumo tenciona defender estrutura hermética baseada no símbolo da neutralidade: relação jurídica. O novo órgão atuará a favor de "modelo" contido no ordenamento pelo qual se concede ao titular determinado direito subjetivo e, reciprocamente, impõe-se a outra pessoa dever jurídico ou sujeição — intersubjetividade[5]. Há, logicamente, involução[6], pois o epicentro valorativo desvia-se da pessoa vulnerável para atender fenômenos jurídicos ideais e transcendentais[7].

Espectadores cotidianos das adversidades jurídicas, mais uma vez e sem perplexidades, contemplamos o desmoronamento e enfraquecimento dos direitos fundamentais relacionados a referidos sujeitos. Seguidas são as estratégias político-legislativas realizadas nos últimos dois anos que, com intensa carga de descompromisso com o texto constitucional, colocam à deriva a situação jurídica subjetiva existencial de incontáveis vulneráveis. Alguns pontos refrescam a memória: reforma trabalhista; ameaças à previdência e aos direitos ali consagrados; franquias de bagagens em transporte aéreo[8]; corrupção sistêmica na umbilical relação entre empresas (mercado) e poder público[9].

Essas percepções autorizam compreender que retrocessos políticos e normativos, quando existem, atingem não apenas aquele sujeito real designado em projeção à ambiência situada (por exemplo, o aposentado na relação previdenciária), senão geralmente têm reflexos negativos na projeção da pessoa consumidora, o que equivale dizer, no consumidor fragmentado: consumidor-trabalhador (perdas significativas de direitos sociais afetam a potência econômica do consumidor); consumidor-aposentado ou consumidor-pensionista (diminuição dos estipêndios e aumento de exigências de tempo de contribuição e idade mínima repercutem na baixa qualidade de vida da pessoa); consumidor-eleitor (depauperado na confiança quebrada pelo representante eleito e que, no exercício do mandato, desvia a proteção para o mercado, relegando os vulneráveis).

É possível — respeitadas opiniões dogmáticas em contrário — considerar nova hipervulnerabilidade baseada nos decréscimos axiomáticos-fundamentais confluentes entre sujeitos reais designados pela Constituição Federal e derivados da ação perversa do Estado, a quem concorre deveres de proteção. Ei-la insofismável: hipervulnerabilidade do abandono.

Ensina-nos a boa doutrina[10] que a Constituição Federal pode ser compreendida como polifacética, considerando elementos: orgânicos (distribuem poder e competências); de estabilização (conta com instrumentos de garantia da inerente supremacia, como na hipótese da ADIn); sócio ideológicos (estabelece função diretiva à ordem econômica e social); de aplicabilidade (gerador da necessária eficácia); e limitativos (atuantes na justaposição dos direitos e deveres fundamentais).

Justamente os dois últimos elementos (de aplicabilidade e limitativo) proporcionam a eficácia dos direitos fundamentais, inclusive no âmbito privado. Via de consequência, é certo que essa vinculação jusfundamental entre particulares concretiza-se por meio de "relação jurídica", contudo jamais neutra ou estrutural, porquanto os direitos fundamentais representam a resposta constitucional às mazelas e injustiças pessoais e coletivas espargidas na sociedade.

As relações jurídicas jusfundamentais cederam espaço à centralidade da pessoa humana, porque: i) indicam situação de fragilidade, necessidade e vulnerabilidade; ii) são exigências dirigidas direta ou indiretamente ao Estado; iii) têm base sólida para a concretude da vida digna humana, através dos direitos humanos[11].

É fraqueza de espírito pensar que a modificação na estrutura do Ministério da Justiça, no que respeita o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, ocorreu de forma ingênua partindo-se da pressuposição de que os gestores da coisa pública (editores do decreto) adotaram presunção de igualdade formal e simetria entre os atores contratuais e negociais, entre consumidores e mercado. O que resta claro é a vontade livre, previamente pensada e consciente de negativa a preceito constitucional (CF, artigo 5º, inciso XXXII). Os deveres de proteção, vinculando o legislador, implicam em atuação obrigatória e levam esse mesmo decreto à clara e inequívoca inconstitucionalidade.


[1] ATIENZA, Manuel. El sentido del derecho. 6ª. ed. Barcelona: Ariel, 2010, p. 254.
[2] CAMPILONGO, Celso Fernandes. Os desafios do judiciário: um enquadramento teórico. In: Direitos humanos, direitos sociais e justiça. José Eduardo Faria (org.). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 31.
[3] Decreto 9.360, de 7 de maio de 2018.
[4] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. 8ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 410.
[5] MOTA PINTO, Carlos Alberto da. Teoria geral do direito civil. 4ª ed. António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto (atual.). Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 178.
[6] Del Vecchio, Giorgio. Evolução e involução no sistema jurídico. Belo Horizonte: Líder, 2005.
[7] NEGRI, Antônio, HARDT, Michael. Empire. Cambridge, Massachusetts: Harvad, 2000, p. 393 e segs. O transcendental é espaço sobrenatural e inacessível. A imanência trata do real onde situam as reações culturais através da unidade por três pontos indissociáveis (multitude): i) filosofia – reconhecimento da multiplicidade de sujeitos diferenciados, contrário à ideia generalizante de povo; ii) sociologia – reconhecimento das classes sociais e as singularidades na força produtiva do trabalho e realidade econômica; iii) política – comunidade de pessoas livres que lutam pelo bem comum potencializado o desejo de transformar o mundo.
[8] https://www.conjur.com.br/2017-dez-31/fernando-martins-representatividade-consumidor-retrocedeu-2017.
[9] Russel, Bertrand. História do pensamento ocidental: a aventura dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017, p. 20. Reportando-se ao dinheiro como ‘meio universal de acumular valor e troca de mercadorias’ aponta que alguns filósofos temiam o litoral pelo poder de corrupção do mercado.
[10] SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2008.
[11] McCrudden, Christopher. Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights. The European Journal of International Law Vol. 19. Para o autor todo ser humano possui valor intrínseco (ontological claim), valor que deve ser conhecido e respeitado por todos, proibidas as práticas contrárias a esse valor (relational claim); sendo que o Estado existe para o bem do indivíduo e não o contrário (limited-state claim).

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    é promotor de Justiça em Minas Gerais, doutor e mestre pela PUC-SP, investigador científico pelo Instituto Max Planck (Alemanha) e diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon).

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