Opinião

Direito de visita de Lula é questão de princípio

Autores

  • Alexandre Bahia

    é advogado doutor em Direito Constitucional pela UFMG e professor adjunto na UFOP e IBMEC-BH.

  • Flavio Quinaud Pedron

    é sócio do Pedron Advogados doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professor na UniFG (Bahia) na PUC-Minas e no IBMEC editor-chefe da Revista de Direito da Faculdade Guanambi e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional da Associação Brasileira de Direito Processual e da Rede Brasileira de Direito e Literatura.

  • Diogo Bacha e Silva

    é doutor em Direito pela UFRJ mestre em Direito pela FDSM (com estágio de pós-doutorado em Direito na UFMG) e membro do OJB/FND e da Rede para o Constitucionalismo Democrático Latino-Americano.

15 de maio de 2018, 14h18

Os professores Lenio Streck e André Karam Trindade formularam parecer pro bono respondendo as indagações dos advogados de defesa do ex-presidente Lula[1]. Em primeiro lugar, questionam se o direito de visitação de amigos de Lula poderia ser restringido em face do interesse público de manter o bom funcionamento da instituição na qual o mesmo encontra-se cumprindo pena antecipadamente, qual seja, a Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. Depois, os consulentes buscam saber quais seriam as prerrogativas asseguradas aos ex-presidentes em face de eventual cumprimento de pena privativa de liberdade.

Em verdade, o primeiro questionamento advém de decisão proferida pela juíza da 12ª Vara Federal de Curitiba, que considerou lícita a prática de restrição ao direito de visitas dos amigos de Lula por supostamente contrariar o interesse público no bom funcionamento da carceragem da Polícia Federal. Em real verdade, admitiu a juíza que o artigo 41, inciso X da Lei de Execução Penal previa o direito de visita. Contudo o diretor do estabelecimento poderia, em ato motivado, restringir tal direito, consoante a autorização legislativa do parágrafo único do artigo 41 da Lei 7.210/84.

Os pareceristas, portanto, analisam a proporcionalidade no caso concreto da limitação do direito à visita dos amigos de Lula. Em primeiro lugar, a análise da situação concreta tem importância teórico-prática para a construção de Estado Democrático de Direito e o parecer vem na melhor linha de contribuir, não para a elucubração teórica, mas para os desenvolvimentos práticos de uma interpretação correta do Direito.

Com efeito, realizam uma sofisticada aplicação prático-argumentativa da técnica do balanceamento de Robert Alexy[2] para analisar se subsistiria a argumentação da prevalência do interesse público no bom funcionamento da instituição sobre o direito à visita dos amigos do ex-Presidente.

Deve ser aclarado que a escolha por essa abordagem não representa uma adesão dos pareceristas à perspectiva teórica alexyana, mas demonstrar como o argumento que embasou a decisão judicial mostra-se equivocado, pois deixa de explicitar as razões que conduziram às conclusões, sendo, pois até pela perspectiva de tal teoria, uma decisão irracional. Alem disso, não deixa de ser um importante exercício argumentativo, já que uma vulgata da teoria de Alexy à brasileira[3] parece tomar conta de muitas decisões judiciais que, na verdade, acabam desconsiderando a dimensão mais importante da sua teoria, que é sua teoria da argumentação.

No parecer, os professores são fiéis à teoria argumentativa do autor, e aplicam com rigores metodológicos a técnica do balanceamento e a lei de sopesamento para extrair a norma de direito fundamental atribuída, sem desconsiderar a argumentação prática. Isso deve servir de ensinamento para muitos dos tribunais e juízes que buscam adotar a conhecida teoria de Alexy, mas que abre margens para a discricionariedade, contrariando, portanto, o próprio autor.

Como resultado da aplicação da proporcionalidade, os pareceristas chegam ao seguinte resultado:

“aplicação da fórmula do peso permite concluir por uma relação de precedência condicionada, no caso concreto, do direito pleno à visitação sobre a sua restrição com base no interesse público, tendo em vista o seguinte resultado:

 

Com isso, sendo o resultado final maior que 1, a conclusão a que se chega é que o princípio interferido – direito pleno à visitação (disposto na parte superior da fórmula de peso) – deve prevalecer no caso sob exame. Isso significa, em outras palavras, que o resultado obtido a partir do exame da proporcionalidade, mediante a aplicação da técnica da ponderação, conduz à formulação de uma norma de direito fundamental atribuída (zugeordnete Grundrechtnorm): a restrição do direito de visitação dos amigos do ex-Presidente, com base no interesse público, é medida desproporcional que viola os direitos do preso, colocando em xeque o próprio objetivo da execução penal de proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado (artigo 1º, LEP)”.

Por óbvio, não contestamos, de per si, a utilização do balanceamento de Alexy na solução de questões teóricas do direito e entendemos que a mesma, quando utilizada corretamente, como o caso do parecer, tem importantes contribuições para a teoria do direito e para o direito constitucional.

Oferecemos, aqui, contudo, um outro viés teórico que, fatalmente, chegará ao mesmo resultado do parecer. Não se trata de disputas teóricas inúteis que apenas servem para satisfazer o ego acadêmico dos contendores. Muito pelo contrário. Aqui a questão é demonstrar que qualquer teórico do direito que leve a sério a interpretação e compreensão do significado do Direito no Estado Democrático não chegará a conclusão diferente dos professores. Por isso, buscaremos reconstruir o caso concreto à luz da também conhecida e sofisticada teoria do direito como integridade de Dworkin.

Na Conferência Mccorckle de 1984, Dworkin apresenta seu modelo teórico de que o próprio direito tem suas ambições, não sendo mero processo epifenomênico. Essas ambições próprias do direito são constitutivas do processo de construção do Estado Democrático de Direito em que as mudanças no direito não são vistas como injustas, mas como o próprio sentido de autorrealização e autodescobertas da identidade subjacente.

Na verdade, essa questão é melhor entendida a partir da compreensão de dois modelos de interpretação judicial que jogarão um papel extremamente importante para a construção da teoria de Dworkin. Existe um modelo interpretativo que seria aquele encontrado nos livros, nas decisões passadas e nas declarações da lei e aquele que vê o direito como um todo, aceitando a estrutura dos princípios de moralidade política que, tomadas em seu conjunto, oferecem a melhor interpretação do direito positivo[4].

Um aspecto de moralidade política fundamental no Estado Democrático de Direito são os direitos individuais que nada mais são do que o esqueleto de uma comunidade de cidadãos livres e iguais. Mesmo formulados de maneira mais concreta ou mais abstrata possível, os direitos individuais são aspectos essenciais de nossa moralidade política. A interpretação dos mesmos deve levar em conta a integridade do direito. Mais do que oferecer uma resposta teórica acerca do reconhecimento de quais direitos individuais são “enumerated” ou “unenumerated”, é de se considerar que a interpretação do direito deve ser holística[5].

Oferecer uma interpretação dos direitos não significa levá-los a sério. Levar os direitos a sério exige do intérprete mais do que recorrer a uma interpretação possível do direito, significa a responsabilidade moral de que este tem de justificá-lo à melhor luz possível dos princípios de moralidade política de nossa comunidade.

Regra geral, Dworkin trabalha com três concepções de teoria do direito que oferecem respostas distintas para os problemas jurídicos: o convencionalismo, o pragmatismo e o direito como integridade. O convencionalismo se limita a um teste de pedigree, isto é, está fundado numa concepção de que conhecer o direito é apenas uma questão de fato, uma questão semântica de critérios comuns para saber qual é o direito.

O convencionalismo apresenta uma forte atração teórica. Faz o direito depender apenas de critérios comuns acessíveis a todos para a descoberta do seu significado, além de possibilitar uma aparente resposta clara e segura, mesmo quando se saiba que, em casos difíceis, não há uma resposta correta ou possível. Há um respeito e uma excessiva deferência ao passado institucional, às decisões políticas tomadas no passado que determinam (e limitam) o que o direito pretende estabelecer e regular.

O pragmatismo, ao contrário, entra num ceticismo quanto às pretensões teóricas do direito. Ao decidirem os casos, o único critério para os juízes seria a eficiência ou alguma pretensão contemporânea de crença numa comunidade futura que acreditam ser melhor. Qualquer método, portanto, é possível, desde que justifique a crença numa comunidade vindoura mais feliz, mais eficiente, mais justa.

A teoria da integridade, entrementes, acredita que uma interpretação judicial construtiva possibilitará a consolidação de princípios a partir dos quais se pode justificar uma ordem jurídica concreta, de modo que todas as decisões passadas possam ser um conjunto coerente de aplicação de nossa moralidade política e de nossa sociedade de cidadãos livres e iguais. O direito como um todo é desenvolvido por meio de três tipos de padrões decisórios entendidos como critérios lógico-argumentativo para os problemas jurídicos: as regras, os princípios (principles) e as diretrizes políticas (polices), ainda que não sejam padrões fixos e estáveis, como sendo algumas regras, outros princípios e outros políticas, mas como formas pelas quais os juristas dão respostas aos problemas jurídicos[6]. As regras poderiam ser entendidas como o reconhecimento das decisões jurídicas passadas pelo intérprete para os problemas jurídicos enquanto que as diretrizes políticas nada mais são do que objetivos a serem perseguidos, seja na forma de bem-estar econômico, político ou comunitário. Já os princípios prescrevem um direito e destinam-se a fazer uso da história institucional da comunidade política e coloca-se como limite e possibilidade para uma decisão democrática.

É preciso, portanto, saber qual projeto teórico sobre o direito gostaríamos de adotar. Um projeto convencionalista que se demonstra necessariamente conservador e não permite mudança no direito e nem ambição para o próprio o direito ou, então, um projeto que determine mudanças interpretativas no direito para a construção uma sociedade de cidadãos livres e iguais.

A decisão judicial que possibilitou a limitação da visitação dos amigos do ex-Presidente utilizou a regra do artigo 41, inciso X da Lei 7.210/84 apenas como forma de conferir estratégia para impor a observância de uma diretriz política, sendo uma decisão que adota o pragmatismo e, portanto, não leva a sério o direito.

Veja-se, pois, que o reconhecimento da possibilidade de limitação do direito de visita estipulada na lei apenas serviu como forma de aplicação de um pretenso interesse público, considerando como tal o interesse no bom funcionamento das atividades da Polícia Federal pela população. Não interpretou, portanto, o direito de visita como um princípio, considerado como prescrevendo um direito, neste caso, um direito individual que, como dissemos, é a pedra fundamental de nossa moralidade política.

É que considerando mesmo que o bom e regular funcionamento da instituição fosse considerado um interesse público a ser perseguido para a construção do futuro de uma comunidade melhor, deve-se reconhecer que este padrão argumentativo corresponde a uma diretriz política na teoria de Dworkin. Os objetivos políticos jamais prescrevem um direito e, pois, não podem ser tidos como critérios determinantes para nenhuma interpretação jurídica, exceto se se considerar o pragmatismo.

De outro lado, parece não haver dúvidas de que a possibilidade do apenado receber visita, seja de familiares, parentes ou advogados, constitui um direito do mesmo diante de sua condição jurídica. Tal direito, ademais, por ser direito individual, representa um aspecto importante de nossa comunidade política, eis que desenvolve o direito de tal forma a construir uma sociedade livre e igual. No projeto teórico de Dworkin, portanto, os padrões argumentativos denominados de princípios que prescrevem um direito são trunfos em relação às diretrizes políticas de tal forma que, em uma discussão, há sempre uma precedência dos princípios em relação à diretriz política, uma vez que não podem fundamentar qualquer decisão judicial.

No caso em questão, uma decisão legítima e democrática e que interpreta à melhor luz o direito deve ser a de que o ex-Presidente Lula tem o direito, embasado nos princípios de uma sociedade livre e igual – que leva a sério o igual respeito e igual consideração, a equanimidade (fairness) e o devido processo legal –, de receber a visita de seus amigos, independentemente das considerações de que a instituição poderia sofrer desorganização em suas atividades cotidianas que, sequer, poderia ter sido base de fundamentação da decisão judicial da Vara Federal, desde que se conceba que tal órgão jurisdicional leve a sério os direitos.

Eis, portanto, a razão pela qual o parecer dos professores Lenio Luiz Streck e André Karam Trindade levam a sério o direito, ainda que por outro caminho metodológico, chegando a um resultado de acordo com um Estado Democrático de Direito fundado na igualdade e na liberdade.


[1] A íntegra do parecer pode ser acessada em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/parecer-prerrogativas-ex-presidentes-1.pdf, acesso em 10 de Maio de 2018.

[2] ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.

[3] Para uma crítica mais contundente à aplicação equivocada da teoria de Alexy, ver: MORAIS, Fausto Santos de. Ponderação e arbitrariedade. Salvador: Juspodivm, 2016.

[4] DWORKIN, Ronald. A Conferência Mccorckle de 1984: as ambições do direito para si próprio. Veredas do Direito, v. 4, nº 8, p. 9-31, Julho-Dezembro de 1997. p. 18-19.

[5] DWORKIN, Ronald. Unenumerated rights: whether and how Roe should be overruled. The University of Chicago Law Review, Vol. 59, 1992, p. 381- 432. p. 390.

[6] DWORKIN, Ronald. A justiça de toga. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. p. 331

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