Academia de Polícia

Diante da letargia do Estado, histórias de mortes de policiais se repetem

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

15 de maio de 2018, 10h43

Spacca
Na coluna desta semana, queremos aplaudir as ações heroicas de nossos policiais e o comprometimento deles com os ideais institucionais e do Brasil, como as da policial militar Kátia da Silva Sastre, 42 anos, que, corajosamente, no sábado (12/5), enquanto aguardava a abertura dos portões da escola de sua filha para a festa comemorativa do Dia das Mães, evitou que mulheres, crianças e funcionários de um colégio no bairro Jardim dos Ipês, em Suzano (SP)[1], virassem dados estatísticos da segurança pública.

É fundamental, ademais, lembrar e render homenagem a todos os policiais vitimizados pela violência urbana, seja no exercício das suas funções ou no da sua vida privada. Policiais honrados que nos deixaram precipitadamente, privando amigos e familiares de um convívio rico e amoroso, consequência de um encadeamento de políticas públicas ineficientes, sucateamento do sistema de segurança pública, corrupção endêmica e de gestões públicas voltadas para o bem-estar do próprio bolso, e não da sociedade.

No dia 26 de março, ganhou ampla repercussão na mídia o atentado contra a vida de um casal — Caroline (32 anos) e Marcos Paulo (46 anos)[2] — de policiais militares do 2º Batalhão de Polícia Militar de Chapecó (SC) que passava férias em Natal (RN). Era uma segunda-feira à noite e estavam numa pizzaria na zona norte da cidade quando, rendidos, foram identificados como policiais e baleados. Caroline morreu, mas Marcos Paulo sobreviveu e carrega as lembranças dessa tragédia.

Na manhã desta segunda-feira (14/5), morreu o delegado da Polícia Federal Mauro Sergio Salles Abdo, 55 anos, vítima de latrocínio em sua residência. Deixou mulher e filha[3]. Mauro Sergio se preparava para ir para o trabalho quando se deparou com os assaltantes, um deles com antecedentes criminais[4] e que tinha autorização para saída do presídio em razão do Dia das Mães. Assim, fizeram de uma mãe uma viúva:

"O delegado foi atingido com três tiros no abdômen e um dos assaltantes, com dois tiros na perna e virilha. Os dois ladrões têm passagens pela polícia por roubo e furto. Um deles estava em saída temporária de Dia das Mães, de acordo com um delegado da Polícia Civil".

Poucos dias antes, no dia 5, nos deixou o delegado da Polícia Federal David Farias de Aragão, 36 anos, "assassinado […] após três bandidos invadirem a sua casa em São José do Ribamar (a cerca de 30 km de São Luís), no Maranhão[5]", momento em que comemorava o aniversário de cinco anos de uma de suas filhas com os familiares e amigos. Deixou mulher e duas filhas.

Conforme divulgado no G1[6]:

"A Polícia Civil informou ainda que Wanderson de Morais Baldez deveria estar sendo monitorado por meio de uma tornozeleira eletrônica já que responde por outro crime que não foi informado. Ao ser capturado pelos policiais, o assaltante não estava usando o equipamento".

Em comum, não apenas o fato de serem profissionais de segurança pública, mas também as circunstâncias dos crimes: latrocínios cometidos por indivíduos com registros criminais, que deveriam estar encarcerados, os quais invadiram as suas residências e deixaram um rastro de violência, dor, viúvas e órfãos. Se antes a maior preocupação do cidadão, em grandes centros, era ir para o trabalho e não voltar para casa, agora esse receio se manifesta em qualquer ponto do território nacional desde o despertar e ainda nos nossos lares.

Muito se tem falado sobre a "sensação" de insegurança alimentada pela imprensa e da violação ao princípio da presunção da inocência (ou não culpabilidade) em razão da execução da pena após decisão colegiada dos tribunais, mas pouca atenção e energia se destina para as vidas desconstruídas de vítimas e familiares, esses sim os verdadeiramente inocentes.

Enquanto os criminosos ganham cada dia mais direitos, saídas temporárias e garantias para responder aos processos penais com tornozeleiras e em total liberdade — a prisão é a ultima ratio e uma exceção para o criminoso, o qual também não poderia ser algemado —, os órfãos das famílias vitimadas vivem a prisão dos seus sentimentos, muito mais dura do que as condições do cumprimento da pena e sem direito à progressão de regime.

Como visto, não se trata de mera "sensação" de insegurança, impulsionada pela mídia, pois as notícias produzidas nas redações dos jornais brasileiros nada mais fazem do que dar visibilidade ao caos instalado no nosso país: corrupção endêmica na administração pública, má gestão de recursos públicos, sucateamento da segurança pública e das redes de saúde e ensino públicas.

A imprensa, quando distante dos interesses de grupos políticos e econômicos, é imprescindível para o amadurecimento da sociedade e para a qualidade dos debates nacionais. Nesse contexto, é natural que as pautas de segurança pública e das políticas públicas sejam recorrentes e enriquecidas pela dialética do pensamento, sendo questionável a assertiva de que há uma "sensação" de insegurança, quando, na verdade, esta está instalada no nosso país há muito tempo.

Outra questão que vai além do claro quadro de insegurança pública — não mais mera sensação de insegurança — é o nosso sistema de interdependência dos poderes no Brasil, um tanto dúbio e contraditório.

Ao mesmo tempo em que o Poder Legislativo promulga leis com penas mais duras, os benefícios da execução penal são ampliados. Benefícios previdenciários como o auxílio-reclusão pagos diante da prisão do criminoso são estendidos[7], viram objeto de auditorias previdenciárias e operações policiais em razão de inúmeras fraudes[8], e a família das vítimas permanece desassistida.

O Poder Judiciário estabelece uma audiência de custódia em que veda a perquirição de culpa do preso e dos crimes cometidos contra o particular, o Estado e a sociedade, mas escrutina o ato de prisão com questionamentos de legitimidade da ação policial.

Por fim, o Poder Executivo possui um firme discurso de que a segurança pública está melhorando ou melhorará; que as estatísticas mostram isso e chega a decretar intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, mas permite que aconteça o sucateamento das polícias judiciárias civis e federal, das polícias militares, e do sistema prisional; demora anos para autorizar concursos públicos para as polícias e penitenciárias e contingencia, sempre que pode, os recursos da segurança pública.

Lamentavelmente, nenhuma mudança relevante se notou nos últimos anos quanto à valorização policial e ao investimento nas instituições; nem medidas efetivas das três esferas do poder e entes federativos contra as ações do crime organizado, que continua se multiplicando dentro de presídios dominados por facções, sem perda do controle do império do crime erguido às custas das vidas de inocentes.

Veja-se que o jornalista Alexandre Garcia[9], ainda no ano de 2014, sintetizou muito bem todo esse dramático quadro pintado com o sangue das mortes de policiais federais, civis e militares, que se repete nestes últimos meses:

"É difícil ser punido aqui no Brasil. A maior parte dos crimes não é solucionada, a maior parte dos criminosos não é julgada, a maior parte dos condenados não é presa e a maior parte dos que acabam cumprindo pena tem um altíssimo índice de reincidência, voltam a praticar crimes (…). Nós temos uma guerra interna. 154 brasileiros são mortos por dia, em assassinatos que não estão computados os crimes de trânsito. É o país do mundo onde mais policiais são mortos. Nosso modelo de segurança pública precisa ser revisto. A responsabilidade tem que ser dos três entes federativos: União, Estados e Municípios (..) e nós brasileiros ficamos olhando. Como nação apoiamos a quem: apoiamos a lei ou desacreditamos na lei e na polícia? Os países do mundo desenvolvido acreditam na polícia e nas leis. Nossas leis apoiam as vítimas? Garantem a punição dos bandidos? E tem outro lado. Nos Estados Unidos, o policial herói é tratado como herói, aqui não. É difícil ser policial neste país, policial por vocação, como a maioria, os que dão a vida pela lei e pelos outros, essa é a maioria (…) Neste país agentes da lei são enfraquecidos pelas próprias autoridades (…) A propósito quem está a serviço da lei precisa ser seu maior escravo do policial ao juiz".

Não há melhor síntese do que aconteceu nas últimas semanas: questionamentos isolados da postura da policial militar em Suzano, quando deveria ser tratada como heroína; criminosos soltos, reincidentes, que voltam a delinquir; morte de policiais por todos os cantos do país. Falta de apoio e reconhecimento da importância do trabalho policial, abandono de vítimas e seus familiares e sucateamento das instituições policiais e prisionais.

As histórias tristes de mortes de policiais se repetem diariamente, diante da letargia e impotência do Estado, ainda visto convenientemente por alguns setores, como o Estado hobbesiano, onde o Leviatã impõe a obediência pelo medo e pune. O Leviatã moderno, ao contrário do Leviatã de Thomas Hobbes, há muito tempo não desperta o medo ou temor das organizações criminosas e diante de uma legislação frágil, e a terrível burocracia cartorial pune mal.

No Brasil, tornar uma sanção penal, administrativa ou cível efetiva e conseguir expropriar o patrimônio ilícito de organizações criminosas é um processo árduo e de paciência, cujos resultados, quando positivos, aparecem depois de desgastantes anos de longos processos judiciais assombrados pela prescrição da pretensão punitiva, sucessivos Habeas Corpus, embargos de embargos de embargos de declaração e um sem fim de embargos à execução. Se a organização criminosa estiver associada a poderosos grupos econômicos e políticos e a operação policial não contar com a conjunção perfeita de astros que ocorreu na "lava jato", é difícil prever que o Estado consiga êxito e cumpra seu papel de proteger o cidadão e promover o bem-estar social.

Para o presidente da Associação dos Delegados de Polícia Federal, Edvandir Felix de Paiva[10], na abertura do 1º Simpósio Internacional de Segurança Pública, em Brasília, nesta segunda-feira, a política de desencarceramento no Brasil precisa ser revista:

“Eu trabalhei durante 5 anos no setor de encarceramento, trabalhei na Papuda, no sistema penitenciário, e eu posso garantir a vocês que os mais perigosos têm bom comportamento e por conta de bom comportamento muitos merecem, em Dia das Mães e dias festivos, ir para a rua e eles vão para rua matar pessoas inocentes, pais de família, profissionais que fazem esse país (…) Nós não estamos no caminho certo (…) Está doendo muito, está doendo em cada Delegado de Polícia Federal, tá doendo muito em cada Policial Federal (…) Ajudemos esse país a formular as políticas corretas de segurança pública, não devemos nos omitir (…) temos o dever de ajudar a sociedade a encontrar os caminhos mais seguros, é uma responsabilidade de todos nós”.

Na mesma cerimônia de abertura, o secretário nacional de Segurança Pública, Santos Cruz, pontuou a importância da integração de sistemas e órgãos de segurança pública, mas que os desafios de segurança pública estão além da questão de avanço e inovação tecnológica, pois, em razão da ousadia do crime, não apenas armado, mas também desarmado, “a deterioração [da segurança pública] chegou num ponto inadmissível, passou do ponto, foi muito além de qualquer limite, fazendo agora com que o reclamo seja extremamente penoso”.

A violência está cada dia mais presente no cotidiano do brasileiro, seja na grande São Paulo de Mauro Sergio ou na pequena São José do Ribamar de David. O quadro do paciente "sociedade brasileira" tende a se agudizar diante de um Estado reativo, com muitos problemas para administrar, pouca articulação interinstitucional e duvidosa disposição para investimento na segurança pública.

Em que pese transparecer que o Estado brasileiro não consegue se entender — se quer segregar o criminoso ou adotar uma política de esvaziamento dos presídios —, a sociedade brasileira, ao contrário, já cansada de escutar e ler o mesmo noticiário político e policial, sabe bem o que quer: o fim da impunidade e políticas públicas sérias e eficientes. A sociedade brasileira não quer mais que suas famílias chorem pelas perdas abruptas de seus Davids, Mauros Sergios, Marcos Paulos e Carolines!


[1] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/ao-lado-de-criancas-mae-pm-reage-a-assalto-e-mata-ladrao-em-sp-veja-video.shtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[2] Disponível em: https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/policias-de-sc-relembram-soldada-morta-com-tiro-no-peito-em-ferias-no-rn-referencia-como-mulher-e-policial.ghtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[3] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/delegado-da-pf-e-baleado-no-morumbi-durante-tentativa-de-assalto.shtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/delegado-da-pf-e-baleado-no-morumbi-e-suspeitos-sao-presos.ghtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[5] Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/delegado-da-policia-federal-e-assassinado-no-maranhao.shtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[6] Disponível em: https://g1.globo.com/ma/maranhao/noticia/delegado-da-policia-federal-e-assassinado-apos-ter-casa-invadida-no-maranhao.ghtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[7] Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/previdencia-anuncia-ampliacao-do-auxilio-reclusao-323052.html. Acesso em 14 de maio de 2018.
[8] Disponível em: https://g1.globo.com/se/sergipe/noticia/mpf-pede-condenacao-de-19-pessoas-por-fraudes-no-auxilio-reclusao.ghtml. Acesso em 14 de maio de 2018.
[9] Alexandre Garcia defende os policiais ao vivo. MENDONÇA, Olavo. 11.nov.2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QPe7DKicW3g. Acesso em 14 de maio de 2018.
[10] Sobre o assunto, ver: RODRIGUES, Larissa. PF: Política de desencarceramento do Brasil precisa ser revista. 14.mai.2018. Disponível em: https://www.metropoles.com/brasil/pfpolitica-de-desencarceramento-do-brasil-precisa-ser-revista. Acesso em 14 de maio de 2018.

*Texto alterado às 12h24 do dia 15/5/2018 para correção de informações.

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  • é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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