Opinião

O artigo 28 da LINDB e a questão do erro grosseiro

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14 de maio de 2018, 16h19

Entrou em vigor a Lei 13.655/2018, fruto do polêmico Projeto de Lei 7.448/2017, que acresceu à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) diversos artigos.

A comunidade jurídica e órgãos de controle, enquanto o projeto encontrava-se para sanção presidencial, emitiram diversos posicionamentos em relação ao seu conteúdo. A maioria desses argumentos defendia o veto ou a sanção integral do texto. Em que pesem tais considerações, o chefe do Poder Executivo resolveu vetar parcialmente o texto legal, aproveitando alguns avanços perseguidos pela lei, todavia manteve o controverso caput do artigo 28. O fato é que a lei está posta, com presunção de validade e, a partir de sua vigência, deve ser observada por todos. Para tal, requer sua interpretação.

Inicialmente, cumpre trazer o magistério de Carlos Maximiliano destacando a separação entre o trabalho do legislador e do intérprete:

"A lei é a vontade transformada em palavras, uma força constante e vivaz, objetivada e independente do seu prolator; procura-se o sentido imanente no texto, e não o que o elaborador teve em mira." Prossegue o mestre da hermenêutica: "Com a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que o seu autor"[1].

Um dos pontos de maior interesse no meio jurídico, como já adiantamos, é o que trata do erro grosseiro, precisamente o artigo 28 da LINDB, que assim prescreve:

Art. 28. O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (grifou-se).

Anote-se que, até a chegada da nova lei, utilizava-se como standard para efeitos de sanção a conduta do agente público mediano. Desse modo, uma tese que considerasse o erro grosseiro trazido pelo novo dispositivo como a conduta abaixo dessa linha, a nosso sentir, desprestigiaria a inovação do ordenamento jurídico e o próprio Poder Legislativo, presumindo a existência de palavras inúteis na lei, bem como desconsideraria a doutrina existente em torno desse conceito jurídico indeterminado, a qual trata o erro grosseiro como espécie de culpa lata ou grave.

De igual modo, outra concepção teórica que defenda a ausência da palavra “somente”, no artigo 28, como indicativo da existência de outras hipóteses de responsabilização para além do dolo e do erro grosseiro, na nossa ótica, pode ser fragilizada pelo fato de se compreender que, na esteira do que preleciona o professor Tércio Sampaio Ferraz Jr., em se tratando de eventual restrição aos direitos e garantias fundamentais, in casu, privação de direitos e imposição de sanções, recomenda-se que a norma seja interpretada restritivamente[2]. Semelhante posição também pode ser refutada pelo conceito do silêncio eloquente, o qual se distingue tanto da lacuna quanto da omissão do legislador e que, segundo a definição do ministro Luiz Roberto Barroso[3], ocorre, quando a lei, ao não dizer, na verdade, está se manifestando.

Antes, porém, de adentrarmos na caracterização desse conceito jurídico indeterminado, é preciso verificar o alcance do novo artigo 28 da LINDB. Importa realçar que a recomposição dos cofres públicos tem a mesma gênese da reparação civil (artigo 927 do CC): aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem (erário) tem o dever de reparar. Nesse contexto, consoante dicção do artigo 944 do nosso Código Civil: “A indenização mede-se pela extensão do dano”, não obstante a exceção prevista no parágrafo único do mesmo artigo. Nessa esfera, cuida-se precipuamente do restabelecimento do status quo ante do patrimônio público. Assim, o conceito de gradação da culpa revela-se inadequado quando se trata do dever de reparar ou indenizar por danos causados a terceiros/Estado. É nesse sentido a lição do professor Marcelo Junqueira Calixto[4]:

Este entendimento conduz ainda ao segundo fator a ser lembrado, o qual reside na inadequação de se insistir na própria graduação da culpa. De fato, a culpa levíssima parece não se sustentar mais, uma vez que exige um padrão não humano de conduta, o que se traduz em uma hipótese em que não se verifica culpa alguma, só podendo gerar responsabilidade caso esta seja objetiva. Da mesma forma, a culpa grave pode perfeitamente ser equiparada ao dolo, em especial quando se trata de proteger a vítima, e, de qualquer forma, não poderia ser invocada como fundamento para a redução da reparação. Resta, portanto, unicamente a culpa leve, a qual pode ser traduzida na própria culpa, sem qualquer qualificação.

Um outro ponto a reforçar essa intelecção é o próprio conteúdo do artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição de 1988, ao afirmar que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Esse dispositivo revelaria uma antinomia entre o artigo 28 da LINDB e a Constituição Federal, caso se considerasse que o dispositivo da LINDB abrange, ainda que em sede de ação regressiva, o ressarcimento pelos danos ao erário.

Ora, a Constituição afirma com todas as letras que o servidor responderá, na hipótese, apenas mediante culpa ou dolo, ao passo que a LINDB, sob tal enfoque, limitaria as possibilidades de reparação do dano previstas na CF. A título de exemplo: em caso de dano causado por agente público a um particular, este será reparado objetivamente pelo Estado, ou seja, sem a necessidade de demonstração de culpa ou dolo, ao passo que o Estado encontrar-se-á limitado para reaver tal prejuízo em face da necessidade de comprovação, não apenas da culpa, mas de uma modalidade mais gravosa: o erro grosseiro.

Aqui defende-se uma interpretação conforme a Constituição, de modo a preservar o texto legal, observando a devida deferência ao legislador ordinário. Em outras palavras, o texto constitucional está tratando de ressarcimento aos cofres públicos no exercício do seu direito de regresso de modo a garantir a observância do princípio constitucional da eficiência (artigo 37, caput, da CF/88).

É nesse mesmo sentido — ainda que a matéria tenha sido objeto de novos debates — que a Constituição previu o princípio da imprescritibilidade das ações de ressarcimento do erário, a exemplo daquelas oriundas de tomada de contas especial, a fim de robustecer o princípio da boa administração.

Por seu turno, o artigo 28 da LINDB, na essência dos parágrafos 2º e 3º do artigo 22 da mesma lei, trata apenas do direito sancionador, em especial o observado pela autoridade na sua função administrativa. Refere-se às condições de aplicação de penalidades sobre as quais o gestor ou parecerista estarão sujeitos a partir de agora. De sorte que as sanções administrativas, a exemplo de imposição de multas ou de inabilitação para exercício de cargo em comissão ou função de confiança, exigirão doravante a comprovação do dolo ou do erro grosseiro. Algo bem diferente da recomposição dos prejuízos causados ao erário, dado que não se trata de sanção, porquanto não está presente a finalidade punitiva, mas de medida de ressarcimento ao erário, a qual se aproxima mais da teoria da responsabilidade civil do que da responsabilidade de natureza penal ou sanção administrativa. Destaque-se, neste ponto, a lição do professor Fábio de Medina Osório[5]:

O que importa ressaltar, nesse contexto, é que as medidas de cunho ressarcitório não se integram no conceito de sanção administrativa, pois não assumem efeito aflitivo ou disciplinar, não ambicionam a repressão, mas sim a reparação do dano, assumindo conteúdo restituitório, reparatório, submetendo nesse ponto a princípios próprios, específicos, mais próximos, naturalmente, do Direito Civil

De fato, tal conteúdo da nova lei é mais consentâneo com o Direito punitivo; primeiro, porque nesta seara o potencial lesivo aos direitos fundamentais possui maior dimensão; segundo, porque a responsabilidade subjetiva encontra contornos mais exigentes; e, finalmente, porque nele se verifica maior limitação ao poder punitivo do Estado, que deverá observar princípios como da legalidade, tipicidade, segurança jurídica, proporcionalidade, devido processo legal e ampla defesa, dentre outros.

O artigo 28 da LINDB adentra precisamente no campo da culpabilidade administrativa, pois traduz perfeitamente a posição de Ferrajoli ao atribuir à culpabilidade a noção de exigibilidade e de inexigibilidade de conduta diversa[6]. Com efeito, entendemos que a capacidade sancionadora do Estado restou ainda mais reduzida com tal dispositivo. Doravante, caso não se configure a ocorrência de dolo ou erro grosseiro, a responsabilidade do agente público restará afastada no âmbito do emancipado Direito Administrativo sancionador, ao passo que o ressarcimento ao erário estará sujeito à demonstração do dano, do nexo causal e da conduta do agente consubstanciada na culpabilidade em sentido amplo, tomando como parâmetro o proceder de um gestor público que atua com o zelo, a competência e a responsabilidade exigidos pelo cidadão.

Feitas tais considerações, é o momento de partirmos para uma definição de erro grosseiro.

Por se tratar de conceito jurídico indeterminado, ele “compreende uma zona de certeza positiva, dentro da qual ninguém duvida do cabimento da aplicação da expressão que o designa e uma zona de certeza negativa em que seria certo que por ela não estaria abrigada[7]”. Logo, as dúvidas só têm cabimento no intervalo entre as duas zonas, ou seja, na zona de incerteza. Isso significa que em inúmeros casos será induvidoso que uma situação se configure como erro grosseiro. Importante sublinhar que na delimitação de tal conceito vago e impreciso deve-se evitar um conteúdo dissonante daquele socialmente reconhecido. Em suma, o melhor conceito será aquele compreendido no campo delimitado de entendimento razoável, corrente, isto é, aquele que é normalmente captado pelos administradores[8].

A nosso ver, o artigo 28 da LINDB igualou, para fins de exercício da pretensão punitiva estatal em face do gestor, o grau de exigência da culpabilidade requerida para o parecerista jurídico, assentado no Mandado de Segurança 24.631/DF/STF, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa.

Conforme já defendíamos em artigo anterior[9], advogamos que o erro grosseiro consiste basicamente na inobservância dos mais singelos deveres objetivos de cuidado, em modalidades graves de imperícia, de imprudência e de negligência, averiguadas obviamente no caso concreto. Nesse sentido, oportuno trazer a lição do mestre Pontes de Miranda[10] a respeito do conceito:

Refere-se a esta modalidade de culpa como “a culpa crassa, magna, nímia, como se dizia, que tanto pode haver no ato positivo como no negativo, é a culpa ressaltante, a culpa que denuncia descaso, temeridade, falta de cuidados indispensáveis. Quem devia conhecer o alcance do seu ato positivo ou negativo incorre em culpa grave”.

Como se verifica, o erro grosseiro está intrinsecamente ligado a um agir com desleixo, incúria, desmazelo, desprezo à coisa pública. Um exemplo permitirá aclarar o conceito: suponha que o gestor, no encerramento do exercício financeiro, receba descentralizações vultosas para aquisição de gêneros alimentícios. A fim de não “perder” tais recursos orçamentários, faz aquisições bem acima da sua capacidade de estoque, resultando na deterioração de itens perecíveis, em razão da perda de validade. Nessa hipótese, restaria caracterizado o erro grosseiro.

Muitos exemplos podem se somar a este, o fato é que, apartado da aplicação de sanções como a multa, o dever de recomposição do erário é certo. Nesse sentido, é a distinção que a Lei Orgânica do TCU (Lei 8.443/92) faz entre a responsabilidade pela reparação do dano e a responsabilidade para fins de sanção, senão vejamos:

Art. 19. Quando julgar as contas irregulares, havendo débito, o Tribunal condenará o responsável ao pagamento da dívida atualizada monetariamente, acrescida dos juros de mora devidos, podendo, ainda, aplicar-lhe a multa prevista no art. 57 desta Lei, sendo o instrumento da decisão considerado título executivo para fundamentar a respectiva ação de execução.

Parágrafo único. Não havendo débito, mas comprovada qualquer das ocorrências previstas nas alíneas a, b e c do inciso III, do art. 16, o Tribunal aplicará ao responsável a multa prevista no inciso I do art. 58, desta Lei (grifou-se).

Em resumo, sustentamos neste artigo que, independentemente da definição que venha a ser atribuída ao termo “erro grosseiro”, o alvo ou campo de incidência do artigo 28 da LINDB consiste no Direito sancionador, não devendo ser confundido com os requisitos para a imputação de débitos a pessoas jurídicas ou naturais em face do dever de ressarcimento ao erário, sob pena de fusão indevida de sistemas jurídicos diversos.

Finalmente, salienta-se que a opinião emitida neste trabalho reflete uma posição doutrinária dos autores e, portanto, não deve ser confundida com o entendimento que eventualmente possa ser sufragado pelo Tribunal de Contas da União.


[1] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1980.
[2] SAMPAIO JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão e dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 291).
[3] http://www.osconstitucionalistas.com.br/conversas-academicas-luis-roberto-barroso-i. Acessado em 3/5/2018.
[4] CALIXTO, Marcelo Junqueira. Breves considerações em torno do art. 944, parágrafo único, do Código Civil. Âmbito jurídico.
[5] Osório, Fabio de Medina. Direito Administrativo Sancionador. São Paulo, RT, 2015.
[6] Luigi Ferrajoli, Derecho y razón – Teoria Del garantismo penal, p.487-505.
[7] BANDEIRA DE MELO, Celso Antonio. Discricionariedade e controle jurisdicional. Ed. 11. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 29.
[8] ______. Discricionariedade e controle jurisdicional. Ed. 11. São Paulo: Malheiros Editores, 2012. P. 30.
[9] http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI278635,41046-O+Projeto+de+Lei+744817+reduz+a+capacidade+de+atuacao+do+TCU
[10] Pontes de MIRANDA. Tratado de Direito Privado, vol. XXIII, Rio de Janeiro, Borsói, 1958, p. 72.

Autores

  • Brave

    é auditor do TCU, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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    é auditor do TCU, graduado em Direito pela Unirio e especialista em Direito Administrativo pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

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