Opinião

O uso ilegal da força na Síria e as deliberações do Conselho da ONU

Autor

  • Tatiana Cardoso Squeff

    é professora adjunta de Direito Internacional Ambiental e do Consumidor na UFRGS professora do PPGDI da UFU e do PPGRI da UFSM doutora em Direito Internacional pela UFRGS/U. Ottawa mestra em Direito Público pela Unisinos/U. Toronto membro da ILA-Brasil e da Asadip pesquisadora do Neti/USP e pós-doutoranda em direitos e garantias fundamentais na FDV.

12 de maio de 2018, 10h42

No dia 7 de abril de 2018, o governo da Síria foi acusado de utilizar-se novamente de armas químicas contra rebeldes na região de Douma, situada na região metropolitana de Damasco, capital do país, matando cerca de 75 pessoas e atingindo outras 500. Estima-se que Cloro e Gás Sarin foram utilizados – informação essa que ainda será confirmada pela Organização Para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), organização internacional situada em Haia que tem como objetivo não só monitorar o manuseio de tais artefatos, como também estimular o desuso e a destruição de arsenais químicos da qual a Síria é membro desde 2013, a qual teve acesso a Douma no dia 18 de abril após um tiroteio no local no dia anterior ter impedido a sua entrada.

Essa não foi a primeira vez que o governo de Bashar al-Assad usa armas químicas na guerra civil que já dura sete anos.[1] A última vez havia sido quase exatos 12 meses, eis que no dia 4 de abril de 2017 a cidade de Khan Sheikhoun, no norte do país, foi palco de um ataque com Gás Sarin, vitimando cerca de 100 pessoas e contaminando outras 300, o que foi devidamente confirmado pela OPAQ em junho de 2017[2].

As semelhanças nos ataques não se limitam ao uso de armas químicas, mas também restam nas consequências. Em 2017, o governo Trump, o qual havia recentemente assumido a Presidência, ordenou um ataque de 59 mísseis Tomahawk contra uma base aérea de Al Shayrat – local usado pelo governo sírio para estocar armas químicas até 2013 – que foi largamente criticado à época pelo presidente russo, Vladmir Putin.[3]

Situação essa que se repetiu em 14 de abril de 2018, quando uma coalisão formada por Estados Unidos, França e Reino Unido lançaram uma série de ataques aéreos contra bases militares onde seriam guardadas armas químicas por al-Assad, em retaliação ao suposto uso de armas químicas por este na semana anterior.[4] Desta vez, mais de 100 mísseis da coalisão foram interceptados pelo sistema de defesa sírio, formado por armamento antiaéreo russo, o que acirrou os embates entre os presidentes Vladmir Putin e Donald Trump.

Isso porque, mesmo com declarações por parte do norte-americano de que não mais colaborariam com a reconstrução do país[5] e sairiam da Síria[6], deve-se ressaltar que o presidente Trump ordenou um ataque aéreo recentemente contra forças que lutam ao lado do regime sírio, vitimando uma série de nacionais russos que atuavam na região. Logo, qualquer manifestação no sentido de que os ataques da coalizão seriam uma represália justificável aos os bombardeios em Douma seria precipitada, ao menos até que a OPAQ indique se armas químicas foram utilizadas. Afinal, as tensões entre Estados Unidos e Rússia já vem se deteriorando desde a anexação da Crimeia por parte dos russos em 2014[7] ao o fechamento do consulado norte-americano em São Petersburgo e a expulsão de 60 diplomatas norte-americanos do país pelos desdobramentos do caso do envenenamento do ex-espião Skripal e sua filha, Yulia, em Londres, em março de 2018[8] – isso sem contar a contínua névoa que gira em torno da interferência de cidadãos russos nas eleições norte-americanas[9] e que vem gerando desdobramentos graves no cenário doméstico do país[10].

De toda sorte, mesmo diante de tais atrocidades, é importante frisar que o Direito Internacional não autoriza os Estados Unidos (e nem a colisão formada por Washington, Paris e Londres) a atacarem a Síria. Do ponto de vista legal, conforme a Carta da ONU, o uso da força é proibido[11], sendo apenas admitidas duas exceções: em legítima defesa[12] ou quando expressamente autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU[13].

No primeiro caso, seria necessário que um ato de agressão armada[14] tivesse ocorrido ao menos contra Estados Unidos, França ou Grã Bretanha (ou outro país membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte[15]) para que esses fossem autorizados pelo Direito Internacional a contra-atacar. Quando não for esse o caso, somente poderia haver o uso da força quando devidamente autorizado pelo Conselho de Segurança.

O Conselho de Segurança, porém, não pode ordenar uma ação armada direta – nem mesmo quando fundamentando a sua decisão em questões humanitárias. Faz-se necessário que o Conselho tenha tentado outras medidas mais “suaves”, tais como as sanções econômicas, a fim de convencer o país a cumprir com as suas obrigações internacionais.[16] Somente quando frustradas essas medidas é que o Conselho de Segurança poderia ordenar um ataque consoante a Carta da ONU.

Ademais, para que uma medida seja aprovada, a resolução precisa obter no mínimo 09 votos favoráveis de um total de 15, sem que nenhum dos membros permanentes (Estados Unidos, Rússia, França, Rino Unido e China) votem de maneira contrária à medida. Caso um membro permanente rejeite a resolução, ela não é aprovada.[17]

Esse é justamente o cenário na síria: no dia 10 de abril deste ano, o Conselho de Segurança se reuniu em caráter de emergência, sem que nenhuma medida fosse aprovada – a única tentativa, vetada pela Rússia, foi de que uma investigação independente, paralela a da OPAQ, deveria ser constituída para averiguar se houve ou não o uso de agentes químicos em Douma. Por mais que uma série de sanções econômicas já estejam em vigor contra a Síria[18], nenhuma medida que sugerisse o uso da força foi votada. Nem mesmo em 2017 conseguiu-se aprovar uma medida condenando o uso de armas químicas no país.[19]

Mesmo assim, a coalisão formada por Washington, Paris e Londres realizou os ataques. Outrossim, mesmo diante de flagrante violação da Carta da ONU, em nova reunião no dia 14 de abril, não se conseguiu aprovar no Conselho uma resolução proposta pela Rússia condenando os ataques aéreos realizados, em razão do veto dos próprios países envolvidos nos bombardeios, lembre-se, todos membros permanentes do Conselho.

Assim sendo, diante desses recorrentes episódios, é oportuno salientar que, para proteger a população civil, o uso da força só é permitido se houver autorização formal e expressa do Conselho de Segurança da ONU. Por mais que a Síria não esteja cumprindo com as suas obrigações, em particular aquelas assumidas perante á OPAQ em 2013, em nenhuma das recentes reuniões o Conselho autorizou que os bombardeiros fossem lançados contra o regime de Bashar al-Assad, configurando em uma clara violação de direito internacional.

 


[1] KIMBALL, Daryl; DAVENPORT, Kelsey. Timeline of Syrian Chemical Weapons Activity, 2012-2018. Arms Control Association. Washington D.C., 13 abr. 2018. Disponível em: <https://www.armscontrol.org/factsheets/Timeline-of-Syrian-Chemical-Weapons-Activity>. Acesso em: 23.04.2018.

[2] OPCW. OPCW Fact-Finding Mission Confirms Use of Chemical Weapons in Khan Shaykhun on 4 April 2017. Hague, 30 jun. 2017. Disponível em: <https://www.opcw.org/news/article/opcw-fact-finding-mission-confirms-use-of-chemical-weapons-in-khan-shaykhun-on-4-april-2017/>. Acesso em: 23.04.2018.

[3] GORDON, Michael R.; COOPER, Helene; SHEAR, Michael D. Dozens of U.S. Missiles Hit Air Base in Syria. The New York Times. Nova York, 06 abr. 2017. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/04/06/world/middleeast/us-said-to-weigh-military-responses-to-syrian-chemical-attack.html>. Aecsso em: 23.04.2018

[4] KATOV, Mark. U.S., Allies Hit 3 Syrian Sites Linked To Chemical Weapons Program. National Public Radio. Washington D.C., 13 abr. 2018. Disponível em: <https://www.npr.org/sections/thetwo-way/2018/04/13/601794830/u-s-launches-attacks-on-syria>. Acesso em: 23.04.2018

[5] SCHMITT, Eric; COOPER, Helena; RUBIN, Alissa J. Trump Orders State Dept. to Suspend Funds for Syria Recovery. The New York Times. Nova York, 30 mar. 2018. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2018/03/30/world/middleeast/syria-us-coalition-deaths.html>. Acesso em: 23.04.2018

[6] COHEN, Zachary; BROWNE, Ryan. US Military: Who stands to gain if Trump pulls the US out of Syria? CNN Politics. Atlanta, 31 mar. 2018. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2018/03/31/politics/us-withdraw-syria-trump/index.html>. Acesso em: 23.04.2018

[7] PUTIN'S Stance on Ukraine Supported by Minority of Nations. Bloomberg. Nova York, 14 mar. 2017. Disponível em: <https://www.bloomberg.com/graphics/infographics/countries-react-to-russian-intervention-in-crimea.html>. Acesso em: 23.04.2018.

[8] REUTERS. Russia expels 60 US diplomats, orders consulate closed. Public Radio International. Minneapolis, 29 mar. 2018. Disponível em: <https://www.pri.org/stories/2018-03-29/russia-expels-60-us-diplomats-orders-consulate-closed>. Acesso em: 23.04.2018.

[9] GRUNBERGER, Alessia. Putin 'couldn't care less' if Russian citizens meddled in US election. CNN. Atlanta, 12 mar. 2018. Disponível em: < https://edition.cnn.com/2018/03/11/politics/putin-nbc-interview-russian-interference/index.html>. Acesso em: 23.04.2018.

[10] CILLIZZA, Chirs. Why deep down Donald Trump really wants to sit down with Robert Mueller. CNN Politics. Atlanta, 04 abr. 2018. Disponível em: <https://edition.cnn.com/2018/04/04/politics/donald-trump-mueller-interview/index.html>. Acesso em: 23.04.2018.

[11] ONU. Carta da ONU. 1945. Art. 2: “A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios: (…) 4 – Todos os Membros deverão evitar em suas relações internacionais a ameaça ou o uso da força contra a integridade territorial ou a dependência política de qualquer Estado, ou qualquer outra ação incompatível com os Propósitos das Nações Unidas” (ONU. Carta da ONU. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 23.04.2018).

[12] Cf. Art. 51 da Carta da ONU: “Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual ou coletiva no caso de ocorrer um ataque armado contra um Membro das Nações Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos Membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a efeito, em qualquer tempo, a ação que julgar necessária à manutenção ou ao restabelecimento da paz e da segurança internacionais” (ONU. Carta da ONU. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 23.04.2018).

[13] Cf. Art. 42 da Carta da ONU: “No caso de o Conselho de Segurança considerar que as medidas previstas no Artigo 41 seriam ou demonstraram que são inadequadas, poderá levar a efeito, por meio de forças aéreas, navais ou terrestres, a ação que julgar necessária para manter ou restabelecer a paz e a segurança internacionais. Tal ação poderá compreender demonstrações, bloqueios e outras operações, por parte das forças aéreas, navais ou terrestres dos Membros das Nações Unidas” (ONU. Carta da ONU. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 23.04.2018).

[14] Nos termos da Resolução n. 3314 de 1973, art. 1: “A agressão é o uso da força armada por um Estado contra a soberania, integridade territorial ou independência política de outro Estado, ou de qualquer forma incompatível com a Carta das Nações Unidas, tal Como decorre da presente definição” (ONU. Assembleia Geral. Resolução n. 3314. 1973. Disponível em: <www.zoom.org.pt/images/311/73f999f1/59.pdf>. Acesso em: 23.04.2018).

[15] Conforme o art. 5 do Tratado constitutivo da OTAN, a agressão contra um país do bloco representa uma agressão à todos os membros da organização. Cf. NATO. The North Atlantic Treaty. Washington D.C., 04 abr. 1949. Art. 5: "The Parties agree that an armed attack against one or more of them in Europe or North America shall be considered an attack against them all and consequently they agree that, if such an armed attack occurs, each of them, in exercise of the right of individual or collective self-defence recognised by Article 51 of the Charter of the United Nations, will assist the Party or Parties so attacked by taking forthwith, individually and in concert with the other Parties, such action as it deems necessary, including the use of armed force, to restore and maintain the security of the North Atlantic area" Disponível em: <https://www.nato.int/cps/ic/natohq/official_texts_17120.htm>. Acesso em: 23.04.2018.

[16] Essas medidas seriam amparadas pelo Art. 41 da Carta da ONU, o qual prescreve que: “O Conselho de Segurança decidirá sobre as medidas que, sem envolver o emprego de forças armadas, deverão ser tomadas para tornar efetivas suas decisões e poderá convidar os Membros das Nações Unidas a aplicarem tais medidas. Estas poderão incluir a interrupção completa ou parcial das relações econômicas, dos meios de comunicação ferroviários, marítimos, aéreos , postais, telegráficos, radiofônicos, ou de outra qualquer espécie e o rompimento das relações diplomáticas” (ONU. Carta da ONU. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 23.04.2018).

  1. Cf. Art. 27 da Carta da ONU: ”(1) Cada membro do Conselho de Segurança terá um voto; (2) As decisões do conselho de Segurança, em questões processuais, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove Membros; (3) As decisões do Conselho de Segurança, em todos os outros assuntos, serão tomadas pelo voto afirmativo de nove membros, inclusive os votos afirmativos de todos os membros permanentes, ficando estabelecido que, nas decisões previstas no Capítulo VI e no parágrafo 3 do Artigo 52, aquele que for parte em uma controvérsia se absterá de votar” (ONU. Carta da ONU. 1945. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/d19841.htm>. Acesso em: 23.04.2018).

[18] USA. Us. Department. Syria Sanctions. Washington D.C., s/d. Disponível em: <https://www.state.gov/e/eb/tfs/spi/syria/>. Acesso em: 23.04.2018; EU. Conselho da União Europeia. Syria – EU extends sanctions against the regime by one year. Luxemburgo, 29 mai. 2017. Disponível em: <www.consilium.europa.eu/en/press/press-releases/2017/05/29/syria-sanctions/>. Acesso em: 23.04.2018.

[19] UN. Russia blocks Security Council action on reported use of chemical weapons in Syria’s Khan Shaykhun. UN News. Nova York, 12 abr. 2017. Disponível em: <https://news.un.org/en/story/2017/04/555292-russia-blocks-security-council-action-reported-use-chemical-weapons-syrias-khan>. Acesso em: 23.04.2018

Autores

  • Brave

    é professora de Direito Internacional e de Relações Internacionais na Unifin/RS, doutora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mestre em Direito Público pela Unisinos e especialista em Relações Internacionais Contemporâneas e em Direito Internacional, ambas pela UFRGS.

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