Ambiente Jurídico

O extermínio de animais de rua pelo poder público e por cidadãos

Autor

  • Eduardo Coral Viegas

    é promotor de Justiça no MP-RS graduado em Direito pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) especialista em Direito Civil mestre em Direito Ambiental palestrante ex-professor de graduação universitária atualmente ministrando cursos e treinamentos e integrante da Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. Autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

12 de maio de 2018, 8h05

Spacca
A divulgação de sentença condenatória prolatada em 24 de abril de 2018[1] na Comarca de Cachoeira do Arari, no Pará, reabriu uma discussão que atingiu repercussão internacional. Desta vez, a mídia se deparou com a condenação de um ex-prefeito a 20 anos de reclusão e multa milionária pela prática de crime ambiental contra a fauna e outros delitos associados.

O fato consistiu basicamente na adoção de uma política pública desastrosa do prefeito à época (2013), estribada em buscar uma resolução simplista para o problema de excesso de cães no município de Santa Cruz do Arari, pagando à população R$ 5 por macho e R$ 10 por fêmea apresentados à municipalidade, que, por sua vez, veio a dar fim aos animais com requintes de crueldade.

Na sentença, o magistrado destacou que a população da localidade é miserável e, por isso, sentiu na recompensa pela entrega dos cães uma oportunidade de ganhar algum dinheiro — minguado — para o básico.

A perseguição e imobilização dos cachorros foi filmada, assim como a ação de serem arrastados pelas ruas da cidade sofrendo graves lesões e mutilações, até virem a ser colocados em porões de embarcações para serem jogados nas águas de um rio, onde morriam afogados.

Um dos barcos era do poder público municipal. Esse acabou sendo um elemento diferencial para que a condenação do ex-prefeito e mandante dos crimes fosse elevada. O artigo 1º, II, do Decreto-lei 201/67, incidente na espécie, prevê sanção reclusiva de 2 a 12 anos. Além desse delito, outro se somou para tornar a pena robusta, consistindo em coação no curso do processo[2], apenado com 1 a 4 anos de reclusão e multa.

De fato, a pena do crime de maus-tratos a animais é de delito de menor potencial ofensivo: detenção de 3 meses a 1 ano[3]. O acréscimo é de 1/6 a 1/3 se ocorre a morte do animal[4]. Ou seja, a sanção é irrisória.

Desse modo, mesmo com a morte de centenas de cães (estima-se mais de 400), tendo havido a incidência da majorante do crime continuado (aumento máximo de 2/3), a pena pouco ultrapassaria 2 anos de detenção, sendo passível — em tese — inclusive da aplicação de benefícios penais que afastam a segregação prisional.

Tanto é assim que, ao lado do ex-prefeito, foram condenados outros seis coautores, todos exclusivamente por violação do artigo 32, parágrafo 2º, da Lei 9.605/98. Quatro deles receberam pena de detenção aquém de 2 anos, enquanto outros dois tiveram condenação pouco superior a tal limite, sendo a maior de 2 anos e 4 meses. Em todos os casos foi aplicada multa e fixado o regime semiaberto como inicial de cumprimento da pena, sem substituição por medidas diversas da prisão.

A sentença obviamente é sujeita a recurso, e não nos compete neste espaço o exame da prova carreada ao feito. Ao lado disso, importa destacar que o julgado trata de um caso de extrema crueldade contra a fauna, e que se diferencia de tantos outros em razão do número de animais que foram submetidos a crueldade e morte, pela forma como os maus-tratos foram impostos e pela pena aplicada ao mandante dos delitos, que é equiparada àquela não raras vezes fixada em crimes de homicídio.

No exame do julgado, porém, não se vê apenas aspectos positivos relacionados à importância que o Direito deu ao tema ou à proporcionalidade da resposta estatal, impondo-se também a crítica de alguns aspectos que acreditamos estarem incorretos. O primeiro diz respeito ao fato de o juiz ter afirmado, no corpo do decisum, que o sacrifício de animais somente pode se dar após um prazo razoável para que o dono possa resgatá-lo, e de forma indolor: “Pode ser em câmara de gás ou de injetável. Nunca por afogamento, precedida de maus-tratos, tortura, crueldade” (fl. 19).

De fato, a morte de animais pode ser recomendada em algumas hipóteses, mas sua execução deve ser indolor[5]. O uso de câmara de gás, indicado na sentença, já foi reconhecido pelo STJ como ato de crueldade, que é vedado na CF e pela legislação brasileira. Em precedente no qual o município de Belo Horizonte exterminou cães e gatos em centro de zoonose dessa forma, o STJ afirmou que a morte por asfixia equivale a tornar esses espaços públicos destinados à promoção da saúde dos animais verdadeiros “campos de concentração”.

O segundo ponto da sentença para o qual chamamos a atenção é que o cálculo da pena do mandante nos parece bastante equivocado, impedindo que se saiba a sanção imposta em face de cada um dos três delitos.

Acontece que, após o exame do artigo 59 do CP, o magistrado fixou a pena-base em 8 anos de reclusão para os crimes, indistintamente. Após, fez incidir uma agravante da Lei dos Crimes Ambientais sobre a pena-base, passando a pena provisória para 9 anos. No terceiro momento, aplicou uma majorante da mesma Lei 9.605/98 sobre os 9 anos, alcançando 12 anos de reclusão. Por fim, aumentou a pena em 2/3 pela continuidade delitiva, consolidando-a em 20 anos de reclusão.

Veja-se que há diversos aspectos a se considerar, e que podem ser corrigidos em grau de apelação, como: a) a pena-base deveria ser fixada sobre cada crime; b) a agravante e majorante previstas na Lei 9.605/98 incidem apenas sobre o crime do artigo 32 dessa lei, e não sobre os demais delitos; c) a continuidade delitiva pode acontecer — em tese — entre os crimes de maus-tratos, não entre esses e os demais, de forma que, havendo concurso material entre os grupos de ilícitos, a pena poderia ser bem superior; d) reclusão e detenção não podem ser somadas, tornando a pena final exclusivamente de reclusão, até porque a detenção só pode ser cumprida no aberto ou semiaberto (artigo 33 do CP).

Feitas tais ponderações sobre o caso mais recente e em evidência nos últimos dias, passamos ao exame da ação de extermínio em massa de animais de pequeno porte julgada em 28/12/2017, por sentença proferida na Comarca de Bom Jesus (RS), em processo[6] no qual foram condenados três réus pela promoção da mortandade de 126 cães e gatos na madrugada do dia 19 para 20 de novembro de 2014.

Segundo consta do julgado de primeiro grau, por ordem do prefeito da época, os acusados se organizaram para “resolver o problema dos cães” da cidade. Então, tiveram a “brilhante ideia” de colocar veneno em graxa/carne e, durante a madrugada, espalhar o “alimento” pelas ruas do município. Os animais comeram a mistura e foram envenenados com estricnina, morrendo após grande sofrimento, já que o veneno causa paralisia dos músculos, culminando na morte por asfixia, com precedência de convulsões. Segundo uma testemunha, “houve bichos que explodiram vivos”.

Como destacou a juíza, os servidores públicos que deveriam zelar pela proteção da fauna acabaram fazendo exatamente o inverso, causando a “matança generalizada”. Na esteira do julgado, houve distorção de valores dos agentes delitivos de forma “gigantesca”, apesar do pretexto de um suposto bem-estar comunitário, consistente em fazer uma “limpa” na cidade.

Neste caso, as penas ficaram irrisórias, apesar da similitude com o caso do Pará em termos de gravidade. Em ambos os processos, houve reconhecimento da continuidade delitiva. Porém, no processo do Norte do país, dois outros delitos reconhecidos fizeram a pena final restar elevada. No do Sul, a maior pena ficou em 2 anos, 2 meses e 19 dias de detenção, e 1,5 salário mínimo de multa. Para os três condenados, houve a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos.

Vejamos que os três casos descritos tiveram uma motivação comum e ação pública similar para a “resolução” de um problema de ordem pública. No Pará, em Minas Gerais e no Rio Grande do Sul, o poder público deparou-se com excesso de cães e/ou gatos nas ruas, provocando transtornos que podem ser imaginados e compreendidos. E decidiram solucionar o impasse da forma mais simples: afogando os animais, colocando-os em câmaras de gás ou envenenando-os.

Todas as medidas são atentatórias ao artigo 225, parágrafo 1º, VII, que impõe ao poder público a proteção da fauna, especialmente combatendo as condutas indicadas na própria CF, que menciona expressamente a crueldade contra animais, tipificada no Direito brasileiro como crime (artigo 32 da Lei 9.605/98), apesar de catalogada como infração de menor potencial ofensivo, no que o legislador cometeu grave equívoco, porquanto permite que o extermínio injustificado e cruel de centenas de cães, por exemplo, resulte em prestação de serviços à comunidade e multa módica, ante a aplicação da continuidade delitiva[7].

E poderiam os municípios agir de outro modo frente a esse problema? Um exemplo recente mostra que sim. A Fundação de Meio Ambiente do Município de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre, lançou no dia 3 de maio o programa Adote um Amigo, por meio do qual busca incentivar a adoção de cães abrigados no canil municipal — atualmente são 362 animais aptos à doação.

O local abriga animais abandonados e submetidos a maus-tratos, oferecendo serviços de resgate, castração e acompanhamento veterinário. Segundo o biólogo Jackson Müller, diretor-presidente da fundação, no primeiro trimestre deste ano foram recolhidos 375 animais e feitas 600 castrações, medidas de política pública tomadas para a redução do número de animais de rua[8]. Enfim, um exemplo positivo a ser festejado e replicado em meio a outros que devem ser criticados e repudiados.

O último precedente é possivelmente o mais grave, se considerado o sofrimento impingido aos animais. Trata-se de situação recentemente decidida em segunda instância pelo Tribunal de Justiça de São Paulo[9], em que foi condenada uma mulher que acolhia animais abandonados para supostamente os colocar em futura adoção, mas que comprovadamente veio a matar 37 cães e gatos — 7 eram gatos neonatos — no dia 12/1/2012.

Porém, como ressalta a promotora de Justiça paulista Vania Tuglio, em artigo publicado na Espanha a respeito do precedente, foram mortos indevidamente pela acusada centenas de animais de forma cruel em mais de seis anos[10], como registra a sentença.

Protetores de animais desconfiaram que a suspeita recebia muitos bichos mensalmente, quando é consabida a dificuldade em os colocar em lares adotivos. Contrataram então um detetive, que por 20 dias percebeu dezenas de animais entrarem na casa da “amante” de cães e gatos, mas não os viu saírem.

No dia do flagrante, o detetive presenciou a entrega à acusada dos animais, os quais foram mortos no mesmo dia e colocados em sacos de lixo na porta de vizinhos. Os sacos foram abertos e lá estavam os cadáveres, que restaram periciados, e foi por esses 37 crimes materializados que a acusação foi deduzida, e a condenação, imposta.

Conforme o acórdão, a condenada amarrava os animais e neles injetava drogas sem efeito anestésico. Em seguida, golpeava-os inúmeras vezes com agulha, na região torácica, porém não no coração, fazendo com que perdessem sangue gradualmente, provocando-lhes morte lenta e dolorosa. Uma das cadelas apresentava 18 perfurações milimétricas.

Além disso, os animais que moravam na casa eram mau tratados de outras formas, sendo que os poucos encontrados no local, quando do cumprimento de mandado de busca e apreensão, estavam desnutridos por passarem fome e com diversas doenças.

Ao contrário dos casos provocados pelo poder público, em que ficou constatado que os agentes envolvidos pretendiam fazer uma “faxina” nas ruas — embora escolhidas as piores formas possíveis —, no caso de São Paulo, o Judiciário afirmou ter evidenciado que a “barbárie cometida” pela ré era motivada por “um sentimento de ódio e ao mesmo tempo prazer, e não por outra razão”.

No tocante à pena imposta à acusada pelos 37 crimes de maus-tratos, acabou alcançando 16 anos, 6 meses e 26 dias de detenção e 646 dias-multa. A sentença e o acórdão, no exame do artigo 59 do CP, elevaram a pena-base pela incidência de tortura, valorando a conduta como mais gravosa do que o habitual em situações similares de maus-tratos seguidos de morte. Além disso, a ré foi condenada a mais 1 ano de reclusão e 10 dias-multa pela incidência do artigo 56 da Lei 9.605/98. Como se percebe, a parte mais substancial da condenação desta vez foram os crimes de maus-tratos seguidos de morte.

O diferencial em relação aos casos do RS e do PA, nesse ponto, é que a sentença paulista e o TJ-SP acolheram a tese ministerial no sentido de que o concurso de crimes é o material, e não o continuado. Por isso, as penas foram somadas. O tribunal registrou que adota a teoria objetivo-subjetiva para a continuidade delitiva, e com base nela a delinquência habitual da acusada terminou por afastar a modalidade mais benéfica de concurso delitivo.

Na decisão de 1º grau[11], há pertinente análise a respeito do inequívoco caráter senciente dos animais. A senciência é comum aos animais e aos seres humanos, permitindo reforçarmos ser inadmissível uma matança indiscriminada de animais para que se promova uma “limpeza” das ruas relativamente a cães “sem dono”, assim como é inconcebível admitir que o poder público viesse a jogar “moradores de rua” em rios para se afogarem, coloca-los em câmaras de gás ou dar-lhes comida com veneno para “resolver” o problema da superpopulação crescente de drogados, doentes mentais e pessoas sem família que vivem ao relento.

Fatos como esses, praticados por agentes do Estado, que têm a obrigação de agir exatamente em sentido oposto, devem ser reprimidos com rigor, da mesma forma como aqueles praticados por particulares que, sob qualquer pretexto, venham a provocar atos de crueldade contra animais, à semelhança da “monstruosidade” que vimos acontecer em São Paulo e que levou sua autora — serial killer de animais — a estar presa neste momento por força da condenação de segunda instância, com base em mandado de segregação expedido por força do acórdão, decisão que está endossada por aresto do STJ, que não conheceu Habeas Corpus da paciente[12].


[1] Processo 0004387-05.2016.8.14.0011.
[2] Artigo 344 do Código Penal.
[3] Artigo 32 da Lei 9.605/98.
[4] Artigo 32, parágrafo 2º, da Lei 9.605/98.
[5] O artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos dos Animais (Bélgica, 1978) reza o seguinte: “1. Nenhum animal será submetido nem a maus tratos nem a atos cruéis. 2. Se for necessário matar um animal, ele deverá ser morto instantaneamente, sem dor e de modo a não provocar-lhe angústia”.
[6] Processo 083/2.14.0000830-6.
[7] Como é o caso da sentença de Bom Jesus (RS).
[8] <https://gravatai.atende.net/#!/tipo/noticia/valor/9847>. Acesso em 5.mai.2018.
[9] Apelação 0017247-24.2012.8.26.0050, julgada em 9/11/2017.
[10] <http://revistes.uab.cat/da/article/view/v9-n2-tuglio/327-pdf-es>. Acesso em 5.mai.2018.
[11] Processo 0017247-24.2012.8.26.0050.
[12] HC 427.642.

Autores

  • é promotor de Justiça no MP-RS, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, especialista em Direito Civil e mestre em Direito Ambiental. Foi professor de graduação universitária e atualmente ministra aulas em cursos de pós-graduação e extensão. Integra a Associação Brasileira do Ministério Público do Meio Ambiente. É autor dos livros Visão Jurídica da Água e Gestão da Água e Princípios Ambientais.

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