Opinião

A ilegalidade do sigilo nas negociações sobre o auxílio-moradia na AGU

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11 de maio de 2018, 7h17

Em reportagem das jornalistas Martha Beck e Renata Mariz publicada no último sábado (5/5), O Globo revelou que a Advocacia-Geral da União mudou de opinião a propósito da polêmica envolvendo o pagamento de auxílio-moradia aos magistrados e membros do Ministério Público. Se outrora a AGU sustentava, dentre outras questões, o caráter ilegal do auxílio-moradia, na medida em que a Lei Orgânica da Magistratura, em seu artigo 65, exige a edição de lei para sua instituição, agora, de acordo com a notícia, a instituição passou a aceitar que o benefício continue sendo pago com base em resoluções do Judiciário e do Ministério Público.

De acordo com O Globo, a AGU não quis se manifestar, por considerar que “sequer pode confirmar se tais afirmações constam da mesa de conciliação”. Para a AGU, o tema estaria submetido a sigilo “por força de dispositivos legais” e por “questões estratégicas necessárias à continuidade das negociações”.

Haveria mesmo dispositivos legais que embasariam o sigilo das autocomposições de litígios envolvendo a administração pública federal? A resposta é negativa.

Como se sabe, em 21 de março, o ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Originária 1.946, decidiu retirar da pauta de julgamentos do dia seguinte diversos processos que tratam do tema do auxílio-moradia para a magistratura, incluindo a Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.645, após requerimento da Associação de Magistrados Brasileiros, com o qual havia concordado a advogada-geral da União, encaminhando-os à Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal. Com esse artifício, o ministro Luiz Fux impediu que houvesse deliberação pública sobre a manutenção ou não de sua liminar, que, desde setembro de 2014, vem causando enorme prejuízo aos cofres públicos da União.

Subsequentemente, foi feita em 3 de abril uma primeira reunião na sede da Advocacia-Geral da União, presidida pela advogada-geral da União, sobre a questão que se encontrava pendente de solução do Plenário do STF, conforme se noticiou no site da AGU. De acordo com a referida notícia, além de “membros e servidores da Advocacia-Geral da União”, participaram da reunião “o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Jayme de Oliveira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Guimarães Feliciano, presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Roberto Carvalho Veloso, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público, Victor Hugo Palmeiro de Azevedo Neto, além de dirigentes de associações estaduais e representantes do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais nos Estados e técnicos do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão”. Não há registro, portanto, da presença de público externo à AGU, de modo que se pode supor que o procedimento ficou restrito à reunião em questão, com base, talvez, no chamado “princípio da confidencialidade”, que, em rigor, não pode ser aplicado, sem o devido cuidado, às autocomposições de conflitos envolvendo a administração pública. Suposição essa que a notícia de O Globo confirmou: a AGU trata o tema como se sigiloso fosse.

Todavia, uma leitura da Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, revela que não há previsão de sigilo nas autocomposições de conflitos no âmbito da administração pública. Com efeito, a referida lei trata de dois temas distintos, porém conexos, quais sejam: a) a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares; e b) a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. É o que se extrai de seu artigo 1º: “Esta Lei dispõe sobre a mediação como meio de solução de controvérsias entre particulares e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública”.

Para além desse artigo 1º, que trata de sumariar seu objeto, referida lei é composta do Capítulo I (“Da mediação”), compreendendo os artigos 2º a 31, do Capítulo II (“Da autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público”), que se estende entre os artigos 32 a 40, e, por fim, do Capítulo III (“Disposições Finais”), com os artigos 41 a 48.

Diversamente dos processos judiciais, marcados pela publicidade de seus atos (artigo 8º do Código de Processo Civil), a mediação entre particulares, de acordo com a Lei 13.140, de 2015, é regida pela confidencialidade. Disso não há dúvida. É o que consta da letra expressa do artigo 2º, VII, da Lei 13.140, de 2015, que trata a confidencialidade como um princípio (e não como uma regra) aplicável à mediação entre particulares.

Tratando-se de princípio, a confidencialidade, mesmo no que tange à mediação, admite, de acordo com a doutrina prevalecente no Brasil, aplicação mediante ponderação. É dizer: a confidencialidade, como um princípio legislado da mediação entre particulares, não é aplicável de forma rígida ou absoluta, como se fosse uma regra. Seu peso, caso a caso, será avaliado pelo aplicador, em contraste com outros princípios também aplicáveis ao instituto da mediação.

Já no que tange à “autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público”, a Lei 13.140, de 2015, não chegou, porém, a consagrar a confidencialidade como um princípio. E, bem vistas as coisas, nem poderia fazê-lo, sob pena de entrar em choque frontal com o princípio da publicidade constante do artigo 37, caput, da Constituição. Nesse sentido, sob o mote da “interpretação sistemática” da Lei 13.140, de 2015, não pode nem deve o intérprete pegar de empréstimo o princípio da confidencialidade que o legislador só cuidou de atribuir expressamente à mediação entre particulares para aplicá-lo também ao instituto da “autocomposição de conflitos em que for parte pessoa jurídica de direito público”. Há muitas razões para desaconselhar a utilização dessa técnica interpretativa com esse viés.

Muito mais adequado, a título de “interpretação sistemática”, é tratar a chamada “confidencialidade” como uma verdadeira excepcionalidade ínsita à mediação entre particulares, em consonância com a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, a chamada Lei de Acesso à Informação, que “regula o acesso a informações previstos no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal”, a qual dispõe, em seu artigo 3º, I, que o direito fundamental de acesso à informação deve ser garantido com a “observância da publicidade como preceito geral e do sigilo como exceção”.

Nessa linha, cabe também destacar que, no âmbito estritamente federal, o “princípio da confidencialidade” não foi consagrado aos métodos de resolução consensual de controvérsias efetivados no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Pública Federal (veja artigo 18 da Estrutura Regimental da Advocacia-Geral da União, constante do Anexo I do Decreto 7.392, de 13 de dezembro de 2010; e artigos 17 a 18 do Ato Regimental 5, de 27 de setembro de 2007).

Aliás, cabe o registro de que na doutrina especializada também se colhe o entendimento de que a confidencialidade não é aplicável aos métodos de resolução consensual de controvérsias envolvendo a administração pública, ou, pelo menos, tem sua relevância, como “princípio”, bastante esmorecida, senão vejamos:

“No sistema brasileiro, contudo, à luz do princípio da publicidade insculpido no artigo 37, caput, da nossa Constituição Federal, não me parece haver outra solução jurídica admissível senão o reconhecimento da inaplicabilidade de confidencialidade, como regra, no processo de mediação envolvendo entes públicos – ao menos no que diz respeito às sessões conjuntas, em que efetivamente se debate e se decide a melhor solução para o problema. No que diz respeito às sessões individuais, que são meramente preparatórias do diálogo e da deliberação, não parece fazer sentido, de outra parte, pensar em quebra de confidencialidade, e sob pena de se limitar em demasia a possibilidade de interação entre mediador e partes e a relação de confiança daí decorrente — ressalvada a hipótese, por evidente, de o mediador ter conhecimento, durante as sessões privadas de ato criminoso ou claramente contrário ao interesse público.

Por ora, é importante referir que o novo Código de Processo Civil brasileiro contém previsão expressa acerca da confidencialidade, não trazendo, porém, nenhuma exceção a ela, nem estabelecendo qualquer regra especial para os conflitos que envolvem entes públicos. Segundo o parágrafo 1º do artigo 166 a ‘confidencialidade se estende a todas as informações produzidas ao longo do procedimento, cujo teor não poderá ser utilizado para fim diverso daquele previsto por expressa deliberação das partes’.

[…]

A Lei 13.140, de 26 de junho de 2015, que resultou da tramitação dos três projetos de lei em questão, não traz, lamentavelmente, qualquer ressalva quanto à confidencialidade. Em tempos de tentativa de implantação de uma cultura da transparência no espaço público, sobretudo após a promulgação da Lei de Acesso à Informação, a grave omissão tanto do novo CPC quanto da nova lei causa espanto e exige uma reação muito séria da comunidade jurídica”[1].

Desse modo, em vez de uma aplicação descontextualizada do princípio da mediação entre particulares constante do artigo 2º, VII, como se fosse uma regra universal para todas as formas de resolução extrajudicial de controvérsias, e, o que é pior, aplicável à autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública, em afronta ao princípio constitucional da publicidade e ao disposto no artigo 3º, I, da Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, não se pode compreender que a AGU trate as negociações sobre o auxílio-moradia sob o manto do sigilo.

Por fim, registro que, no dia 12 de abril, fiz a seguinte sugestão, por meio da Ouvidoria da Advocacia-Geral da União:

“Sugiro que a Advocacia-Geral da União garanta o livre acesso de qualquer cidadão, mediante identificação e procedimento de segurança padrão, à sala de reunião do Edifício Sede da instituição durante as sessões da câmara de conciliação que irá mediar as tratativas entre as entidades que representam magistrados e o poder público federal no que diz respeito à concessão de auxílio-moradia à categoria.

Embasamento: art. 37, caput, da Constituição (publicidade); art. 3º, I, da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011”.

Infelizmente, a resposta dada não foi satisfatória, pois apenas se informou que a proposição foi repassada à Câmara de Conciliação, sem, no entanto, se fazer a análise prévia, prevista no artigo 5º, parágrafo 2º, da Instrução Normativa 1 da Ouvidoria-Geral da União da Controladoria-Geral da União, de 5 de novembro de 2014[2].


[1] SOUSA, Luciane Moessa de. Diretrizes éticas, capacitação, credenciamento e supervisão da atuação de mediadores e conciliadores: contribuições preliminares. In SOUSA, Luciane Moessa de (coord). Mediação de Conflitos: novo paradigma de acesso à justiça. 2 ed. Santa Cruz do Sul: Essere nel Mondo, 2015, p. 130-131.
[2] Art. 5º À sugestão recebida pela ouvidoria será oferecida resposta conclusiva dentro do prazo de 20 (vinte) dias, prorrogáveis, mediante justificativa, por mais 10 (dez).
§ 1º Recebida a sugestão, a ouvidoria deve realizar análise prévia e, se for o caso, encaminhá-la às áreas responsáveis para providências.
§ 2º Será considerada conclusiva a resposta que oferece ao interessado a análise prévia realizada, bem como as medidas requeridas às áreas internas, ou a justificativa no caso de impossibilidade de fazê-lo.

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