Contas à Vista

Por que não repensar os municípios e ter uma administração mais eficiente?

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8 de maio de 2018, 16h33

Spacca
A Constituição Federal de 1988 está em vias de completar 30 anos, ocasião propícia para a realização de balanços sobre inúmeros acertos e alguns erros, que merecem ser discutidos, debatidos e, na medida em que houver razoável consenso — pelos menos de três quintos de cada Casa Legislativa —, superados.

Trinta anos constituem um período de tempo razoável. Embora com numerosas emendas, nossa Constituição tem-se mostrado vocacionada, como deve ser, para ser longeva. A emendas promovidas, ao contrário de fragilizar essa vocação, apenas a reforçam, porque demonstra na prática que o mecanismo de atualização e modificação do texto constitucional previsto na própria norma funciona a contento.

Do ponto de vista do funcionamento das instituições democráticas, a norma constitucional tem-se revelado resiliente. Durante sua vigência, foram feitas sete eleições presidenciais e oito municipais, com eleitos de correntes ideológicas bem distintas, que conseguiram realizar grande parte de seus programas de governo dentro do mesmo marco constitucional. Ocorreram ainda dois impeachments de presidentes da República pelo Congresso Nacional, sob permanente vigilância do Supremo Tribunal Federal, a garantir o respeito ao devido processo legal e à ampla defesa, com natural substituição pelos respectivos vices com eles eleitos, sem descontinuidade democrática. Não houve rupturas, portanto. Todas as trocas de comando no país ocorreram de acordo com mecanismos constitucionalmente previstos.

É certo que muitos apontam que o sistema parlamentarista seria mais funcional que o vigente presidencialismo de coalizão, que incentiva o presidente da República a dividir a gestão da máquina pública com os membros do Congresso Nacional para deles obter o apoio necessário ao seu governo, sem lhes atribuir responsabilidade alguma pelo fracasso ou sucesso da gestão.

A vantagem do parlamentarismo seria a de que o parlamentar da base do governo passa a ser corresponsável pelo sucesso ou fracasso do governo já que, em caso de crise política ou voto de desconfiança, o parlamento pode ser dissolvido, com a convocação de novas eleições gerais. Argumentam os defensores do parlamentarismo que, provavelmente, esse teria sido o caminho trilhado no lugar dos impeachments ocorridos. Caminho mais célere e, por isso, mais funcional.

De todo modo, fato é que a Constituição Federal suportou os movimentos de turbulência da história e da política, oferendo previamente uma solução constitucional para as hipóteses que se concretizaram na experiência histórica.

A despeito do reconhecimento dessa e de outras virtudes do texto constitucional, sempre há o que pode ser melhorado ou modificado para atender às necessidades que se mostrarem imperiosas.

Não estou entre os que atribuem nossa crise fiscal ao texto constitucional. Poderíamos estar bem mais ricos e com excelente quadro fiscal dentro deste mesmo marco constitucional se tivéssemos aproveitado bem a janela de oportunidade que o país teve. Nossa atual crise fiscal decorre de erros crassos de gestão, de expansão de gastos de forma insustentável, de concessão de elevadas renúncias fiscais, aumentos salariais generalizados para o funcionalismo público e farta distribuição de crédito subsidiado para quem deles não precisava. Vivemos agora com as consequências dessas escolhas de gestão desastrosas, especialmente uma dívida pública elevada, em ritmo de crescimento acelerado. Não, a culpa não é da Constituição. Apesar disso, a crise criada nos impõe reformar a Constituição pelo menos no que tange à Previdência, cujos gastos têm tido crescimento consistentemente superior ao do PIB, a revelar que reformá-la seria necessário mesmo que não estivéssemos em meio a essa crise fiscal.

Além da óbvia questão da Previdência, cuja reforma provavelmente será feita no início da próxima legislatura, seja quem for o presidente eleito, há outros pontos de nosso desenho institucional que merecem ser reformados para melhor funcionamento do Estado brasileiro, como a reforma dos tribunais de contas, com o fim das indicações políticas, a autonomia do Ministério Público de Contas, uniformização de procedimentos e independência da função de auditoria, tema que frequentemente abordamos.

Há outros, ainda, que não costumam ser debatidos. Ouso lançar à discussão pelo menos um dele neste artigo: a reconfiguração dos municípios.

Nossa Constituição Federal trouxe pela vez primeira o município como ente federativo. Teríamos uma federação constituída não só pela união dos estados, mas também pela união dos municípios. Não bastava os municípios integrarem os estados que constituíam a federação, era preciso que eles próprios tivessem esse caráter de ente federativo, que a federação surgisse também de sua união. Num plano, a união dos estados. Em paralelo, a união dos municípios, não para formar os estados, mas para constituir a federação ao lado dos estados. Teríamos assim uma república federativa “formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal”, uma federação com duas dimensões de união.

Certamente, o texto decorre do acolhimento pelo constituinte originário dos pleitos dos movimentos municipalistas, engajados em favor da legítima aspiração de fortalecimento dos municípios brasileiros, afinal, é nos municípios que a vida acontece. A elevação dos municípios à categoria de ente federativo representa um fortalecimento, no campo simbólico, de sua importância. Resta saber se, 30 anos depois, esse desenho institucional produziu os resultados imaginados por seus idealizadores ou se, ao contrário, teria produzido mais efeitos colaterais negativos que positivos.

De início, cabe apontar que nossa federação, considerados apenas os estados, já nasce como construção artificial. Não tivemos a experiência de estados independentes que voluntariamente abriram mão de sua soberania para se unirem como um estado maior, entregando à União parcela de suas competências e reservando para si outra parcela, senão a maior delas. Ao contrário, partimos de um continental estado unitário que transformou províncias em estados federados, atribuindo-lhes algumas competências menores, reservando à União as principais competências.

Esse processo histórico evolutivo faz toda a diferença para compreender o que representa a federação para os norte-americanos, por exemplo, e o que ela representa para nós, em nosso imaginário, em nossa visão de país e de estado federado.

Enquanto eles viveram uma concentração de poderes, nós vivemos uma desconcentração de poderes. Eles convivem bem com leis cíveis, eleitorais e penais diferentes em cada estado da federação. Alguns têm pena de morte, outros, não. Alguns proíbem o porte de armas de fogo, outros, não. Alguns usam urnas eletrônicas e o candidato a presidente mais votado recebe todos os delegados do estado, em outros, não é assim. Para eles, o estado natural das coisas é a liberdade do estado federado para se autodeterminar. A submissão a uma vontade uniforme de toda a nação é a exceção e, por isso mesmo, deve ser limitada ao mínimo necessário. Para eles, a federação é um fenômeno histórico-político real, resultado do processo histórico.

Nós copiamos o figurino, a forma, mas a preenchemos com outro conteúdo, porque nossa história era o inverso e, em verdade, tínhamos até medo de, nesse processo, perdermos nossa unidade e integridade territorial, nos dividirmos em países menores, como aconteceu com a América espanhola. Não aceitamos, por exemplo, que cada estado tenha leis cíveis e penais diferentes. Gostamos de ter uma legislação uniforme. Temos até tribunais superiores com a missão de uniformizar a interpretação das leis em todo o território nacional. Mesmo quando há competência concorrente entre a União e os estados, aquela com normas gerais e estes com normas específicas, produzimos normas gerais tão detalhadas que praticamente não sobra espaço para normas específicas, e isso não parece ser um problema.

Para nós, o estado natural das coisas é a uniformização de tudo pela União. O exercício da liberdade do estado em se diferenciar é que é a exceção. Para nós, a federação é um fenômeno artificial. Não construímos a norma a partir da experiência histórica, pretendemos construir uma experiência histórica a partir da criação da norma, com todas as dificuldades que isso implica. Uma coisa é espelhar em um texto uma experiência política real, portanto já assimilada pela cultura, pelas mentes e corações, outra bem diferente é pretender que a realidade cultural, que os paradigmas vigentes, sejam transformados a partir de um texto normativo inspirado em experiência totalmente diversa. Nesse campo, a ordem dos fatores altera o produto.

Não é à toa que os estados e seus governadores estão sempre a demandar do governo federal ajuda financeira e outras medidas de auxílio para implementar suas competências administrativas. Não é por acaso que temos tantos órgãos federais com atuação destacada nos estados. Há uma cultura de dependência da União. Como povo, desconfiamos da liberdade conferida aos estados, queremos que a União esteja na supervisão de tudo, como que para garantir um padrão mínimo de funcionamento ou impedir ou mitigar a influência do domínio de alguma liderança política muito forte ou alguma oligarquia sobre o estado.

No campo da disciplina fiscal, talvez tenhamos um único caso de verdadeira liberdade federativa, só que, neste caso, perniciosa, já que cada tribunal de contas interpreta a Lei de Responsabilidade Fiscal de forma diferente e não há instância estabelecida para uniformizar esses entendimentos. Assim, em alguns estados, o limite de pessoal dos poderes não inclui os servidores inativos, como ocorre na União. Em vários deles, o gasto de pessoal é avaliado pela folha líquida, e não pela folha bruta, como faz a União. Em recente evento de que participei, um conselheiro de um TCE defendeu esse critério de exclusão dos aposentados como algo óbvio, “porque, se não fosse assim, teríamos apenas a metade dos servidores no órgão”, esquecendo que o objetivo da LRF e de seu limite é justamente o de conter o número de servidores e o gasto total, incluindo aposentados. Excluída essa variação de versões em vigor da LRF, somos um país de legislação uniforme.

Talvez sejamos, em verdade, por nossa cultura e história, um estado unitário que faz de conta e até acredita que é uma federação, mas, no fundo, um estado unitário, com alguma autonomia operacional concedida aos estados e ao municípios.

Pois bem, se considerando apenas os estados, nossa federação nasce claudicante, artificial, com muito mais clareza isso se dá com e elevação dos municípios à condição de ente federado. Imaginar milhares de municípios se aglutinando como células para formar uma grande federação é pura ficção jurídica. Essa concepção de federação em dupla dimensão como união dos estados e, ao mesmo tempo, união dos municípios é algo complexo e engenhoso e de difícil compreensão, algo como a santíssima trindade. Mas o que significa, na prática, considerar os municípios como entes federados? Que consequências isso traz?

A meu ver, para além da incongruência lógica de a federação ser composta dos estados e dos municípios ao mesmo tempo, o que se pretendeu com essa ficção jurídica foi garantir que um conjunto mínimo de competências político-administrativas fosse conferido aos municípios.

Ao assim proceder, contudo, o constituinte cometeu um equívoco grave, violador de sua própria concepção de igualdade, que é o de tratar os iguais de forma igual e os desiguais de modo desigual, na medida de sua desigualdade, com vistas a reduzir a desigualdade e promover o quanto possível a igualdade. Quando trata os municípios como entes federados e a eles atribui o mesmo plexo de competências, independentemente de qualquer fator de discriminação, a Constituição Federal introduz na estrutura político-administrativa brasileira um grave complicador para a boa administração dos serviços públicos que precisam ser entregues à sociedade.

Não faz sentido tratar municípios do porte de São Paulo ou Rio de Janeiro em igualdade de condições com municípios de menos de 5 mil habitantes. Aliás, sequer faz sentido a existência de municípios com menos de 5 mil habitantes! Já cidades como São Paulo e Rio de Janeiro poderiam ter muito mais competências do que possuem, se aproximando do nível dos estados. A escolha do constituinte configurou verdadeiro estímulo para a proliferação de municípios, com a multiplicação de cargos e gastos públicos com prefeituras e câmaras de vereadores, encarecendo e tornando menos eficiente o custeio da administração pública.

Muitos municípios minúsculos têm enorme dificuldade de prover sua população com serviços públicos de qualidade. Como serviço de saúde, vários oferecem apenas uma ambulância para deslocar o munícipe para outro município. Município pequeno, no entanto, não é sinônimo de município pobre. Alguns são desproporcionalmente ricos, apesar da pouca população, por serem sede de alguma empresa muito importante. Há casos de municípios vizinhos em que um se tornou rico por causa de alguma empresa ali instalada e o outro se transformou em cidade dormitório dos empregados de baixa renda que trabalham no vizinho rico. Isso é disfuncional.

Precisamos de um modelo que implemente em concreto o que estabelece o nosso princípio da igualdade, que trate desigualmente para promover a igualdade, um modelo que estimule não a proliferação de micromunicípios, mas a união deles para racionalização administrativa.

Em 2008, tive a oportunidade de visitar o Japão a convite da JICA (Japan International Cooperation Agency) e de conhecer a estrutura político-administrativa daquele país. Trata-se de um estado unitário, cujas competências pertencem originariamente ao poder central, sendo objeto de delegação às províncias e municipalidades conforme sua população e, por via de consequência, conforme a complexidade dos problemas com que têm de lidar.

Assim, municípios diferentes em tamanho de população têm grau de autonomia diferenciada, sendo os graus de autonomia conferidos conforme o incremento da população. Tóquio, por exemplo, tem o mesmo nível de competências administrativas que uma província. Com isso, na legítima aspiração por mais autonomia, pequenos municípios são estimulados a se fundirem, para que, com maior população, possam decidir com mais liberdade e receber maiores dotações orçamentárias, o que traz redução da despesa pública pela natural eliminação de estruturas políticas e administrativas em duplicidade.

Poderíamos ganhar muito se conseguíssemos introduzir em nossa Constituição Federal algum mecanismo que tivesse semelhante poder de indução. Nossa concepção de federação pode e deve ser revisitada. Mesmo se mantida a estranha concepção de municípios como entes federados, não há porque tratá-los de maneira uniforme no que tange à repartição de competências. Isso, em vez de ajudá-los e protegê-los, tem sido causa de enfraquecimento e ineficiência.

Por que não lhes atribuir maior autonomia para gestão de recursos conforme o tamanho de sua população? Micromunicípios se tornariam mais fortes e eficientes se unindo. Já grandes municípios como São Paulo e Rio de Janeiro poderiam assumir a gestão direta de competências originalmente previstas para os estados, com o correspondente recurso orçamentário e financeiro.

Enfim, se nossa federação resulta muito mais de nossa criatividade e originalidade, dentro de um processo de descentralização de competências e desconcentração de poder, que de um processo de aglutinação de estados soberanos, por que não nos permitirmos desenhá-la com mais racionalidade, com vistas a corrigir as disfunções identificadas ao longo destes 30 anos de experiência e nos presentearmos com um texto que nos ofereça uma administração pública municipal mais eficaz, eficiente e efetiva?

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