Academia de Polícia

Atual conceito de acusado é ultrapassado e inquisitorial

Autor

  • Ruchester Marreiros Barbosa

    é delegado de polícia do RJ professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers autor de livros palestrante e colaborador oficial da Comissão de Alienação Parental da OAB-Niterói.

8 de maio de 2018, 8h59

Spacca
Caricatura Ruchester Marreiros [Spacca]Em atuação como delegado de polícia já pudemos nos deparar com diversas situações de violações a direitos e garantias fundamentais, que frequentemente não avalizadas pelo Poder Judiciário e Ministério Público em razão da mentalidade autoritária decorrente dos vícios de inferências inerentes ao próprio sistema de justiça criminal forjado com base na mera reprodução do aprendizado oriundo de cursos preparatórios para concursos, sem que se desenvolva estudos sérios a respeito destes temas (garantias fundamentais) no âmbito da investigação criminal.

A título de exemplo, em determinado caso concreto, relacionado em um inquérito policial, ainda em trâmite, na qual tivemos contato muito tempo depois de instaurado e impulsionado por outros delegados de polícia, verificamos que o mesmo foi iniciado em razão da condução coercitiva de uma pessoa suspeita de furtar cabos elétricos de uma determinada concessionária. Estávamos analisando os autos pela primeira vez em razão da nova lotação.

O procedimento se iniciou, com alhures, com base em condução coercitiva de uma pessoa que estava com um uniforme de uma sociedade empresária na qual não era colaborador. Em outras palavras, utilizava um uniforme, porém não fazia parte do quadro de funcionários da mesma. Esta pessoa, quando capturada, conduzia um veículo que também não era de sua propriedade, mas de seu cunhado. Os autos não revelavam como se chegou até esta pessoa, nem como ela teria sido considerada suspeita de furto de cabos elétricos (primeira fratura no sistema de custódia da prova).

Quando abordado, não havia cabos com ele. Dentre diversos objetos, ele possuía 3 folhas de cheque em branco assinados pelo seu emitente, pertencente a um determinado cartório de ofício de notas.

Chamado o proprietário do cartório à delegacia no mesmo dia da captura, o tabelião, também emitente dos cheques, narra em seu termo de depoimento que teria sido vítima de um roubo há 3 anos atrás e que dentre os bens subtraídos mediante ameaça de arma de fogo, teriam sido os cheques que estava na posse o sujeito conduzido coercitivamente.

Havia um inquérito policial para apurar o crime de roubo desses cheques em trâmite em outra na unidade de polícia judiciária próxima. O tabelião, vítima do roubo não reconheceu o sujeito que estava com os cheques, donde se conclui que este sujeito, chamemos de Tício, não seria o autor do roubo.

Seria autor de uma receptação? Seria verossímil alguém ficar com um cheque em branco por 3 anos? 2 anos? 1 ano? Favorecimento real? Alguém para proteger o objeto de um crime para o real autor do roubo o faria portando este mesmo objeto do crime em seu bolso?

Nestes autos, Tício, em seu interrogatório, confessa dois fatos narrados como de subtração de cabos, mas não precisa horário nem dia, bem como confessa que o uniforme era para enganar as pessoas para que não percebesse que estaria furtando cabos.

Agora devemos tocar o dedo na ferida, na fratura do sistema. Aquela fratura que o próprio Supremo Tribunal Federal consagra em alguns de seus julgados e uma grande parcela da doutrinária reproduz sem nenhum senso crítico reproduz como um mantra em seus “manuais”.

Estamos falando da ultrapassada e arcaica concepção reprodutora de que na investigação criminal não haja contraditório nem ampla defesa. Que não há direito ou garantia ao devido processo legal. Aquela do artigo 5º, LV, de que “aos litigantes” (concepção civilista) “e aos acusados em geral” se refira somente àquele acusado formalmente (denúncia ou queixa), inaugurando o processo e não àquele “acusado” apontado pela vítima na notícia crime, inaugurando o inquérito policial.

Prosseguindo no exemplo, como nosso direito processual penal trata a questão da autoincriminação obtida por engano, ou seja, com o engodo ou estratagema para se obter a confissão da participação do investigado em um crime? Consequentemente, violando o princípio denominado de nemo tenetur se detegere.

Este princípio talvez seja o mais importante a se destacar dentro das provas proibidas, que em nosso ordenamento constitucional se refeririam às ilícitas, denominada por Munõz Conde de "prohibiciones probatorias"[1], (Conde, 2008, p. 33), traduzidas do alemão "Beweisverbote", utilizado pelo jurista alemão Ernst Beling, citando com referência da amplitude do nemo tenetur o § 136 a) do Strafprozessordnung/StPO (código de processo penal alemão).

Nesta obra Francisco Munõz Conde levanta as controvérsias sobre o tema, trazendo julgados emblemáticos ocorridos nos tribunais alemães e norte-americanos, nas quais vêm sendo debatidos há muito tempo, desde 1903, sobre a extensão deste princípio. Traz decisões nas quais em determinados casos os princípios são violados por teses que tentam diminuir a incidência do princípio à salvaguarda de emprego de técnicas policiais e judiciais que na verdade burlam de forma fraudulenta a proibição constitucional de proibição de produzir prova contra si mesmo.

Afirma, categoricamente, ainda que tais praxis apesar de não ser uma tortura física produzem os mesmos efeitos que esta, pois ao final, se consegue uma confissão que redunda numa condenação, e tudo começa na delegacia, lugar do inquérito policial, aquele onde não incide o devido processo legal em terras brasilianas.

As teorias que questionam e debilitam a incidência do princípio do nemo tenetur se dá em geral nos casos de grande comoção social e principalmente no terrorismo e na criminalidade organizada, mas no Brasil, há um grupo de pessoas que não possuem direitos, os “vagabundos”, os “entiquetados” (Barata, 2002, p. 86)[2], como integrantes de uma camada social de desprezíveis e estigmatizados.

Neste sentido traz a colação os comentários e críticas feitas pelo jurista alemão Claus Roxin, utilizando como paradigma um “leading case” da suprema corte alemã, na qual em sede policial um investigado que já havia se manifestado no sentido de exercer seu direito de permanecer calado, a polícia faz com que seu amigo íntimo telefone para o investigado ainda na delegacia, e este amigo o faz falar sobre sua participação no crime que se investigava, enquanto agentes policiais escutavam a conversa em outro ponto.

O Pleno fez distinção entre busca direta da confissão, feita pelos próprios agentes da investigação e provocação indireta da confissão que é aquela feita perante terceiro alheio aos quadros policiais, entendendo que esse método não violaria o princípio do nemo tenetur nos moldes do § 136 a) 1, 2 e 3 do StPO.

Na provocação indireta não haveria violação do princípio pois este deveria ceder diante o princípio da proporcionalidade toda vez que a investigação ou processo se referir a fato de "importante significado" e se outros métodos forem mais complexos, porém com resultados menos eficientes.

Assim, segundo a Bundesgerichtshof: BGH (STF alemão) fora destas hipóteses, qualquer outra forma de estratagema em enganar ou fraudar o direito do acusado de dizer expressamente se renuncia ou não seu direito de permanecer calado será uma prova inadmissível e sem valor.

Diante destes casos, (Roxin, 1995, p. 426)[3] também leciona que há violação ao nemo tenetur quando o funcionário público, incluindo-se o policial, não adverte o acusado do seu direito de permanecer calado. Roxin é categórico em rechaçar qualquer tentativa de violar o princípio do nemo tenetur, invocando inclusive o projeto alternativo de reforma do código de processo penal alemão na qual é coautor, no seu §150 b: "Nadie puede ser inducido a incriminarse a sí mismo por coacción, engaño o ardid." , sem distinguir se na fase investigativa ou de instrução.

No Brasil ocorreu caso semelhante, quando da obtenção em conversa informal pela polícia na fase investigativa, obteve-se a confissão, e esta prova contribuiu para a condenação do réu e o Supremo Tribunal Federal[4] considerou a prova ilícita.

Qual a consequência da ilicitude de obtenção de informação ou prova de forma ilícita na fase da “mera peça de informação” ou inquérito policial? Nulidade. Consequentemente, seu desentranhamento dos autos e sua total impossibilidade de utilização como justa causa para a ação penal, bem como das diligências dela decorrentes.

O inquérito policial pode ser um instrumento de criminalização ou de garantias. Irá depender se a lógica da processualística irá reproduzir o direito processual penal máximo ou mínimo. Nesta última hipótese devemos obrigatoriamente começar pela necessária constitucionalização e convencionalização do conceito de “acusados em geral”.

Não é senão por preconceito, fruto das concepções autoritárias da nossa lei processual penal, que se distinguem as garantias entre “indiciado” e “acusado”, que a doutrina e a jurisprudência prosseguem reproduzindo a processualística de 1941, por ausência de lei mais atual, e cultuam um modelo de mutação constitucional seletiva, atribuindo contornos progressistas para algumas expressões contidas no artigo 5º da Constituição e para outras se mantém, quase que por um apego platônico, um significado conservador e reacionário.

A título de exemplo, podemos citar o inciso LVI de “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;”. Para a expressão “processo”, alguém defende que também não sejam inadmissíveis as provas ilícitas obtidas durante a investigação criminal? No mesmo inciso, para a expressão “provas”, algum acadêmico argumenta que por ser a investigação criminal “mera peça de informação”, não se possa invalidar elementos informativos por não terem eles qualidade de provas propriamente ditas? Sabemos que ninguém sustentaria isso, por uma razão basilar de hermenêutica. Diante de normas garantidoras de direitos fundamentais a interpretação que se deve realizar é a ampliativa e extensiva.

E quanto ao inciso LXIII, onde o “preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado(…)”. Para a expressão “preso” e seu direito de permanecer calado, alguém defende que essa garantia não se estenda a um investigado ou indiciado? Alguém defende que tal norma seja somente para aquele que foi privado de sua liberdade?

E na hipótese de prisão civil por dívida admitida por devedor de alimentos e depositário infiel, previsto no inciso LXVII, reinterpretada pela súmula vinculante 25 do STF, por força da Convenção Americana de Direitos Humanos, o STF não entendeu que a expressão “depositário infiel” seria incompatível com o Pacto de San José da Costa Rica, norma supralegal, portanto, hierarquicamente inferior a ela, não redimensionou o significado de “inadimplemento de obrigação alimentar.”, contido no artigo 7, item 7 da referida Convenção internacional?

Sem o intuito de esgotar o tema, porém, para finalizar, o inciso XL, ao dispor sobre a retroatividade da lei penal mais benéfica preceitua que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu;”. Para a expressão “réu” alguém defende que, por esta razão formal, o princípio não deva ser aplicado na fase da investigação criminal, ou até mesmo após condenação transitada em julgado?

Neste último exemplo, seguindo a nossa processualística penal Varguista a distinção entre indiciado, réu e condenado está bem clara e positivada, e nem por isso se ousa interpretar uma garantia fundamental, como o da retroatividade da lei penal benéfica, ao argumento de que a Constituição tenha se referido somente a “réu” e não a indiciado, para fundamentar que somente ao assumir àquela qualidade processual o sujeito (investigado) teria resguardada esta garantia.

Não nos parece crível que o Constituinte originário, com vistas às agruras sofridas pelos investigados sob o regime de um governo militar tenha utilizado a expressão “acusados em geral” com o profícuo propósito de inaugurar um tipo de imutabilidade constitucional na fase investigativa, desprezando a nova realidade social democrática inaugurada pela Carta Política de 1988, resultando na premissa de que o artigo 5º, LV da CR[5] somente seja aplicável ao processo judicial e ao processo administrativo.

Não obstante seja amplamente reconhecida a natureza administrativa da investigação criminal, nega-se um viés processual, apesar de ser norma regulada pela União em razão de seu caráter processual, conforme ADI 2.886 do STF. Apesar disso, nega-se esse caris e se insiste na natureza procedimental, agora, ao argumento de que no processo administrativo há previsão de decisão sancionatória, e se equivaleria a um processo.

Este argumento não procede pois desconsidera, neste espeque o efeito estigmatizante e punitivista do indiciamento nesta fase, admitindo o STF, inclusive, exclusão de certame em concurso público, em razão do candidato estar indiciado por crime incompatível com o cargo que almeja, além de se admitir seu trancamento diante da probabilidade de medidas restritiva de bens e liberdade, devendo os “bens e a liberdade”, restringidas somente por um “devido processo legal”.

O STF e a maioria da doutrina, ao desprezar a existência de uma zona de interseção processual de conexão instrumental entre a fase apuratória e a instrutória, ao ponto de se negar, com frequência, garantias inerentes ao jogo processual, trazendo para a investigação criminal um não-processo, ainda que administrativa a sua natureza, e, consequentemente, a lógica do não-Direito, opera-se uma fratura entre garantias e a sua efetiva realização, fazendo nascer um ambiente juridicamente construído sob o paradigma de um Estado de exceção[6] na investigação criminal.

A incidência seletiva das garantias fundamentais deveria levar a doutrina a voltar os olhos para a necessidade de uma quebra de paradigmas, na qual apontamos a já ultrapassada necessidade de uma teoria da investigação criminal[7] como categoria de uma teoria própria do processo penal, consequentemente um inquérito policial como instrumento de garantias[8].

Já passou da hora de se reconhecer um conceito emancipatório de acusado como espécie do gênero imputado. A partir do momento que alguém é apontado como suspeito de um crime passa a ser considerado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos de “acusado”, como ficou claro no caso Caso Vélez Loor Vs. Panamá[9].

No mesmo sentido, (Costa, 2011) [10] o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, nas decisões Serves v. França e Heaney and Macguinnes v. Irlanda, amplia o conceito de “acusado” contido no artigo 6º da Convenção Europeia de Direitos Humanos para lhe dar um sentido material estendendo o direito ao investigado de permanecer em silêncio.

Em outras palavras, o artigo 5º, LV da CR/88, na expressão “acusados em geral” está se referindo também ao investigado conforme análise constitucional e convencional perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Europeia de Direitos Humanos.

É inaceitável que acadêmicos qualificados como garantistas ignorem esta seletividade hermenêutica de retóricas performáticas para a incidência de uma garantia numa fase e negação da mesma em outra, para um mesmo sujeito de direitos (acusado em geral), permitindo que a investigação criminal se mantenha como um campo de concentração jurídico, um verdadeiro microcosmo do Estado de exceção.


[1] CONDE, Francisco Muñoz – Prohibiciones probatorias – De las prohibiciones probatorias al Derecho procesal penal del enemigo. §2: La autoinculpación conseguida mediante engaño. La tesis de Roxin, Buenos Aires, Hammurabi, 2008, p. 33 a 38.
[2] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002.
[3] ROXIN, Claus, Nemo tenetur: Die Rechtsprechung am Scheideweg, en “Neue Zeitschrift für Strafrecht”, 1995, apud Conde. Ob. Cit., p. 35.
[4] HC 22371/RJ 2002/0057854-0 – STJ 6ª Turma j. 22/10/2002 DJ 31/03/2003
[5] Art. 5º, LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
[6] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 88.
[7] PEREIRA, Eliomar da Silva. Teoria da Investigação Criminal. Uma introdução jurídico-científica. Coimbra: Almedina, 2010, p. 173 a 175.
[8] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Inquérito policial como instrumento de garantias. In HOFFMANN, Henrique, et al. Polícia Judiciária no Estado de Direito. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 297.
[9] Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C No. 218, párr. 108.
[10] COSTA, Joana. O princípio nemo tenetur na jurisprudencia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. In: Revista do Ministério Público. Ano 32, número 128: 2011, apud MACHADO, Iuri Victor Romero e JORGE, Murilo Henrique Pereira, disponível: <http://emporiododireito.com.br/o-aviso-de-miranda-e-a-invalidade-dos-interrogatorios-informais>, acesso em 05/10/2015.

Autores

  • Brave

    é delegado da Polícia Civil do Rio de Janeiro, doutorando em Direitos Humanos na Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina), professor de Processo Penal da Emerj, da graduação e pós-graduação de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Estacio de Sá (RJ) e do curso CEI. Membro da International Association of Penal Law e da Law Enforcement Against Prohibiton.

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