Direito de Defesa

A creche do doutor Márcio Thomaz Bastos

Autor

7 de maio de 2018, 11h08

Spacca
Em tempos de crise, quando advogados criminalistas são criticados pelo mero exercício da profissão, quando são qualificados como obstáculos ao “bom andamento do processo”, às vezes é oportuno olhar para trás. Para os antigos criminalistas. E ver como defenderam o direito de defesa – e ao fazer isso contribuíram para a consagração de direitos fundamentais e para a diminuição do arbítrio. Não atrapalharam nada, não contribuíram para a impunidade, mas para assegurar o Estado de Direito.

Dentre eles, Márcio Thomaz Bastos, a quem dediquei um artigo em revista-homenagem organizada por José Diogo Bastos Neto.

Quando eu ainda era estudante na graduação, assisti a uma palestra de Márcio Thomaz Bastos. Foi a primeira vez que o vi. Esperava uma aula sobre princípios jurídicos ou dogmática penal. Mas não. Ele falou sobre a vida, histórias da advocacia, casos dos quais participou, e das angústias que acompanham cada ato daquele que se dedica ao Direito Criminal. Ao final, sugeriu que todos nós, estudantes, lêssemos livros jurídicos, mas não nos esquecêssemos de que, além disso, há outras leituras também essenciais, o romance, a poesia, os textos políticos – e encerrou alertando que ninguém pode ser criminalista sem ter lido Crime e Castigo.

Naquele dia, comprei um Código comentado, um Dostoievsky e decidi que queria ser advogado criminal.

Só o encontrei novamente anos depois, quando entrei para a creche, um grupo de jovens que ele chamou para fazer parte de sua gestão à frente do Ministério da Justiça. Éramos recém-formados, entusiasmados com um governo novo, dispostos a sacudir a “caixa preta” do Judiciário, reformar a encastelada Polícia Federal, democratizar a segurança pública, combater cartéis e implementar, de uma vez por todas, a cooperação internacional.

Foram anos de muita angústia e de muitos avanços.

Na Secretaria de Reforma do Judiciário, Márcio nos deu liberdade para interagir com os mais diferentes grupos e categorias, estudar propostas e definir diretrizes. Acolheu ideias e as defendeu perante o Congresso e o presidente da República, possibilitando a criação do Conselho Nacional de Justiça, o reconhecimento da autonomia da Defensoria Pública e outras inovações relevantes.

As reações às propostas de mudança raramente foram amigáveis. Em verdade, quase nenhuma o foi. Artigos em jornais, falas em seminários, discursos no Congresso criticavam os atos do ministro, alguns beirando a deselegância. Recordo-me de um ministro do STF que reagiu contra a criação da Secretaria da Reforma do Judiciário. Bradava a inconstitucionalidade do órgão e dizia que Supremo criaria uma Secretaria da Reforma do Executivo. Isso sem falar dos que nos ameaçavam com uma CPI e dos que acusavam a reforma de ser um projeto de advogados paulistas preocupados em manter seu mercado de trabalho. Por outro lado, a atacavam pelo motivo contrário: aquilo acabaria com prerrogativas da categoria.

A creche, ferida em sua vaidade infantil, ensaiava algum embate, logo desestimulado por Márcio. Com paciência, o ministro nos ensinava a lançar mão daquilo que ele chamava de “cara de paisagem”: um olhar sereno para o horizonte, que protege a imagem do interlocutor mesmo diante dos mais veementes impropérios da outra parte.

Foi com essa serenidade que Márcio lidou com as reações do mundo jurídico e de outros setores às transformações propostas. Fez “cara de paisagem” quando parte da Policia Federal se incomodou com a política de transparência na instituição e fez tocar, seguidamente, por dias, o hino da instituição na janela do gabinete do ministro. Agiu da mesma forma quando as operações dessa mesma Polícia Federal foram veementemente criticadas por empresários e políticos no momento em que focaram casos de corrupção e de colarinho branco, criando embaraços para certos nichos de poder.

A caravana passava, com ou sem ladros. Márcio nos ensinou que atos são mais fortes que palavras. Seguiu firme e em frente, as políticas foram implementadas. A reforma do Judiciário foi aprovada, com mudanças na Constituição e a publicação de 25 novas leis sobre processo civil, penal e trabalhista. A Policia Federal foi estruturada e reformada. O setor de combate aos crimes concorrenciais passou a funcionar, e a cooperação internacional foi efetivada. Mais do que discursos, o sucesso das políticas foi a resposta contundente às críticas antecedentes.

A opção pela serenidade, no entanto, não significava encolhimento, covardia ou indiferença. Márcio nunca deixou de defender projetos que julgava importantes – ainda que polêmicos – comportamento que sempre o acompanhou, mesmo na advocacia. Nos tribunais, Márcio representou acusados impopulares, colocando sua história e prestígio a favor do direito de defesa. Nos ensinou a ter compromisso com as garantias individuais, e não com a opinião pública; com o Estado de Direito, e não com o aplauso.

Defendia enfaticamente suas posições, mas com uma firmeza tranquila, uma contundência serena e segura, sem a teatralidade e o amor por adjetivos que acompanham com frequência o discurso jurídico penal.

Essas posturas faziam com que o escritório de Márcio fosse frequentado não apenas por seus clientes, mas também por outros advogados, em busca de orientação ou mesmo de um papo sobre os rumos da advocacia e do Direito Penal. Sempre que me deparava com um problema mais complexo, eu passava por lá, sentava naquela sala com a beca em exposição – beca velha, surrada, mas jamais trocada por uma nova, por superstição – e expunha minhas aflições. Ele pensava, perguntava mais detalhes sobre os casos, e em algumas palavras encontrava uma direção, ou ao menos me tranquilizava, dando aos problemas sua real dimensão – que saiam menor do que chegavam.

E isso faz falta.

Nesses tempos de ódio, em que agressões substituem argumentos, e rancores tomam o lugar de divergências, sentimos a ausência daquela calma determinada, que desenhava soluções e estratégias coerentes, limpas de arroubos emocionais. Márcio deixava de lado o que não era essencial, centrava-se no que importava. Isso garantia a racionalidade das discussões.

Marlon James escreveu que os mortos nunca param de falar. O problema é que os vivos nem sempre os escutam. Márcio ainda fala – devagar, pausadamente – em registros, livros, entrevistas, e mesmo pela memória daqueles que acompanharam sua trajetória. Seria bom que mais pessoas do lado de cá ouvissem o que ele tem a dizer.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!