Segunda Leitura

Reflexos da decisão do STF sobre o foro por prerrogativa de função

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de maio de 2018, 10h30

Spacca
Vladimir Passos de Freitas [Spacca]O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu no dia 3 de maio restringir o alcance do foro por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado. Esta prática antiga vem desde a Constituição de 1891, que no artigo 59, inc. I, “a”, atribuía ao Supremo Tribunal Federal competência para processar e julgar o presidente da República, nos crimes comuns, e os ministros de Estado.

Ocorre que, as Constituições que sucederam a primeira da República, foram elevando o número de pessoas com direito à prerrogativa de foro. A de 1988, pródiga em conceder direitos e não impor deveres, superou todas incluindo um extenso rol de autoridades. As Constituições de vários estados foram além, estendendo o benefício a outras tantas.

Disto resultou, segundo levantamento do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa do Senado Federal, nada menos do que 38,4 mil autoridades que não se submetem a um juiz de primeira instância, mas sim a um Tribunal. Entre elas, por exemplo, 5.570 prefeitos, 10.687 membros de ministério público estadual e 14.882 juízes de primeiro grau.[i]

Como se não bastasse, a Lei 8.038 de 1990, que fixou o rito processual nas ações penais originárias, tornou ainda mais difícil a tramitação dos processos, burocratizando e atrasando o final. Estabeleceu que a denúncia teria que ser recebida pelo Tribunal e não pelo relator, inclusive possibilitando sustentação oral. Ainda, que depois de feita a instrução, dado 15 dias aos réus para apresentar alegações finais, tivessem mais uma hora de sustentação oral no dia do julgamento.

Ocorre que, com o aumento do interesse da população pelas atividades do Poder Judiciário e a exibição dos julgamentos do STF pela TV, a sociedade conscientizou-se do fiasco das ações penais originárias. E da cobrança resultou a nova interpretação da Corte Suprema, a respeito do assunto. Houve sensibilidade da Corte para perceber que a tolerância com a ineficiência do sistema estava chegando ao limite.

Esta forma de proceder não é novidade e nem significa que o STF queira substituir o Congresso, a quem cabe emendar a Constituição. Foi isto que fez o STF quando reconheceu aos homossexuais a possibilidade de se casarem, mesmo havendo norma expressa afirmando que “é reconhecida a união estável entre homem e mulher” (artigo 226, § 3º, da Constituição). Trata-se simplesmente de aplicar a interpretação histórico-evolutiva.

A questão foi levantada através de Questão de Ordem em um caso emblemático, que se arrastava por 10 anos entre diferentes tribunais. O voto do ministro Luis Roberto Barroso, que prevaleceu, fixou que:

Por todo o exposto, resolvo a presente questão de ordem com a fixação das seguintes teses: “(i) O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas; e (ii) Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo”. [ii]

O voto condutor teve a adesão total de mais seis votos e, assim, por maioria, deu nova interpretação ao artigo 53, § 1º da Carta Magna. Houve, contudo, algumas objeções.

Para os ministros Alexandre de Moraes e Ricardo Lewandovski não deveria prevalecer a tese de que a competência se vinculava às funções desempenhadas. Portanto, todos os crime deveriam deveriam continuar na competência do tribunal e não do juiz de primeira instância. Exemplo: para a corrente vencedora, um acidente de trânsito praticado por um deputado federal que cause a morte de alguém, deve ser julgado pelo juiz de Direito do local da infração. Para os dois votos divergentes, ele deveria ser da competência do Supremo Tribunal Federal.

O ministro Dias Toffoli acompanhou os votos divergentes de Moraes e Lewandowski, mas foi além, pois “propôs que, além de deputados e senadores — objeto da análise da corte —, a limitação ao foro atinja também ministros de estado, magistrados de cortes superiores e detentores de cargos estaduais e municipais, como governadores, secretários e prefeitos”.[iii],

Aqui se revelam necessários alguns comentários. O STF não é corte de apelação, seus julgamentos vão muito além do caso concreto julgado. Por tal razão, suas conclusões devem ser debatidas à exaustão e ditar a política judiciária sobre o assunto.

No caso em análise, parece-me que o acórdão lavrado perdeu uma oportunidade de solucionar a questão do foro privilegiado, pois deixou várias perguntas sem resposta. Poderia ter feito considerações nos votos e incluí-las, ainda que de forma incidental, na motivação (obiter dictum). Uma a uma, poderiam ser submetidas a votação. Claro que seria trabalhoso, tomaria horas. Mas dispensaria longas discussões posteriores, na própria corte superior e nos outros 66 tribunais do Brasil com competência originária para julgar tais crimes.

Portanto, tinha razão o ministro Dias Toffoli quando pediu a extensão do julgado a outras autoridades. É que, da forma como foi lavrado o voto condutor, as outras autoridades ficaram fora do alcance do que foi decidido.

Mas, o problema não é insolúvel. Outros tribunais poderão tomar o acórdão como orientação e decidir na mesma linha. Por exemplo, o tribunal de Justiça de um estado poderá separar um processo em que um prefeito é acusado de ter agredido a mulher e enviá-lo para a primeira instância, baseando-se no precedente do STF e no fato de que a briga do casal nada tinha a ver com as funções do burgomestre.

O ministro Gilmar Mendes manifestou preocupação com a interpretação do que seriam crimes “relacionados às funções desempenhadas” e exemplificou com a hipótese de assassinato de inimigo político antes da posse no cargo ou tráfico de droga dentro de um gabinete funcional. As ponderações são oportunas porque obrigam a que se reflita sobre estas e tantas hipóteses que surgirão.

No entanto, ainda que possam vir a ser discutidas, não me parecem que impossibilitem a tomada de decisão. A competência, em princípio, será da primeira instância.

Dúvidas surgirão sobre a extensão do acórdão a outras autoridades. Por exemplo, estarão incluídos os milhares de magistrados e agentes do Ministério Público? Aqui o número de acusações é muito menor. Contudo, o tratamento deve ser o mesmo. Seja por interpretação extensiva da regra constitucional, seja por emenda a ser feita pelo Congresso.

Mas, não sejamos ingênuos, aparecerão problemas. Imagine-se que amanhã surja no gabinete de um juiz um pedido de busca e apreensão no gabinete de um ministro do Superior Tribunal de Justiça.

A situação envolve riscos, por certo. Todos sabem que na arena política acusações falsas ou verdadeiras fazem parte da guerra pela disputa de votos ou para desestabilizar um governo e derrota-lo na eleição seguinte. Isto exigirá dos agentes do Ministério Público e dos juízes de primeira instância maturidade. Não poderão ser ingênuos e nem omissos, deverão equilibrar-se entre o dever de imparcialidade e o bom senso.

Este importantíssimo aspecto mescla-se com outro de igual relevância: estão as varas criminais preparadas para processar estes tipos de delitos? Na Justiça Federal, sim, com certeza. Na Justiça Estadual, nem sempre. Porém isto não é um mal insuperável. O que se tem a fazer a dar-se a estrutura necessária, por exemplo, difundir a audiência por vídeo conferência.

O Ministério Público precisará organizar grupos especializados, pessoas tecnicamente envolvidas com a matéria e preparados para enfrentar com discrição o assédio da imprensa e a tentação de tornar-se celebridade.

No âmbito da Justiça, as escolas da magistratura deverão capacitar juízes para tais processos, iniciando imediatamente cursos e seminários. Os ensinamentos não deverão ser os tradicionais de processo penal, mas sim práticos e participativos. Por exemplo, dados por juízes com experiência em tais tipos de delitos, psicólogos que expliquem as reações e consequências das decisões, cientistas políticos que foquem no que pode haver atrás de uma acusação e outros profissionais.

Os tribunais de Justiça deverão especializar varas, escolhendo as que tenham juízes que sejam conhecidos pelo bom senso e maturidade. A competência poderá estender-se à subseção ou circunscrição judiciária, para que determinada região tenha decisões uniformes. Assim foi feito há décadas com a competência das varas de crimes econômicos da Justiça Federal.

Estas e outras questões poderão ser aclaradas com a interposição de embargos de declaração a serem propostos pela Procuradoria Geral da República nos autos da ação penal que resultou na mudança de competência.

Em suma, a questão é complexa, suscitará dúvidas na aplicação, mas teve o importante mérito de mostrar a disposição do STF em acabar com a impunidade reinante. Foi feita com olhos na realidade, na prática, nos resultados e não em teses jurídicas que levam ao absurdo.


Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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