Formação de precedente

Juízes passam a admitir que Defensoria atue mesmo quando partes têm advogado

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5 de maio de 2018, 9h34

A atuação da Defensoria Pública como “guardiã dos vulneráveis”, ou custos vulnerabilis, vem ganhando força no Judiciário de diversos estados. Esse tipo de intervenção tenta garantir maior paridade de armas quando uma das partes da ação é formada por indivíduos ou grupos vulneráveis frente ao autor do processo (como o Ministério Público), independentemente do envolvimento de advogados particulares no processo.

Um exemplo prático aconteceu em março, quando o juiz Jean Carlos Pimentel dos Santos, do Amazonas, ouviu a instituição sobre a formação de precedentes. Ele explicou que o papel de custos vulnerabilis é “institucional, não se confundindo com a representação da parte (ainda que feita pela própria Defensoria Pública mediante atividade de representação) e sempre respeitando a atividade de representação advogado constituído no processo".

Em outra ocasião, o juiz determinou inclusive que o defensor público sentasse no mesmo plano que o promotor. Segundo Santos, a medida foi necessária para garantir a paridade de armas entre a acusação e a defesa.

O instrumento entrou no ordenamento jurídico pelo Código de Processo Civil de 2015, em dispositivo sobre ações possessórias. Em São Paulo, por exemplo, o juiz Erasmo Samuel Tozetto intimou a Defensoria Pública a se manifestar em um caso de direito à moradia envolvendo mais de 150 famílias.  

A defensora Luiza Veloso, coordenadora do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria paulista, afirma que a intervenção é muito relevante nesse tipo de situação, em que muitos moradores de áreas ocupadas são comunicados sem antecedência sobre liminares de reintegração de posse, e o próprio autor da ação nem sempre sabe informar quantos moradores vivem no local.

Ela diz que a intimação de defensores não atrasa nem prejudica o processo, pois a instituição acaba ajudando a organizar a fala dos envolvidos e até contribui com o contraditório, evitando impactos irreversíveis. 

Exposição do acusado
No Processo Penal Militar, a intervenção também é nova. Na Vara da Auditoria Militar de Manaus, o juiz Luís Márcio Albuquerque concedeu, no dia 24 de abril, a manifestação de custos vulnerabilis a pedido da própria defesa particular do réu. Os autos estão em segredo de justiça.

Segundo o juiz, a mediação da Defensoria Pública "tem o cunho de potencializar o princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, tanto mais em casos de grande repercussão midiática como o ora julgado".

"Na eventual impossibilidade de atuação dos advogados constituídos pelos acusados poderá substituí-los sem prejuízo à razoável duração do processo, não havendo, de outra ordem, qualquer prejuízo à acusação", disse o juiz sobre as vantagens eventuais da atuação interveniente da Defensoria Pública.

O defensor público do caso, Maurilio Casas Maia, entende que a intervenção da Defensoria deve ter sua intervenção processual pro reo recomendada em casos midiáticos, de clamor público e de suspeita de lawfare.

O advogado Frederico Gustavo Távora, que formulou o requerimento interventivo da Defensoria, o envolvimento de defensores é necessário para evitar desequilíbrio entre as partes no processo. Segundo o advogado, “é de se reconhecer a legitimidade desta instituição para atuar, no processo penal, na condição de custos vulnerabilis, complementarmente à atuação da advocacia privada”.

Indagado sobre eventual desconforto da advocacia privada com a participação complementar, o advogado afirmou que a presença do defensor nessa condição não significa demérito ao advogado particular. “Tampouco alargamento ilegítimo do papel da Defensoria Pública, mas antes a reafirmação da proteção do hipossuficiente”, explicou Távora.

Diversas áreas
A atuação enquanto custos vulnerabilis atinge diversas esferas do Direito. Ainda que seja raro, já houve admissão da participação defensorial ao lado do advogado privado, em audiência de custódia na Justiça de primeiro grau amazonense.

No caso, que está em segredo de Justiça, a juíza Anagali Marcon Bertazz, ouviu a Defensoria depois do Ministério Público e do advogado. A manifestação oral de custos vulnerabilis reforçou argumentos favoráveis à liberdade, que foi deferida no fim.

A Justiça de Aracaju também acolheu a Defensoria para suspender uma reintegração de posse. O juiz Cristiano José Macêdo Costa ponderou o número de famílias residindo na ocupação e verificou haver o risco de violação dos direitos e garantias fundamentais com a desocupação à força pela polícia.

Em Alagoas, o desembargador presidente do TJ-AL, Otávio Leão Praxedes, reconheceu o papel de custos vulnerabilis constitucional da Defensoria Pública ao declarar: "(…) o Estado de Alagoas, uma dos mais pobres do Brasil, necessita com urgência de novos defensores públicos, os quais, na condição de custos vulnerabilis, têm como missão precípua defesa dos necessitados – vulneráveis – em todos os graus e instâncias".

O primeiro caso de atuação da Defensoria Pública do Pará como custos vulnerabilis foi em dezembro do ano passado, pela juíza Heloísa Helena da Silva Gato.

No processo, de acordo com a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), o defensor público Bruno Braga representou um acusado de roubo que não havia sido localizado, mas, com a citação nula por edital, teve decretada a prisão preventiva.

Braga então alegou que, tecnicamente, o réu sequer conhecia o processo e assim, não poderia constituir advogado. Embora não mencionando expressamente o "nomen juris", o juízo revogou a prisão preventiva.

Multiplicador de precedentes
“Ao atuar reforçando a possibilidade de formação de um precedente em favor de indivíduo ou grupo vulnerável, a Defensoria Pública poderá obter futuramente o natural efeito multiplicador dos precedentes, potencialmente beneficiando toda categoria de vulneráveis”, afirma o defensor público Maurilio Casas Maia, também professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Para o defensor, ao oficiar a Defensoria Pública para o exercício em custos vulnerabilis, os juízes contribuem para a democratização do processo. “Além disso, prestam homenagem ao artigo 134 da Constituição ao permitirem à Defensoria a potencialização benéfica do exercício de seu mister constitucional, com máxima efetividade”, explica Maurilio.

A defensora pública Julia Almeida Baranski destaca a atuação como custos vulnerabilis como uma manifestação a favor da coletividade e que tem como resultado o distanciamento cada vez maior  da advocacia privada.

Raridade
O reconhecimento dessa participação ainda não é escolha majoritária, afirma. A defensora relembra o recente julgamento no STF do Habeas Corpus coletivo de mulheres presas (HC 143.641/SP), quando várias defensorias públicas ingressaram com pedidos de intervenção como custos vulnerabilis.

Porém, o relator, ministro Ricardo Lewandowski, admitiu a prática da Defensoria somente como amigo da corte, não enfrentando diretamente, segundo ela, a (in)admissibilidade da figura processual do custos vulnerabilis. “Percebe-se, portanto, que ainda há certa reticência jurisprudencial quanto à aceitação desta nova forma de atuação da Defensoria Pública”, argumenta Julia.

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