Opinião

O olhar de Dominique Rousseau sobre a crise da democracia contemporânea

Autor

  • Henrique Abel

    é doutor em Direito pela Unisinos-RS (com período de estágio doutoral como visiting student da School of Law of Birkbeck University of London) mestre e bacharel em Direito pela Unisinos-RS com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da Ajuris-RS.

5 de maio de 2018, 6h34

Em sua palestra Caminhos para a Crise de Representação nas Democracias Ocidentais, proferida no dia 24 de abril na Unisinos, o professor Dominique Rousseau, catedrático de Direito Constitucional da Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, apresentou o que pode ser definido como um resumo de seu mais recente livro, Radicaliser la démocratie: propositions pour une refondation (2015), ainda sem edição no mercado nacional.

Para o professor Dominique, se por um lado é inegável o quadro atual de crise da democracia representativa, por outro lado é preciso atentar para o fato de que a terminologia "crise" não possui sentido unívoco. Por exemplo: frequentemente, o termo é utilizado como sinônimo de "queda", como antítese da ideia de "ascensão" ou "crescimento". É o sentido no qual o termo é utilizado quando, numa aula de história, se fala do processo de "crise" do Império Romano. Já em uma leitura marxista, a "crise" assume sentido diverso, qual seja: o de elemento permanente do capitalismo.

Dominique pensa a crise da democracia contemporânea valendo-se do sentido que o termo "crise" tem na obra de Gramsci, ou seja, como o momento de passagem de um estado para outro — ou do velho para o novo. Dessa forma, a crise da democracia representativa contemporânea não implica nem em um estado permanente, nem em uma "queda" ou marco definitivo de encerramento, mas, sim, um estado de transição.

Uma das conclusões importantes que o professor Dominique tira desta leitura é que o fato de a forma representativa estar em xeque não significa, ao contrário do que frequentemente sugere o senso comum, que esteja em curso uma revolta generalizada contra a democracia em si. A inconformidade com as limitações e contradições do sistema atual não representam (não majoritariamente, pelo menos) "saudades" do absolutismo monárquico ou do fascismo. Dito de outro modo: a revolta não é contra a substância da democracia, mas, sim, contra as suas promessas não cumpridas. A perda geral de “paciência” com a democracia representativa não representa, assim, saudosismo por modelos antidemocráticos já superados, mas sim o autêntico desejo por uma democracia nova, melhor e mais justa.

O autor lembra que a relativização do voto e o questionamento sobre a "verdadeira natureza" do processo eleitoral não são novidades: podem ser historicamente identificadas, no mínimo, desde as movimentações sociais e estudantis de 1968. A partir destes movimentos de contestação, muitos começam a enxergar o voto como uma espécie de "armadilha para otários": algo artificial, que apenas legitima um sistema injusto e a submissão do eleitor a um modelo que o explora, e não um direito que realmente lhe dá voz e poder em um processo positivo de transformação da sociedade.

Desde então, o que se observa, cada vez mais, é um aumento progressivo da abstenção, uma crescente alienação do eleitor e um abismo entre o "encantamento" da época eleitoral (período no qual o candidato é cercado por cidadãos "apaixonados" por ele e fervorosamente comprometidos com o seu discurso) e a "ressaca" do realismo pós-eleição. Ou seja: a fusão pré-eleitoral é seguida de um processo pós-eleitoral de distanciamento e ruptura, demonstrando a existência de diferentes temporalidades entre o momento pré e pós-eleitoral.

A crise da democracia representativa contemporânea, assim, pode ser diagnosticada como decorrência de três elementos principais. Primeiro, o enfraquecimento do vínculo representativo (voto) entre o povo e os governantes, pelas razões acima observadas. Segundo, o enfraquecimento das próprias instituições representativas: os partidos políticos, os sindicatos, o parlamento etc.

No entanto, o elemento definitivo encontra-se na crise da classe média. Desintegrada e pauperizada, a resposta desta classe — que é a base social da democracia representativa — vem na forma de uma rejeição por vezes apática e desiludida, por vezes agressiva e hostil, às instituições representativas tradicionais.

Sentindo-se desprestigiada e materialmente abandonada, a classe média passa a ver a democracia tradicional como um modelo que não a representa e que tampouco defende seus interesses. Uma das consequências disso vem a ser a ascensão do populismo, fenômeno amplamente perceptível no ocidente nos últimos anos, com o crescimento da força de Le Pen na França e com as vitórias eleitorais do movimento Cinco Estrelas, na Itália, do Brexit, no Reino Unido, e de Donald Trump, nos Estados Unidos.

A crise atual abre, portanto, espaço para dois caminhos distintos: o primeiro deles, defendido pelo professor Dominique, é o aprofundamento e a radicalização da democracia. Ou seja, a busca por um "novo" que solucione as deficiências da democracia representativa contemporânea com mais democracia, não menos. O caminho alternativo é o retrocesso ao autoritarismo, que pode passar pelo populismo ou por uma concepção de "democracia iliberal", o que na prática seria uma contradição em termos.

Para o autor, o populismo jamais pode ser encarado como uma forma de "renovação" da democracia, mas sim como o contrário da democracia. Isso porque: a) o populismo substitui o cidadão e o povo pelas ideias de "massa" e "multidão". "Povo", num contexto democrático, é uma associação com direitos e deveres e compromissos recíprocos, enquanto que uma multidão não passa de uma turba de indivíduos desprovidos de interconexão; b) o populismo não se apoia na razão mas sim nas paixões, nos afetos e nos baixos instintos, sendo portanto a antítese de um modelo de organização racional de sociedade; c) o populismo, por fim, rejeita qualquer possibilidade de institucionalização da política, na medida em que parte do princípio de que as massas devem "se reconhecer" no corpo do chefe ou grande líder.

Este é, portanto, o grande risco identificado pelo professor Dominique Rousseu na conjuntura da atual crise da democracia representativa: que o "novo" venha a ser não uma efetiva renovação da democracia, mas sim uma negação da mesma. Embora o próprio autor reconheça que as suas observações são focadas sobretudo na atual realidade europeia, é impossível deixar de observar a forma precisa como elas explicam também o atual quadro político do Brasil e as angústias que gravitam em torno da atual crise política nacional — sobretudo em relação às eleições presidenciais deste ano.

Autores

  • é doutor em Direito pela Unisinos/RS, com período de estágio doutoral como Visiting Student da School of Law of Birkbeck, University of London. Mestre e Bacharel em Direito pela Unisinos/RS, com pós-graduação lato sensu pela Escola Superior da Magistratura da AJURIS-RS.

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