Limite Penal

Não leia o livro Guerra ao Crime e os Crimes de Guerra; pode fazer mal

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4 de maio de 2018, 8h00

Spacca
Não leia o livro de Rosivaldo Toscano. Sério. Deixe de lado e continue vivendo sua vidinha feliz em que tudo se encaixa e as coisas acontecem porque Deus quis. A ilusão é tão acolhedora e superficial que transforma os que poderiam ser sujeitos em meros operadores do Direito, já que quem opera se acha fora do Direito, na ilusão de metalinguagem. Tentarei explicar neste prefácio minha firme disposição de que você jamais se atreva a ler o livro Guerra ao Crime e os Crimes de Guerra (Editora Empório do Direito).

Para evitar que você tenha que ler tudo: coloque-se no lugar dos filhos dos nazistas que serviram no exército e mataram gente em nome de Hitler, bem assim dos outros “papais” que nada fizeram, tocando a vida “como se” nada estivesse se passando. Os filhos podem se orgulhar de seus pais? Há uma certa dose de vergonha e nojo — arrisco — por sujeitos que fingem que tudo está bem quando sabem — e por isso mesmo fazem o que fazem, diria Marx. Embora não concorde com o fundamento da teoria da “cegueira deliberada”, no sentido de que o sujeito deveria saber o que se passava, no caso do Direito Penal e seu funcionamento, não saber — ou fingir não saber — é de uma canalhice sem tamanho. Um genocídio da população carcerária em nome do bem, do espetáculo e do amor ao censor. O resto de sanidade e conforto que você desfruta neste exato momento deverá acabar após a leitura do trabalho. Última chance: desista!!! Corra. Foge. Fraco.

Rosivaldo Toscano dos Santos Júnior é um sujeito que se deixa ver e assume, do seu lugar, a posição de quem se autorizou a enunciar um discurso desde o desconforto. A antecipação de sentido que sua existência comparece no texto que o leitor tem em mãos, denominado Guerra ao Crime e os Crimes de Guerra: uma crítica descolonial às políticas beligerantes no Sistema de Justiça Criminal Brasileiro, não pode ser lida de maneira desavisada. Aliás, sugeri ao Rosivaldo uma tarja preta na capa de que o conteúdo é somente para os fortes, porque exigirá releitura, reflexão e tempo. A complexidade exige algum esforço de compreensão. Pergunte ao Rosivaldo por e-mail ou adicione ele no Facebook. O diálogo talvez seja o mais importante a um autor.

O descolonialismo exige que se enfrente a questão dos estamentos e, no nosso caso, a cooptação ideológica do Poder Judiciário, na linha indicada por Gramsci. A dominação colonial é reiterada de geração em geração, promovendo a “legitimação” do discurso naturalizado da imposição de modos de perceber a realidade, ainda que também não tenhamos uma noção objetiva da realidade, entendida como os limites simbólicos do mundo, sempre de conteúdo variado.

Gostei muito de ver desfilar no texto de Rosilvado o parceiro Luis Alberto Warat, enleado na articulação que se dá conta da analética indicada por Dussel, justamente do passo antecedente necessário para não nos seduzirmos pela analítica. A aproximação em paralaxe e com os cuidados da Teoria Impura do Direito dão ao trajeto invocado por Rosivaldo o estofo necessário para que se possa estabelecer o lugar do poder, ou, melhor, da linguagem do poder. Entre lawfare, flex, soft, hard e smart, o jogo do poder e da violência promove o gregarismo de um modo de operar no Direito que cobra a conta da naturalização e da violência simbólica. O que muitas vezes não nos damos conta é que embarcamos na mesma toada e, não raro, dizemos que lutaremos até o fim. A leitura do jogo do poder situa-se no se negar em compartilhar o mesmo espaço simbólico, já que inexiste campo neutro em que se possa dialogar com totalitários, especialmente quando a razão cínica preside o modo de abordagem.

Daí que o percurso que Rosivaldo nos apresenta é necessário para nos sugerir um impasse ético de como se portar em ambiente dominado pelo manejo do poder “colonizado”, no limite do fazer-parte-sem-fazer-parte do espetáculo da punição e da falta de responsabilidade. A responsabilidade com o outro (o rosto do outro) a partir do princípio ético-material de Dussel pode ser um dos caminhos. O perigo é o canto das sereias eficientes que, quando menos esperamos, já nos conduziram às profundezas. Perguntar-nos a todo o tempo o que significa na ordem macro a pequena ação pode nos transformar em chatos e paranoicos, talvez única atitude de quem não quer flutuar na Matrix.

Tenho participado de muitas bancas de mestrado e doutorado. A imensa maioria do trabalho é elegante, preenche o requisito formal, o sujeito descobre um — imenso — mundo acadêmico, percebe as fragilidades e cinismo da prática jurídica e morre em alguma estante. É tanta metodologia que o trabalho vem com a advertência de que foi “pasteurizado”. O sujeito não comparece em um texto que parece um quebra-cabeças de peças apoderadas de terceiros. Rosivaldo apresenta, todavia, uma tese de verdade. Explico. Se você ler o prólogo e não se perguntar sobre a canalhice e a falácia desenvolvimentista de que somos herdeiros, feche o livro e vá curtir seu cinismo. Você não merece ler este texto, porque pensa como um pulha.

O nexo estabelecido entre as políticas beligerantes e o eficientismo neoliberal é capaz de demonstrar a quem o Poder Judiciário no sistema de controle social serve. Formalismo, protocolos, truculência e juristas neutros são uma combinação explosiva. Talvez possamos tentar uma postura radical de denunciar o cinismo. O preço é ser perseguido e defenestrado pela imensa massa que compactua e vive no mundo das nuvens. A postura nefelibata é a ordem e progresso do Direito.

Espero, assim, que este livro possa causar a necessidade de rever suas práticas e responsabilidade. Do contrário, ou você já luta, compactua, ou não entende seu lugar no mundo. Posso parecer arrogante com essa última frase, mas foi preciso. Quem sabe você leia o texto. Eu continuo não recomendando. Parabéns a quem tiver coragem, assim como teve Rosivaldo Toscano.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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