Opinião

Lei que alterou a LINDB criou balizas para a segurança jurídica de atos e decisões

Autor

  • Leonardo Scofano Damasceno Peixoto

    é defensor público do estado de São Paulo pós-doutor em Democracia e Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Portugal) doutor e mestre em Direito Constitucional pela PUC-SP.

3 de maio de 2018, 16h44

A Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, acrescentou os artigos 20 a 30 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), publicizando ainda mais a legislação concebida apenas como Lei de Introdução ao Código Civil em 1942. Em outras palavras, essa emblemática lei nunca foi só do Direito Privado, mas do Direito em geral, inserindo dispositivos sobre segurança jurídica e eficiência na criação e aplicação do Direito Público.

Segundo Sundfeld, essa proposta de alteração originou-se de pesquisa acadêmica da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP) e do Grupo Público da FGV Direito SP, tendo como objeto três problemas básicos: a construção do interesse público, o tratamento da autoridade pública e os papéis dos Poderes do Estado e dos órgãos constitucionais autônomos[1].

O objetivo dessa nova legislação é conferir o maior proveito possível com o menor dispêndio necessário na construção do interesse público, além da estabilidade das relações jurídicas, protegendo os administrados e investidores no cenário econômico brasileiro.

A nova legislação possui inegável influência do pragmatismo norte-americano, estabelecendo balizas decisórias aos administradores públicos e magistrados. O artigo 20 da LINDB estabelece que, nas esferas administrativa, controladora (tribunais de contas e controladorias) e judicial não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. O parágrafo único, por sua vez, estabelece que “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”[2]. O artigo 21 dispõe que a decisão que decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar as consequências. Já o artigo 22 reza que, na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.

As consequências práticas das decisões remetem ao pragmatismo norte-americano, em que a Justiça é medida pelas consequências, e não pelo Direito. Na concepção de William James (Philosophical concepts and pratical results)[3], o resultado do pensamento deve ser traduzido em comportamento, em contraste com a tradição europeia da filosofia abstrata, “descendo dos céus” para a resolução dos problemas reais.

Para a lógica experimental (pragmatismo) de Dewey, a lógica dedutivo-silogística devia ser abandonada como instrumento principal à sentença e substituída por uma lógica de consideração das consequências. Seria uma lógica de previsão de probabilidades, cujo desígnio constituiria averiguar os efeitos prováveis. A verdadeira interpretação, em suma, seria aquela que produziria consequências provavelmente justas em casos concretos[4].

A grande vantagem é a percepção de que determinada interpretação pode gerar consequências indesejáveis na prática. Entretanto, a extrema flexibilização do Direito e o antiformalismo do pragmatismo podem conduzir à insegurança jurídica no ordenamento, concepção justamente contrária ao propósito dessa nova lei.

Nesse diapasão, Bachof ensina que o tribunal constitucional, por exemplo, não pode ser cego às consequências políticas de suas decisões, porém existe um limite a ser enfatizado: “contra o direito, o juiz não pode decidir jamais”, ou seja, “em caso de conflito entre o direito e a política, o juiz está somente vinculado ao direito”[5].

Os artigos 23 e 24 protegem, por sua vez, situações jurídicas consolidadas e a boa-fé dos atos administrativos entre o poder público e os cidadãos, prevendo as regras de transição em orientações novas (vedação à imprevisibilidade de decisões e modulação dos efeitos) e a necessidade de considerar as orientações gerais da época quando decisões administrativas revisarem atos anteriores (princípio da proteção da confiança e irretroatividade de posicionamento jurisprudencial).

Também consagrando a segurança jurídica, o artigo 30 estabelece a previsão de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas, com caráter vinculante ao órgão ou entidade a que se destina até ulterior revisão.

O artigo 26 confere, agora, à administração embasamento legal para celebrar compromisso (termo de ajustamento de conduta) com os interessados em situações irregulares, incertas ou litigiosas, homenageando a eficiência administrativa.

Já o artigo 27 possibilita ao administrador impor compensações por benefícios indevidos ou prejuízos anormais ou injustos resultantes do processo ou da conduta dos envolvidos, retificando situações irreversíveis. Em outras palavras, ao agente público que pratica condutas ilícitas, recebendo benefícios indevidos, causando prejuízos anormais ou injustos, poderá ser imposta a compensação pelos danos causados (em caráter pecuniário ou prestação de serviços), sem prejuízo de responsabilidade administrativa, civil ou penal (ou por atos de improbidade administrativa)[6].

O artigo 28 estabelece a responsabilidade pessoal do agente público em caso de dolo ou erro grosseiro, não se olvidando, porém, da responsabilidade do Estado, nos termos do artigo 37, parágrafo 6º da Constituição da República.

O artigo 29, por fim, consagra a “governança participativa”[7] ao prever a consulta pública, confirmando-se a tendência do administrador de ouvir os administrados e especialistas. Nesse contexto, não custa recordar a perspectiva de democracia de Cappelletti, que não pode ser reduzida a uma simples ideia majoritária; significando, também, tolerância, liberdade e participação[8].

De um lado, a nova alteração legislativa pode trazer avanços no sentido de conferir maior segurança jurídica e eficiência administrativa aos administrados e investidores, especialmente em um período de crise econômica sem precedentes em nosso país.

De outro lado, não se pode deixar de registrar a preocupação de Oliveira com a presença de uma “ilegalidade tolerada” de atos e contratos celebrados pela administração pública, ou seja, essa limitação à invalidação e correção dos atos e contratos ilegais seria péssima para a economia, pois pode favorecer a corrupção, a ilegalidade e o aumento de custos de uma administração já muito cara e ineficiente[9].

A Procuradoria-Geral da República, em parecer técnico, ressalta a preocupação de transferir indevidamente ao julgador os ônus e as responsabilidades inerentes à atividade do gestor público, havendo um risco de conversão dos órgãos de controle e judiciais em órgãos de consultoria jurídica da própria administração.

Também preocupa a PGR a influência direta da nova lei à aplicação da Lei 8.429/92, podendo afetar negativamente o sistema de controle, responsabilização e punição de agentes públicos e de ressarcimento de danos ao erário por atos de improbidade administrativa[10].

Segundo Diniz, “o legislador, ao criar uma norma jurídica geral, generaliza, estabelecendo um tipo legal que, em decorrência disso, está separado da realidade imediata da vida que lhe deu origem, abarcando, tão somente, o seu aspecto geral, concentrando-se em seus traços fundamentais. Ao passo que o magistrado, ao sentenciar, não generaliza, cria uma norma jurídica individual, incidente sobre um dado caso concreto. […] A tarefa dos juízes e tribunais ao aplicar o fato à norma geral possui índole político-jurídica. Isso porque a norma geral a ser aplicada é mera moldura dentro da qual surge a norma jurídica individual, em virtude da eleição de uma das possibilidades contidas na norma geral”[11].

Nada obstante a eventual questionamento judicial sobre a constitucionalidade de dispositivos da Lei 13.665/18, nesse processo de construção da norma jurídica visando ao interesse público, a nova lei estabeleceu balizas interpretativas no sentido de o administrador e o magistrado considerarem as consequências práticas e a segurança jurídica de seus atos e decisões, ressaltando-se, porém, a necessidade de respeito aos limites semântico-normativos da Constituição e o critério da especialidade em caso de conflitos entre leis .


[1] SUNFELD, Carlos Ari. Uma lei geral inovadora para o direito público. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/uma-lei-geral-inovadora-para-o-direito-publico-01112017/amp. Acesso em 30/4/2018.
[2] O artigo 20, caput e parágrafo único da Lei 13.665/18 está em consonância com o artigo 489, parágrafo 1º, I a III do novo CPC, que não considera fundamentada qualquer decisão judicial que: se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão. Vide artigos 2º e 50 da Lei 9.784/99.
[3] Disponível em: http://archive.org/stream/philosophicalcon00jameuoft/philosophicalcon00jameuoft_djvu.txt. Acesso em 30/4/2018.
[4] DEWEY, John. Logical method and law. The Philosophical Review, vol. 33, n. 6, 1924, p. 560-572.
[5] BACHOF, Otto. Der verfassungsrichter zwischen recht und politik. In summum ius summa iniuria. Tübingen, 1963, p. 41.
[6] COSTA, Rafael de Oliveira. Breves comentários à Lei nº 13.665/18. Disponível em: https://www.prosocietate.com/publicacoes/artigos-breves-coment%C3%A1rios-%C3%A0-lei-n-13-655-18. Acesso em 1º/5/2018.
[7] FREITAS, Vladimir Passos de. Inclusão de dez artigos na LINDB traz importante inovação ao Direito brasileiro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-29/segunda-leitura-mudancas-lindb-inovam-direito-brasileiro. Acesso em 30/4/2018.
[8] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999, p. 46.
[9] OLIVEIRA, Júlio Marcelo de. Por uma administração pública eficiente com respeito à lei. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/por-uma-administracao-publica-eficiente-com-respeito-a-lei/. Acesso em 30/4/2018.
[10] Parecer técnico disponível em: https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/04/oficio_notatecnica_13-04-18_pgr-00192069_2018-1-1.pdf. Acesso em 30/4/2018.
[11] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 328-329.

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