Opinião

O Fundo de Defesa de Direitos Difusos e a execução de decisões coletivas

Autor

  • Gustavo Osna

    é advogado professor do programa de pós-graduação stricto sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e do programa de graduação em Direito da UFPR doutor em Direito das Relações Sociais pela UFPR mestre em Direito das Relações Sociais e bacharel em Direito pela UFPR e membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

3 de maio de 2018, 10h54

Nos últimos dias, noticiou-se de forma ampla que, ao admitir o julgamento de Frank v. Gaos, a Suprema Corte dos Estados Unidos analisará a higidez de um acordo celebrado em medida coletiva1. Na exposição do tema, indicou-se ainda que a eventual revisão se daria pelo fato de a autocomposição ter beneficiado apenas os advogados atuantes na disputa, e não a própria classe envolvida. Consideramos, porém, que essa premissa merece maior atenção.

Procurando elucidar o cenário, destaca-se que a base do problema se situa na composição atingida em ação de classe (Gaos v. Google Inc.) na qual se questionou eventual vazamento de dados dos usuários do réu coletivo. No curso da disputa, celebrou-se composição financeira dos possíveis danos. Por fim, após o desconto da importância dedicada aos advogados e aos representantes que atuaram no processo, a quantia remanescente foi endereçada a instituições de ensino superior e a centros voltados ao estudo da proteção da privacidade. É precisamente aqui, neste último ponto, que parece se polarizar o debate a ser travado em Frank v. Gaos2.

De forma breve, a objeção realizada pode ser sintetizada a partir de algumas indagações: se a indenização decorreria de danos individualmente causados aos membros da classe, os valores obtidos poderiam não lhes ser endereçados? De que modo a execução do acordo efetivamente os beneficiaria? Quais os critérios adotados para fixar a destinação da verba?

Cada uma das questões oscila ao redor de um mesmo núcleo. É que, ao admitir o julgamento da matéria, a Suprema Corte acaba colocando em debate os parâmetros daquilo que se costumou denominar, no âmbito das class actions, de cy pres; resumidamente, da possibilidade de que, devido à inviabilidade de reparação individual dos membros do grupo, a importância que deveria lhes ser destinada seja endereçada a alguma organização com propósitos relacionados ao objeto litigioso3. Nesses casos, por mais que não se negue que a indenização tem origem em pretensões individuais, afirma-se que não é possível que a reparação as espelhe por completo. O dilema central, então, passa a ser até que extensão esse distanciamento seria autorizado.

Partindo desse quebra-cabeça, o problema dialoga com a própria dificuldade inerente à execução de medidas coletivas voltadas à proteção de direitos individuais. Já nos debruçamos sobre o tema em outras ocasiões 4, e o seu debate continua sendo necessário. Somente assim é possível amarrar as pontas entre as premissas teóricas da disciplina e a sua adequação material.

De fato, ao mesmo tempo em que não parece haver fundamento razoável para afastar a utilização de técnicas atípicas para a proteção de interesses individuais homogêneos5, é imprescindível que esse exame não retire da mira a origem do dano. Tratando-se de pretensões individuais, é preciso envidar todos os esforços possíveis para que os sujeitos lesados sejam, efetivamente, aqueles beneficiados pela tutela. É para esse fim que o uso de mecanismos criativos de proteção, algo amplamente desejado6, deve se prestar.

Indo além, a questão suscitada perante a Suprema Corte dos Estados Unidos possui especial importância para o processo civil brasileiro por direcionar os holofotes para um problema imanente à nossa realidade. É que aqui, além de o regime processual da tutela coletiva de direitos ser amplamente falho7, há uma peça em sua engrenagem que suscita exatamente o mesmo conflito veiculado em Frank v. Gaos: a (questionável) execução de decisões coletivas pelo Fundo de Defesa de Direitos Difusos.

Realmente, esse nó se coloca tendo em vista que, ao prever a possibilidade de execução individual de sentenças proferidas em ações coletivas, nosso Código de Defesa do Consumidor estabelece uma hipótese subsidiária de execução dos valores para o referido fundo8. Como consequência, a importância que originalmente se destinaria aos membros da classe (titulares dos interesses individuais violados) passa a ser dedicada a esse ente.

Ocorre que, conforme já apurado, a atuação do Fundo de Defesa de Direitos Difusos está longe de uma procura efetiva pela proteção da classe lesada9. Mais que isso, uma vez internalizado em seus cofres, o valor decorrente da condenação coletiva sequer parece reter seu pedigree: passa a simplesmente integrar um numerário comum, podendo se voltar à própria estrutura do Ministério da Justiça ou, no menor dos casos, à efetivação de projetos que em nada dizem respeito aos indivíduos pretensamente protegidos. Para eles, a ação de classe de nada terá servido — criando-se uma lógica cujo único benefício é a dissuasão do réu coletivo à reiteração do ilícito10.

Enfim, diante desse cenário, é certo que esse ponto cego merece atenção. Se a análise a ser realizada em Frank v. Gaos irá se debruçar sobre os parâmetros e as minúcias que devem preceder medidas de cy pres, a imprestabilidade da via análoga legislada em nosso microssistema (a execução pelo FDD) parece antecipada e patente. Se há um real interesse no aperfeiçoamento da tutela coletiva no Brasil, o problema deve ser seriamente considerado.


1 Ver, assim, https://www.conjur.com.br/2018-mai-01/acordos-acoes-beneficiam-advogados-serao-julgados-eua. Também, https://www.reuters.com/article/us-usa-court-google/u-s-supreme-court-to-hear-google-privacy-settlement-dispute-idUSKBN1I11DO.
2 Em seus exatos termos, a questão problematizada é assim posta: “whether, or in what circumstances, a cy pres award of class action proceeds that provides no direct relief to class members supports class certification and comports with the requirement that a settlement binding class members must be “fair, reasonable, and adequate”.
3 Há vasta doutrina sobre o tema, procurando aferir suas possibilidades e os seus benefícios. Ver, por todos, TIDMARSH, Jay. Cy Pres and the Optimal Class Action. In. The George Washington Law Review. v.82. Washington, DC: The George Washington University, 2014. p.767. Ver ainda, em doutrina brasileira, HOMMA, Fernanda Lissa Fujiwara. Execuções Judiciais Pecuniárias de Processos Coletivos no Brasil: Entre a Fluid Recovery, a Cy Pres e os Fundos. Dissertação de Mestrado: UFPR, 2017.
4 Ver, assim, OSNA, Gustavo. Direitos Individuais Homogêneos: Pressupostos, Fundamentos e Aplicação no Processo Civil. São Paulo: Ed. RT, 2014. OSNA, Gustavo. ‘American State of Mind’: Why do Class Actions Keep Failing Outside America? In. International Journal of Procedural Law. n.7. Cambridge: Intersentia, 2017. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Cumprimento de sentenças coletivas: da pulverização à molecularização. In. Revista de Processo. v.222. São Paulo: Ed. RT, 2013. p.50-64.
5 Nesse sentido, de forma enfática, ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela de direitos individuais homogêneos e as demandas ressarcitórias em pecúnia. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito processual coletivo e o projeto de código brasileiro de processos coletivos. São Paulo: Ed. RT, 2007. Veja-se que a questão se torna ainda mais clara com o advento do Código de Processo Civil de 2015, dado o permissivo geral trazido em seu artigo 139, inciso IV.
6 Ver, assim, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. ARENHART, Sérgio Cruz. OSNA, Gustavo. Cumprimento de sentenças coletivas: da pulverização à molecularização. p.55-64. Também, verificando diferentes vias para a construção de medidas efetivas da tutela coletiva, ARENHART, Sérgio Cruz. JOBIM, Marco Félix. (Orgs.). Processos Estruturais. Salvador: JusPodivm, 2017.
7 Nesse sentido, passim, OSNA, Gustavo. Direitos Individuais Homogêneos. 117-132.
8 “Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei 7.347, de 24 de julho de 1985.”
9 Esmiuçando o tema, ver https://www.conjur.com.br/2017-mar-31/governo-usa-dinheiro-fundo-direitos-difusos-caixa. No mesmo sentido, OSNA, Gustavo. Direitos Individuais Homogêneos. p. 120-122.
10 Note-se, aliás, que essa questão já foi explicitamente defendida pelo Superior Tribunal de Justiça, afirmando-se que “a legitimidade do Ministério Público para instaurar a execução exsurgirá — se for o caso — após o escoamento do prazo de um ano do trânsito em julgado se não houver a habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, nos termos do art. 100 do CDC. É que a hipótese versada nesse dispositivo encerra situação em que, por alguma razão, os consumidores lesados desinteressam-se quanto ao cumprimento individual da sentença, retornando a legitimação dos entes públicos indicados no art. 82 do CDC para requerer ao Juízo a apuração dos danos globalmente causados e a reversão dos valores apurados para o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos (art. 13 da LACP), com vistas a que a sentença não se torne inócua, liberando o fornecedor que atuou ilicitamente de arcar com a reparação dos danos causados”. REsp 869.583/DF, 4ª Turma, j. 5/6/2012, rel. min. Luis Felipe Salomão, DJe 5/9/2012. Aqui, certamente, não se discute a respeito da pertinência dessa função a ser exercida pelas ações de classe. Não obstante, considera-se que ela deve ser conjugada com os demais escopos do instituto. Sobre o tema, ver GILLES, Myriam; FRIEDMAN, Gary B. Exploding the Class Action Agency Costs Myth: The Social Utility of Entrepreneurial Lawyers. University of Pennsylvania Law Review. n. 155. Philadelphia: University of Pennsylvania, 2006. Também, POSNER, Richard. Economic Analysis of Law. 2. ed. Boston: Little, Brown and Company, 1977. p. 449.

Autores

  • é advogado, professor, doutor em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre em Direito Processual Civil e bacharel em Direito pela mesma instituição. Membro do Núcleo de Processo Comparado (UFPR) e do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP).

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