Opinião

Almiro do Couto e Silva, os três irmãos advogados e o Direito

Autor

2 de maio de 2018, 18h37

Com muita tristeza, o mundo jurídico brasileiro recebeu, no dia 17 de abril, a notícia da morte do professor e renomado jurista gaúcho Almiro do Couto e Silva.

Filho caçula de um também grande advogado gaúcho, Waldemar do Couto e Silva, Almiro teve como irmãos dois destacados profissionais da advocacia, Paulo e Clóvis do Couto e Silva, ambos também falecidos.

Cada um dos irmãos foi dedicado cultor do Direito, contudo, cada um deles de uma forma diferente e cultivando paralelamente outros aspectos da cultura.

Assim, Paulo, o mais velho, era brilhante advogado, muito aguerrido, sendo conhecidas as suas sustentações orais perante o Supremo, verdadeiras sessões de oratória. Contudo, esse mesmo advogado era, ao mesmo tempo, um virtuose do piano, conhecedor profundo de música erudita, tendo sido professor concursado da Escola de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde chegou a dar aulas de música, abandonando esse mister em razão do exercício da advocacia.

Já Clóvis, além de advogado, sempre se dedicou à docência, era professor titular de Direito Civil na UFRGS, a qual dedicou os anos mais profícuos de sua vida, lamentavelmente muito breve, deixando, não obstante, uma vasta obra, reconhecida por sua originalidade e visão de futuro, até hoje citada e utilizada por juízes, advogados e estudantes de Direito. Clóvis também tinha outras aptidões: além do Direito, amava a música, mas não tocava nenhum instrumento, apesar de ter uma boa cultura musical, sobretudo clássica. Era um leitor voraz, sendo a literatura uma de suas formas prediletas de lazer. Ademais, lia em vários idiomas, inclusive o alemão, conhecimento que lhe abriu novos horizontes culturais1.

Nesse ambiente propício ao cultivo do conhecimento e das artes, Almiro do Couto e Silva fez brilhante carreira como procurador do Estado do Rio Grande do Sul e professor da UFRGS.

Dotado de personalidade afável, sempre foi um professor querido e admirado pelos alunos, sendo responsável pela disciplina de Direito Administrativo, lecionando-a na graduação e pós-graduação com grande competência. Seus artigos, livros e conferências dão testemunho da forma precisa e científica como expunha o seu pensamento, da elegância posta na maneira de transmitir o pensamento, a exemplo de como atuava, normalmente, no seu dia a dia.

Era grande apreciador e cultor da música e, quando solicitado pelos participantes de reuniões sociais em sua agradável residência, tanto em Porto Alegre como em Canela, na serra gaúcha, punha-se ao piano e deliciava os presentes executando as mais variadas obras musicais. Contou-me sua filha, Marília, que, nos últimos anos, o professor Almiro dedicava os domingos à música clássica, como um especial entretenimento, ao qual deveria e queria se dedicar por inteiro, algo impossível nos dias normais de trabalho.

Dentre outros aspectos da interessante personalidade do professor Almiro, vale destacar algo que poucos tiveram a oportunidade de vivenciar, ou seja, seu talento como cozinheiro, tendo como destinatários sua família e alguns amigos. Posso afirmar que nesse terreno ele também atingiu patamares elevados.

Seu renome como administrativista o levou a ministrar cursos em outros países, como na França, onde, a convite da professora Jacqueline Morand Deviliers, da Universidade de Paris I, hoje aposentada, proferiu, nos anos 1990, um curso de Direito Administrativo brasileiro, com duração de dois meses. O professor Almiro viajou acompanhado de sua mulher, Berenice, e de sua filha, Marília, na época muito jovem, que participava, de forma admirativa, dos jantares oferecidos pelos colegas da Universidade de Paris I aos seus pais. Como o cerimonial de recepção a um convidado, sobretudo estrangeiro, é levado muito a sério pelos anfitriões franceses, a jovem guarda em sua memória lembranças poucas vezes vivenciadas por uma moça gaúcha. Almiro retribuiu o convite da professora Devilliers, e ela nos visitou em duas oportunidades, sempre encantada com a acolhida da família Couto e Silva, e, como uma autêntica devota da música e do teatro, encontrava em Almiro um interlocutor a sua altura. Essa mesma professora tem vínculos com a USP, sendo sua interlocutora nessa universidade a conhecida professora Ivete Medauar, administrativista como Almiro, com quem também mantinha vínculos acadêmicos, em razão dessa sua especialidade.

Assim como Clóvis, foi Diretor da Faculdade de Direito da UFRGS, tendo as gestões de ambos sido profícuas e exitosas.

É interessante observar as vidas desses três irmãos, todos voltados ao Direito, cada um de uma forma diferente, sendo os três brilhantes no seus misteres, todos autênticos humanistas2, mas atentos ao mundo que os rodeava.

Um fato sempre me chamou atenção, qual seja, a união entre os irmãos, pois trabalhavam juntos, no mesmo escritório, tinham casa de veraneio próximas (Clóvis e Almiro) e demonstravam grande carinho e atenção aos filhos uns dos outros, ou seja, aos sobrinhos.

Clóvis e Almiro dedicaram muitos anos e dispenderam tempo e energia ao curso de pós-graduação em Direito da UFRGS, onde haviam estudado e queriam criar uma escola de Direito sui generis, distinta das existentes nos moldes da época; uma escola feita pelos alunos, à maneira da escola de Bolonha3.

Assim como outras pessoas participantes desse projeto, sou testemunha do surgimento dessa escola, que, em poucos anos, tornou-se uma referência no Brasil inteiro e até mesmo no exterior. Após a morte precoce de Clóvis, a escola manteve-se, com dificuldade, tendo Almiro dedicado muitas horas de trabalho, furtadas ao escritório para, empenhando esforços, manter vivo o projeto de seu irmão, o que efetivamente ocorreu, por alguns anos4.

Almiro teve inúmeros discípulos, que se tornaram, ao longo dos anos, seus amigos próximos, tendo assim o privilégio de desfrutar de sua culta e agradável companhia. Não tenho agora condições de enumerar a todos, tendo presente sobretudo três nomes, todos consagrados juristas: Fábio Medina Osório, Humberto Ávila e Rafael Maffini (este hoje ministrando a cadeira de seu mestre na pós-graduação da UFRGS).

Como procurador do Estado do Rio Grande do Sul, Almiro destacou-se sempre por seu conhecimento, sua maneira afável de tratar os colegas e por suas excelentes contribuições para a literatura jurídica relativa ao Direito Público.

Ademais do Direito Administrativo, Almiro conhecia e utilizava com maestria o Direito Romano, cujo conhecimento adquiriu ainda muito jovem, na condição de pós-graduando na Universidade de Heidelberg.

Ao finalizar esta pequena homenagem ao professor Almiro do Couto e Silva, faço um paralelo entre os três irmãos Couto e Silva — todos destacados juristas — com os três irmãos — igualmente notáveis juristas — Henri, Léon e Jean Mazeaud, autores da obra conhecida mundialmente Leçons de Droit Civil, publicada em 19555.

Evoco essa semelhança pelo fato de constituir algo muito raro uma mesma família contar, na mesma época, com três descendentes voltados para uma mesma carreira e desenvolvê-la com tanto brilho.

Com o desaparecimento de Almiro, muitos ciclos se fecham, pois isso é natural; em todos os lugares onde ele atuava, sua ausência será muita sentida. Pessoalmente, minha tristeza é mais profunda no referente à pós-graduação em Direito da UFRGS, da qual foi cofundador, pois, embora já não frequentasse os seus ambientes, tínhamos, os contemporâneos à sua gestão, a sensação de contarmos entre nós com alguém de sua qualidade intelectual e moral, sua bondade e elegância, alguém que nos aconselhava e encorajava, com inteligência e com bom humor, a seguir em frente.


1 A respeito da personalidade de Clóvis, vide "Clóvis Veríssimo do Couto e Silva, advogado e jurista", in Judith Martins-Costa e Vera Jacob de Fradera, Estudos de Direito Privado e Processual Civil, em homenagem a Clóvis do Couto e Silva, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2014, p. 19 e segs.; Vera Jacob de Fradera, "Clovis do Couto e Silva, um jurista universal", in Grandes Juristas brasileiros, Livro II, orgs. Almir Rufino e Jaques de Camargo Penteado, Martins Fontes Editora, São Paulo, 2006, p. 89 e segs.
2 Os três irmãos eram perfeitamente fluentes em francês.
3 Ver sobre esse tema, Judith Martins-Costa e Vera Jacob de Fradera, Clóvis do Couto e Silva, (1930-1992), Revue Internationale de Droit Comparé, nº 01, jan-mars 1993, p. 43 e segs.
4 Lamentavelmente, hoje, o programa de pós-graduação imaginado e concretizado pelos irmãos Couto e Silva está muito distante do projeto original pensado por seus criadores. A proposta inicial de buscar sempre a excelência foi, faz muito, abandonada, constituindo hoje um programa opaco, mercê terem os responsáveis atuais apagado totalmente o brilho sonhado por seus idealizadores.
5 Em 2000, essa obra foi reeditada pela 12ª vez e é conhecida, por metonímia, pelos estudantes como Le Mazeaud.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!