Direito Comparado

Portugal obriga acesso à identidade genética em gestação de substituição

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

2 de maio de 2018, 13h54

Spacca
O Tribunal Constitucional da República Portuguesa divulgou no dia 24 de abril de 2018 o Acórdão 225/2018 (Processo 95/17), por meio do qual se declarou a inconstitucionalidade de diversos artigos da Lei 32/2006 (Lei da Procriação Medicamente Assistida – LPMA), com a redação dada pelas Leis 17/2016 e 25/2016. Na prática, a decisão do Tribunal Constitucional garantiu amplo acesso à identidade genética aos envolvidos no processo de gestão por substituição, mais ordinariamente conhecido no Brasil como “barriga de aluguel”. A presente coluna e sua sequência dedicar-se-ão ao estudo desse interessante julgado português[1].

A ação declaratória de inconstitucionalidade
No relatório do acórdão, tem-se que a ação declaratória de inconstitucionalidade foi proposta por um grupo de 30 deputados à Assembleia da República Portuguesa em face da já referida da LPMA, com respeito aos seguintes artigos: a) artigo 8º, n.ºs 1 a 12 (Gestação de substituição), “e, consequentemente, ‘das normas ou de parte das normas’ da LPMA que se refiram à gestação de substituição (artigos 2.º, n.º 2, 3.º, n.º 1, 5.º, n.º 1, 14.º, n.ºs 5 e 6, 15.º, n.ºs 1 e 5, 16.º, n.º 1, 30.º, alínea p), 34.º, 39.º e 44.º, n.º 1, alínea b)”; b) artigo 15º, n.ºs 1 e 4 (Confidencialidade), combinado com os artigos 10, nºs 1 e 2, e 19, nº 1; c) artigo 20, nº 3 (Determinação da parentalidade).

Os autores da ação apresentaram os seguintes fundamentos para seu pedido, os quais merecem ser resumidos para uma melhor compreensão da demanda[2]:

a) A LPMA, particularmente em seu artigo 15, assegura “o anonimato a todos os terceiros dadores de material genético com vista a possibilitar a fecundação da mulher”. A lei fixou como regra a “não revelação da identidade do doador à pessoa que nasce de técnica de reprodução assistida heteróloga, a menos que sobrevivam razões ponderosas reconhecidas por sentença judicial”. Dessa opção legislativa, decorre um conflito entre direitos fundamentais: (i) o direito do nascido (por meio de técnicas de procriação medicamente assistida) à identidade pessoal, do qual advém o direito ao conhecimento da ascendência genética; (ii) o direito a constituir família e o direito à intimidade da vida privada e familiar. A identidade pessoal teria na identidade genérica uma “de seus componentes essenciais”, adotando-se o conceito de Jorge Miranda e de Ruy Medeiros. Ou, ainda, com base de José Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, a identidade pessoal compreenderia o “direito à historicidade pessoal”.

Desse modo, “o direito ao conhecimento das origens genéticas imporá, assim, ao legislador ordinário a consagração de soluções que não constituam entraves exagerados a essa investigação, apontando para um princípio de imprescritibilidade do direito a investigar, tendência, aliás, generalizada nos ordenamentos jurídicos próximos do nosso”.

b) Considerando-se o perfil do direito à identidade pessoal, é duvidosa a constitucionalidade da lei ordinária que cria um regime de anonimato total do doador de material genético para procriações medicamente assistidas. Um regime de anonimato mitigado seria discutível, mas, em razão das alterações inauguradas pela Lei 17/2016 e pela Lei no 25/2016, a renovação do controle de constitucionalidade se torna premente.

c) A situação é, afirmam os autores, ainda mais censurável quando se observa o regime de anonimato total conferido por lei à “gestante de substituição” (“barriga de aluguel”, na linguagem brasileira, que começa a cair em desuso). Para os autores, citando Fátima Galante e Antunes Varela, não se pode negar “o direito do filho a conhecer a identidade da mãe portadora nos casos de gestão de substituição”, dado que entre a “gestante de substituição” e a criança “há um elemento real de importância capital na relação de filiação, que é a vida intrauterina do embrião, a ligação intensa permanente entre o ser que se forma e o corpo humano que dentro das suas entranhas lhe dá vida”.

d) A LPMA viola os princípios da igualdade e da não discriminação (artigo13o, Constituição portuguesa), dado não se compreender que se dê aos adotados o direito ao conhecimento de suas origens e se negue esse mesmo direito “aos nascidos por recurso a técnicas de PMA”.

e) A dignidade humana e o dever estatal de proteção da infância também se mostrariam ofendidos pela LPMA. Segundo os autores, o negócio jurídico de “gestação de substituição” “não existia na ordem jurídica portuguesa até à entrada em vigor da Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto”. Esse método de procriação varia, nos diversos países, entre um regime de vedação total ou de permissão sem restrições. O modelo jurídico português adota uma posição intermediária: a “gestação de substituição” “é admitida, em termos excecionais, com base na comprovação de razões clínicas e de saúde”.

Na petição inicial, os autores afirmam que a “gestação de substituição” tem sido muito criticada por abrir margem para “uma verdadeira mercantilização do ser humano: a criança passa a ser objeto de um negócio jurídico e a mãe gestante converte-se numa mera incubadora ao serviço dos beneficiários”. Eles reconhecem, porém, que, “num mundo — e país — onde os casos de infertilidade aumentam, a maternidade de substituição é apresentada como mais um método de procriação medicamente assistida, dirigido a tratamentos de infertilidade e que, nesta excecionalidade, visa, no limite, permitir que os beneficiários realizem o projeto de ter filhos e a gestante de substituição satisfaça um louvável espírito altruísta e de solidariedade”.

Criou-se um mercado, dizem os autores, para a “gestação de substituição” em países pobres, mas com empresas sediadas em regiões ricas, cujos clientes pagam elevadas quantias, abrindo-se inclusive a possibilidade do aborto ao final do processo. Trata-se de uma “uma atividade em ascensão em muitos países, sendo cada vez mais numerosas as agências que, neste contexto, lucram tanto com o sofrimento dos casais inférteis, como com a vulnerabilidade de muitas mulheres”.

Rigorosamente, haveria até seis pessoas com titularidade para “reclamar direitos de parentalidade” quando se recorre à PMA com intermediação de gestação por sub-rogação: “i) a dadora do óvulo; ii) a gestante de substituição; iii) a beneficiária; iv) o dador do espermatozoide; v) o marido da gestante (sujeito simplesmente ignorado na presente lei e cujo consentimento é fundamental atendendo à presunção de paternidade); e vi) o beneficiário”.

Com fundamento em Kant, os autores defendem que a dignidade humana é de ser assegurada mesmo ao concepturo e que a proteção da criança restaria deficitária se não lhe fosse possível assegurar o pleno conhecimento à identidade genética e sua historicidade pessoal.

O núcleo do acórdão e método de exposição
Com quase 200 páginas, o que é um número significativo mesmo para o Tribunal Constitucional português, o acórdão ocupa-se do tema da “gestação de substituição” no Direito Comparado, tornando-o uma interessante fonte para pesquisadores estrangeiros. Na sequência desta coluna e em sua continuação na próxima semana, far-se-á uma resenha de seus principais eixos.

Gestação de substituição: Questões terminológicas
O acórdão salienta a alteração terminológica ocorrida após 2016: de “maternidade de substituição” passou-se a “gestação de substituição”. O tribunal entendeu que a segunda noção é mais ampla. Na sequência, reconheceu-se a natureza negocial do vínculo entre a gestante e os beneficiários por sua substituição, o que implicaria um conjunto de atos consentidos: gravidez (“o processo biológico, psicológico e potencialmente afetivo inerente à gestação –, a qual é suportada ou vivida, necessariamente também, no interesse dos beneficiários”) e o parto da criança. Esse consentimento alcançaria a renúncia aos “poderes e deveres próprios da maternidade”, o que também alcança a ideia de que “a criança dada à luz pela gestante não é tida como sua filha, mas sim como filha dos beneficiários do contrato de gestação de substituição”.

Experiência do Direito estrangeiro e da União Europeia
Em outra subseção do acórdão, faz-se um interessante exame da experiência no Direito estrangeiro e na União Europeia:

a) A Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina (Convenção de Oviedo), de 1997, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos (UNESCO, 1997) e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia proíbem que o corpo humano seja fonte de lucros, a qualquer título, o que compreende o genoma humano.

b) A jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, ao analisar a gestação de substituição, orienta-se no sentido de “que o não reconhecimento da filiação e a recusa de atribuição (à criança) da nacionalidade dos pais-beneficiários têm como consequência um dano intolerável para o direito à vida privada, nomeadamente, devido à situação de indefinição jurídica em que as crianças são deixadas, que as impossibilita de estabelecer os detalhes da sua identidade como ser humano”.

c) As soluções legislativas encontradas no Direito estrangeiro dividem-se em três grupos: (i) primeiro – permite-se e regula-se a gestação de substituição, seja gratuita, seja onerosa. É reconhecida a existência de “vínculos de parentalidade entre os beneficiários e a criança concebida imediatamente após o parto, de forma direta e automática, por força da lei”; (ii) segundo – A gestante é reconhecida como mãe, admitindo-se, via processo judicial, a “atribuição da maternidade e paternidade aos membros do casal beneficiário”; (iii) terceiro – Neste grupo, é proibida a prática de gestação de substituição e os que dela tomam parte sujeitam-se a punições.

São exemplos de países do terceiro grupo, segundo o acórdão, Alemanha, Áustria, Espanha, Suíça (proibição constitucional), França, Itália, Dinamarca, Finlândia (proibição legal expressa desde 2007), Suécia, Bulgária e Malta. Há ainda vedação legal nos Estados de Indiana, Michigan, Nova Jersey e Nova Iork, na América do Norte. Na Noruega, há normas sobre o reconhecimento de paternidade quando a gestação de substituição ocorre no estrangeiro. A prática, contudo, é proibida no país.

Na coluna da próxima semana, far-se-á o exame detalhado da realidade jurídica dos países referidos nesses grupos.


[1] Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180225.html. Acesso em 30/4/2018.
[2] Todos os trechos entre aspas foram retirados do inteiro teor do acórdão do Tribunal Constitucional português.

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    é conselheiro da Agência Nacional de Telecomunicações, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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