Tribuna da Defensoria

Estado é corresponsável por jovens infratores no âmbito socioeducativo

Autor

  • Alexandre Paranhos Pinheiro Marques

    é defensor público titular da Coordenadoria de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Fundação Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (FESUDEPERJ) e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Autor do volume de Direito Penal - Parte Geral da Coleção Defensoria Ponto a Ponto da Editora Saraiva.

1 de maio de 2018, 13h03

A ideia de escrever sobre o tema partiu da minha vivência na seara da proteção da criança e do adolescente como defensor público titular da Coordenadoria da Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro.

A observância de unidades de internação cariocas superlotadas, decorrência da ineficiência do poder estatal, que geram um verdadeiro sistema de encarceramento dos adolescentes em conflito com a lei do estado do Rio de Janeiro, foi a mola propulsora para a ideia da redação do presente artigo.

Passemos às considerações.

Tratamento especial de proteção da criança e do adolescente
O tratamento dispensado para o adolescente em conflito com a lei indiscutivelmente é especial, o que pode ser extraído através de simples análise do ordenamento jurídico.

O Brasil, visando atender às necessidades peculiares dos adolescentes em conflito com a lei, tornou-se signatário de normas de direito internacional, quais sejam o artigo 24 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, promulgado pelo Decreto 592/92 e o artigo 19 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Por outro lado, no que tange às normas internas, inicialmente trazemos à baila o artigo 227 da Constituição da República de 1988, que aponta uma proteção integral ao adolescente em conflito com a lei, devendo ser observada, inclusive, absoluta prioridade.

Em razão do disposto em nossa Lei Maior, no ano de 1990 foi publicado o Estatuto da Criança e do Adolescente que em seu o artigo 3º ratifica os ditames constitucionais.

Desta forma, diante dos dispositivos já mencionados não se discute que em razão da nossa legislação, a criança e o adolescente recebem tratamento especial e prioritário.

Adolescente – prática de atro infracional – caráter sancionatório da medida socioeducativa – tratamento, no mínimo, igualitário que deve ser dispensado entre o adulto e ao adolescente – seara criminal e do ato infracional – item 54 das Diretrizes de Riad (regras mínimas das Nações Unidas para prevenção da delinquência juvenil) e inciso I do artigo 35 da Lei 12.594/2012
Embora o adolescente não pratique infração penal, pois são considerados inimputáveis por força do disposto no artigo 27 do Estatuto Repressivo[1], é passível de praticar atos infracionais que são, de acordo com o textualizado no artigo 103 e artigo 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, análogos aos crimes ou contravenções sujeitos a uma resposta do Estado editor da norma que nada mais é do que a medida socioeducativa.

Inexoravelmente, não podemos deixar de afirmar que as medidas socioeducativas, além de um caráter pedagógico, possuem conteúdo sancionatório, podendo ser consideradas verdadeiras sanções penais juvenis. Isto porque o adolescente pratica conduta que vai de encontro ao que dispõe a legislação, estando sujeito a uma resposta do Estado, podendo ser, inclusive, privado de sua liberdade de locomoção em razão da incidência da internação seja ela provisório ou definitiva[2].

Ainda podemos apontar como fundamento do caráter punitivo e sancionatório da medida socioeducativa o disposto no artigo 1º, §2º, inciso III da Lei 12.594/12 indicando que o objetivo da mesma também é a desaprovação da conduta infracional.

É importante salientar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça reconhece o caráter retributivo da medida socioeducativa, tendo, em razão de tal fato, reconhecido, inclusive, a possibilidade do instituto penal da prescrição[3], encontrando-se a matéria sumulada no verbete 338[4].

Afora o exposto e considerando o caráter sancionatório da medida socioeducativa, embora o adolescente pratique ato infracional análogo a crime, de acordo com os itens 54 das Regras Mínimas das Nações Unidas para Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de RIAD) e artigo 35, inciso I da Lei 12.594/2012, não poderá receber tratamento mais gravoso do que os adultos. Isto porque, se como já indicamos o adolescente recebe tratamento especial do ordenamento jurídico, não seria razoável nem proporcional que recebesse tratamento mais severo do que o adulto.

Destarte, ainda que o adolescente em conflito com a lei não pratique infração penal, até porque faltará um dos elementos do seu conceito estratificado ou analítico, qual seja a culpabilidade, por ser ele inimputável (inimputabilidade por imaturidade – artigo 27 do Codex), está ele submetido a uma resposta do Estado que pode lhe privar da liberdade de locomoção, possuindo a mesma caráter punitivo e sancionatório, sendo certo que deverá receber, ao menos, o mesmo tratamento conferido ao adulto pelo ordenamento jurídico penal.

Da co-culpabilidade (corresponsabilidade ou culpabilidade pela vulnerabilidade) – materialização no âmbito socioeducativo – artigo 49, inciso II da lei 12.594/2012 (Sinase)
Observado ante o exposto que o adolescente em conflito está sujeito a uma resposta sancionatória do Estado, devendo receber tratamento especial e, no mínimo, idêntico ao do adulto que pratica infração penal, passemos à análise da materialização da coculpabilidade no âmbito do ato infracional e das medidas socioeducativas.

Nesta linha, podemos afirmar que a doutrina mais avançada constrói, a partir da ideia de um Direito Penal com bases democráticas, considerando-se no caso o Direito Penal Juvenil, o princípio da coculpabilidade (corresponsabilidade ou culpabilidade pela vulnerabilidade) como forma de redutor do poder punitivo estatal, invocando como sustentáculo situações concretas vividas pelo acusado (adolescente), no contexto social e ainda com suporte na omissão do Estado em prover as necessidades básicas e fundamentais do cidadão.

A promessa social constante da Constituição da República e não cumprida pelo Estado (dimensão positiva do preceito fundamental da dignidade da pessoa humana textualizado no artigo 1º, inciso III) acarreta como consequência no campo penal a diminuição da carga de responsabilidade do acusado (adolescente), toda vez em que este estiver numa condição de indigência decorrente exatamente da inércia estatal, e visa, como escopo último, a concreção do postulado também de índole constitucional da isonomia (artigo 5º, caput da Constituição Federal).

Resta bem claro e patente, portanto, que ao lado da responsabilidade pessoal do adolescente, caminha, em estreita ligação e de forma indissolúvel, uma certa coresponsabilidade do Estado.

Adota o Direito Penal brasileiro tal princípio? O mesmo pode ser materializado no ordenamento jurídico penal?

Com certeza a resposta pode ser positiva, o que se depreende através da análise do ordenamento jurídico, a exemplo do artigo 60, caput e §1º do Código Penal ao indicar critérios para fixação da pena pecuniária, considerando a situação econômica do réu, o artigo 66 do Codex quando trata da atenuante genérica inominada, indicando a necessária atenuação da sanção em razão de circunstância relevante quando observada pelo magistrado, o artigo 14 inciso I da Lei 9.605/98 que impõe o abrandamento da pena em razão do baixo grau de escolaridade do réu e, até mesmo, o artigo 187, §1º do Código de Processo Penal que determina que o magistrado deverá questionar o réu acerca das oportunidades sociais que teve.

E na seara socioeducativa? O princípio da mesma forma que área criminal poderá ser materializado?

Mais uma vez a resposta é positiva. Como forma de materialização da corresponsabilidade no Direito Penal Juvenil, identificamos o disposto no artigo 49, inciso II da Lei do 12.594 (Sinase)[5], que em função da superlotação (ausência de vagas nas unidades de internação), permite que o adolescente seja colocado em meio aberto, quando o ato não for praticado com violência ou grave ameaça à pessoa, ou seja, se o Estado não abriga (interna) de forma adequada o adolescente em conflito com a lei, tem corresponsabilidade em seu processo socioeducativo, devendo colocá-lo em meio aberto.

O Estado, por não cumprir o seu papel decorrente do aspecto positivo da dignidade da pessoa humana, posto que falta vaga em unidades de internação, deverá ser responsabilizado, tendo como consequência a necessária inclusão do adolescente em meio mais brando.

Isto porque o Estado mentiu para o adolescente. Disse a ele que a o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Lei do Sinase lhe garantiam uma harmônica reintegração social e normatizou, em vários dispositivos, direitos tendentes a minimizar as causas do ato infracional e promover sua “reintegração”. Prometeu muito e não cumpriu nada! Não pode haver sanção somente para o adolescente. Deve sim haver coresponsabilização para o Estado.

Diante de quadro tão dramático em que os adolescentes em conflito com a lei se encontram, em verdadeiro estado de indigência social, cultural e econômica, principalmente ante a estrutura das unidades de cumprimento das medidas socioeducativas de internação cariocas, deverá haver a incidência do artigo 49, inciso II da Lei 12.594/12 nos casos concretos o que materializará o instituto da coculpabilidade na seara socioeducativa.


[1] O adolescente não pratica infração penal, posto que faltará no caso concreto um dos seus elementos (conceito analítico), qual seja a culpabilidade. A culpabilidade é composta de imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa. Em razão da inimputabilidade pela imaturidade (critério etiológico) restará ausente no comportamento do adolescente a culpabilidade, estando ele, inclusive, sujeito à legislação especial.

[2] Em razão do disposto no artigo 1º, §2º, inciso I e II da Lei 12.594/12 (SINASE) podemos extrair tal conclusão, onde a responsabilização do adolescente ante a sua conduta lesiva se dá em razão da incidência no caso concreto da medida socioeducativa.

[3] HC 201.991/SP, Rel. MIN. GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 06/10/2011, DJe 14/10/2011 e HC 150.380/SP, Rel. MIN. LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 15/03/2011, DJe 28/03/2011.

[4] Súmula 338 do STJ – “A prescrição penal é aplicável nas medidas socio-educativas.” (sic)

[5] “Artigo 49. São direitos do adolescente submetido ao cumprimento de medida socioeducativa, sem prejuízo de outros previstos em lei: (…) II – ser incluído em programa de meio aberto quando inexistir vaga para o cumprimento de medida de privação da liberdade, exceto nos casos de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, quando o adolescente deverá ser internado em Unidade mais próxima de seu local de residência;” (grifei)

Autores

  • é defensor público, titular da Coordenadoria de Defesa da Criança e do Adolescente da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Fundação Escola da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (FESUDEPERJ) e da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ). Autor do volume de Direito Penal - Parte Geral, da Coleção Defensoria Ponto a Ponto da Editora Saraiva.

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