Opinião

A aplicação do princípio da prevenção para coibir o uso de agrotóxicos

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29 de junho de 2018, 6h26

1. Revolução Verde e o início da utilização de agrotóxicos
Em primeiro lugar, importa tecer brevíssimas considerações sobre a evolução das técnicas produtivas e de cultivo decorrentes da Revolução Verde, as quais conduziram à utilização, em nossa agricultura, das substâncias agrotóxicas.

A Revolução Verde consistiu em uma série de transformações ocorridas na agricultura mundial após a Segunda Guerra Mundial, decorrentes do processo de modernização (utilização de maquinários, insumos e técnicas produtivas) que permitiu aumento da produtividade do trabalho e da terra[1].

De acordo com Leonardo Coppola Napp, a partir da Segunda Guerra Mundial, os agrotóxicos foram introduzidos de forma massiva na agricultura de todo o mundo, iniciando a chamada Revolução Verde[2].

Isso significa dizer que um número cada vez menor de pessoas produz a mesma (ou maior) quantidade de mercadorias.

Pode-se considerar quatro fases das políticas agrícolas brasileiras após o início da Revolução Verde:

  • 1965-1985 – modernização conservadora: modernização da agricultura sem alteração da estrutura fundiária;
  • 1985-1995 – desmonte das políticas agrícolas e liberalização dos mercados;
  • 1995-2002: retomada da política de crédito com juros controlados, mas com recursos privados; desenvolvimento de mecanismos privados de escoamento e estoques da produção;
  • 2003-atualmente: fortalecimento da política de crédito e pequena retomada de outros mecanismos, principalmente dos direcionados à agricultura familiar (seguro agrícola, seguro de preços, compras institucionais, assistência técnica etc).

No Brasil, as primeiras legislações que trataram do tema, ainda que de forma superficial, foram o Decreto 24.114, de 14/4/1934, e, 20 anos depois, a Lei 2.312, de 3/9/1954[3].

A intensificação e modernização da agricultura, todavia, têm trazido impactos prejudiciais ao meio ambiente (qualidade da água, do ar e dos alimentos), na medida em que a alta utilização de insumos e agrotóxicos contribuiriam para a contaminação de recursos naturais.

Mais recentemente, a utilização de transgênicos, cuja implicações na saúde humana e no meio ambiente são incertas, motivam intensos debates a respeito de sua segurança.

2. Princípio da prevenção e princípio da precaução
Sobre os princípios da prevenção e da precaução, Leonardo Fabio Pastorino ensina que eles se justificam na ideia de que as consequências das intervenções humanas sobre o meio ambiente podem provocar reações em cadeia jamais imaginadas e muitas vezes irreparáveis[4].

O princípio da prevenção tem por objetivo impedir a concretização de dano ambiental, nas hipóteses em que “se tem elementos seguros para afirmar que uma determinada atividade é efetivamente perigosa”[5].

Já o princípio da precaução é aplicável diante da inconclusividade e incerteza de estudos científicos sobre determinado tema, acerca do qual há “indicações de que os possíveis efeitos sobre o ambiente, a saúde das pessoas ou dos animais ou a proteção vegetal possam ser potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido”[6].

De acordo com o professor Édis Milaré, a diferença entre o princípio da prevenção e o da precaução é que o primeiro pressupõe um risco ambiental já conhecido pela ciência, enquanto o último trata de riscos incertos e abstratos[7].

No mesmo sentido, entende Adriana Bestani que o princípio da prevenção “tiende a evitar um daño futuro, pero certo y mensurable”, enquanto o princípio da precaução objetiva “impedir la creación de um riesgo con efectos todavia desconocidos y, por lo tanto, imprevisibles[8].

Esses princípios encontram-se expressos na Constituição Federal (CF, 5º, caput), constituindo dever do poder público e de toda a coletividade defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações.

3. Utilização de agrotóxicos
Já no início da década de 1960, a obra Primavera Silenciosa, de Rachel Carson, de certo modo já alertava para o risco de que a utilização de agrotóxicos estaria contaminando o meio ambiente, inclusive os alimentos consumidos pela população[9].

Helita Barreira Custódio[10] afirma que constitui fato cientificamente comprovado a associação do uso indiscriminado e abusivo dos agrotóxicos com a contaminação do solo, de seus acessórios, das espécies animais e vegetais, bem como com o aparecimento de novas doenças.

Em artigo dedicado ao tema, Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira[11] descreve a associação do uso de agrotóxicos e inseticidas ao aumento do risco tumoral em camundongos geneticamente modificados, bem como a danos ao sistema nervoso dos seres humanos. Inclusive, a autora indica estudos que apontam a ligação da utilização de agrotóxicos com desequilíbrio no sistema endócrino e até com o aumento de tentativas de suicídio.

De acordo com estudo apresentado pelo Inca (Instituto Nacional do Câncer José de Alencar Gomes da Silva)[12], esses agrotóxicos podem ser encontrados não apenas em alimentos in natura, mas também em produtos alimentícios processados pela indústria, como biscoitos, salgadinhos, pães, cereais matinais, carnes e leites de animais (em razão de alimentação através de ração).

Em seu parecer, o Instituto do Câncer consignou que os malefícios agudos causados pelo uso intensivo de insumos e agrotóxicos são observados principalmente dentro do grupo de pessoas expostas a esse tipo de produto em seu ambiente de trabalho (exposição ocupacional).

Leonardo Coppola Napp aponta pesquisa da Universidade Federal de Mato Grosso, em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz, no bojo da qual se constatou que o número de agricultores contaminados por agrotóxicos no Brasil passou de 5 mil em 2007 para 10 mil em 2012[13].

Os efeitos dessa exposição seriam irritação da pele e dos olhos, coceira, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias, convulsões e até morte[14].

De outro lado, as intoxicações crônicas, segundo esse estudo, afetariam toda a população e estariam associadas a problemas de infertilidade, impotência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e até câncer.

Ainda aponta esse parecer que a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) teria publicado estudo no bojo do qual classificou como prováveis agentes carcinogênios agrotóxicos utilizados no Brasil (glifosato, malationa e diadizinona).

Diante disso, o Inca recomendou, com base no princípio da precaução, o “estabelecimento de ações que visem à redução progressiva e sustentada do uso de agrotóxicos, como previsto no Programa Nacional para Redução do uso de Agrotóxicos (Pronara)”.

Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira entende que, a fim de conferir maior efetividade ao princípio da precaução, os registros dos agrotóxicos nos órgãos competentes deveriam sofrer reavaliações periódicas. Somente assim se possibilitaria a adequada tutela do meio ambiente e da saúde humana[15]. A autora ainda aponta, como exemplo de legislação eficaz, a Lei estadual 15.120/2010 de Santa Catarina, que exige, além do registro do agrotóxico, a liberação da comercialização do produto em seu país de origem.

Para Leonardo Coppola Napp, a Lei 12.873/2013 representou retrocesso à proteção do meio ambiente e da saúde humana, na medida em que permitiu ao Estado declarar estado de emergência fitossanitária ou zoosanitária e anuir com a importação, produção, distribuição, comercialização e uso de agrotóxicos[16].

Esse mesmo autor menciona que a defesa da utilização dos agrotóxicos geralmente se justifica na necessidade de se afastar a fome da população mundial. Todavia, não é possível se estabelecer limites seguros de exposição a esses produtos (conforme estudo apresentado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva)[17].

Conclui o autor, diante disso, que o que “está ao alcance do consumidor é, portanto, adotar uma prática de redução de danos face a esses riscos, principalmente os sinérgicos e crônicos, através de mecanismos eficientes de divulgação que possibilitem diferenciar o grau de risco a que ele está exposto, com a inserção de informações toxicológicas nos rótulos de embalagens e expositores de alimentos”[18].

Como se observa, há estudos acadêmicos já publicados indicando, com segurança, o nexo causal entre danos ao meio ambiente, principalmente à saúde humana, e a utilização de agrotóxicos.

Assim, diante de elementos seguros que demonstram danos muitas vezes irreparáveis, justifica-se a aplicação do princípio constitucional da prevenção, a fim de se evitar a ocorrência de dano ambiental.

4. Entendimento adotado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo a respeito do tema
Sobre essa questão, observamos acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o qual analisou ação civil pública movida contra o município de Jacareí, seu respectivo prefeito e secretário de Serviços Municipais, objetivando a condenação dos réus à obrigação de não fazer consistente em se absterem de realizar “capina química” em córregos daquele município.

“I – AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. Aplicação de herbicida nas margens dos córregos – 'capina química'. Preliminares bem rechaçadas em sede de sentença, nada havendo a acrescentar. Preliminares afastadas.
II – AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL. Aplicação de herbicida nas margens dos córregos – 'capina química'. Ação julgada procedente para anular parte do objeto do contrato firmado, relativamente à utilização de herbicidas em cursos d'água do Município-réu. Possibilidade de dano ambiental. Aplicação do princípio da prevenção. Sentença de procedência da ação mantida. Multa por descumprimento, igualmente mantida. APELAÇÕES NÃO PROVIDAS, BEM COMO DO RECURSO DE OFICIO.”
TJSP, Câmara Reservada do Meio Ambiente, v.u., rel. Des. Eduardo Braga, Apelação Cível com Revisão 9151764-36.2007.8.26.0000, j. 10.11.2011, DJ 17.11.2011)

Segundo o acórdão, sustentou o autor que essa prática traria danos ao meio ambiente, vez que o produto químico utilizado impediria o crescimento da mata ciliar.

Sobreveio sentença julgando procedente os pedidos, mantendo multa que havia sido imposta em sede de antecipação dos efeitos da tutela, para o caso de descumprimento da obrigação de não fazer.

O Tribunal de Justiça de São Paulo, ao analisar o recurso de apelação, entendeu que não haveria nos autos comprovação de autorização da utilização do produto Arsenal NA (adotado na “capina química”) às margens de córregos e cursos de água em geral.

De outro lado, o relator, em seu voto, sustenta que existiria provas de que o herbicida utilizado pela municipalidade recorrente traria danos irreparáveis à mata ciliar, interferindo na síntese do DNA e no crescimento celular das plantas.

Essa situação, de acordo com o tribunal, causaria redução da capacidade de retenção de água da chuva pela mata ciliar, contribuindo para enchentes e mau abastecimento do lençol freático.

Em razão disso, diante de elementos que demonstravam a iminência de dano de difícil ou incerta reparação, agiu bem o acórdão ao aplicar o princípio da prevenção, a fim de impedir a lesão ambiental naquela região.

5. Conclusão
Portanto, parece-nos que eventual efetividade da utilização dos agrotóxicos não pode justificar o manejo de produtos danosos ao meio ambiente, inclusive à saúde da coletividade, conforme apontam pesquisas e estudos analisados para a elaboração deste artigo.

Assim, havendo elementos concretos evidenciando potencialidade de dano ao meio ambiente, faz-se necessária a aplicação do princípio da prevenção a fim de se coibir o emprego desses produtos.


[1] O Desenvolvimento da Agricultura brasileira e mundial e a ideia de Desenvolvimento Rural (http://www.deser.org.br/documentos/doc/DesenvolvimentoRural.pd)
[2] NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015, p. 281/308.
[3] FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. O princípio da prevenção e a gestão dos riscos dos agrotóxicos no Brasil in Revista de Direito Ambiental, vol. 62/2011, abril-junho de 2011, p. 119/139.
[4] PASTORINO, Leonardo Fabio. El daño al ambiente, 1ª Edição, Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2005, p. 96.
[5] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, 8ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 264.
[6] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, 8ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 264.
[7] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, 8ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 262-263.
[8] BESTANI, Adriana. Principio de precaución, 1ª Edição, Buenos Aires: Astrea, 2012, p. 19.
[9] CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa, 2ª Edição, São Paulo: Melhoramentos, 1969, p. 17.
[10] CUSTÓDIO, Helita Barreira. Problemática dos agrotóxicos in Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental, v. 2, março/2011, p. 799/820.
[11] FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. O princípio da prevenção e a gestão dos riscos dos agrotóxicos no Brasil in Revista de Direito Ambiental, vol. 62/2011, abril-junho de 2011, p. 119/139.
[12] Posicionamento do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Acerca dos Agrotóxicos (http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/comunicacao/posicionamento_do_inca_sobre_os_agrotoxicos_abr_15.pdf).
[13] NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015, p. 281/308.
[14] Posicionamento do Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Acerca dos Agrotóxicos (http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/comunicacao/posicionamento_do_inca_sobre_os_agrotoxicos_abr_15.pdf).
[15] FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. O princípio da prevenção e a gestão dos riscos dos agrotóxicos no Brasil in Revista de Direito Ambiental, vol. 62/2011, abril-junho de 2011, p. 119/139.
[16] NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015, p. 281/308.
[17] NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015, p. 281/308.
[18] NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015, p. 281/308.


Bibliografia
BESTANI, Adriana. Principio de precaución, 1ª Edição, Buenos Aires: Astrea, 2012.
CARSON, Rachel. Primavera Silenciosa, 2ª Edição, São Paulo: Melhoramentos, 1969.
CUSTÓDIO, Helita Barreira. Problemática dos agrotóxicos in Doutrinas Essenciais de Direito Ambiental, v. 2, março/2011.
FERREIRA, Maria Leonor Paes Cavalcanti. O princípio da prevenção e a gestão dos riscos dos agrotóxicos no Brasil in Revista de Direito Ambiental, vol. 62/2011, abril-junho de 2011.
MILARÉ, Édis. Direito do ambiente, 8ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
NAPP, Leonardo Coppola. A necessidade de desenvolvimento de políticas públicas e reformulação do marco jurídico dos agrotóxicos no Brasil, sobretudo após a edição da Lei 12.873/2013 in Revista de Direito Ambiental, vol. 79/2015, julho-setembro de 2015.
PASTORINO, Leonardo Fabio. El daño al ambiente, 1ª Edição, Buenos Aires: Lexis Nexis Argentina, 2005.

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