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Carlos Abrão: PL 10.220/2018 vai de encontro ao Direito concursal

27 de junho de 2018, 7h02

Por Carlos Henrique Abrão

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Os membros do parlamento brasileiro, na reta final de seus respectivos mandatos legislativos, querem acelerar a aprovação de projetos de leis relevantes no concerto empresarial, dentre os quais um de iniciativa do Executivo: o Projeto de Lei 10.220/2018. Mencionado projeto representa grave retrocesso, encerra inúmeras contradições e vai de encontro ao moderno Direito concursal comparado.

O problema fundamental não reside na lei em si, mas na contaminação do ambiente de negócios, sendo que os preços praticados no país são refratários à maioria da população e à renda per capita do brasileiro. Apenas para que se tenha uma ideia, os preços dos nossos automóveis são duas vezes e meia maiores que nos Estados Unidos, e os spreads bancários, quatro vezes aqueles praticados no mundo desenvolvido; ao falarmos no nosso celular, um minuto custa sete vezes mais que nos EUA, segundo o economista Edmar Bacha.

Esses dados, por si só, promovem uma reflexão sobre se a mudança legislativa trará um novo horizonte para a recuperação judicial ou continuaremos a nadar em mar revolto, com grandes perspectivas de naufragarmos.

Boa intenção somente não basta. Porém, o que se viu no Projeto de Lei 10.220/18 foi um avanço inexorável em relação ao credor Fazenda, acompanhado de mecanismos absolutamente supérfluos na retomada do crescimento e no desenvolvimento da atividade empresarial. Isso porque o contingenciamento das empresas brasileiras se faz no quadro de 95% de micro e pequenas empresas, enquanto as grandes corporações, amplamente beneficiadas pelos procedimentos de recuperação judicial, permanecem décadas empurrando com a barriga as obrigações contraídas no plano aprovado e homologado pelo juízo, uma vez que não temos a tradição da decretação da quebra de corporações que se infiltram na tessitura social e têm peso político expressivo.

Num vol d’oiseau sobre o Projeto de Lei 10.220/18, nota-se que foi perdida a grande oportunidade da efetiva reforma daquilo que não funcionava no Diploma Normativo 11.101/05. Existem pecados originais gravíssimos, como a determinação da criação de vara especializada em caso de passivo superior a 300 mil salários mínimos, o que fere a autonomia normativa regimental das cortes de Justiça.

Além disso, a não suspensão das execuções fiscais de créditos correlatos, notadamente a proibição de avaliação do juízo recuperacional, retira a importância do conjunto essencial de bens para a continuidade do negócio.

A suspensão da ação de despejo à data da entrada do pedido de recuperação judicial também se revela medida inócua, isso porque muitas vezes o crédito é ilíquido e precisa ser performado na modalidade de cobrança para a habilitação perante o juízo adequado.

O encerramento da recuperação judicial sem homologação no quadro geral de credores é no mínimo temerária e poderá ensejar infundados incidentes, notadamente ações autônomas, sem a referência atrelada ao procedimento, fases e etapas e documentos indispensáveis até para efeito de impugnação.

Excessiva ênfase ocorreu referentemente à remuneração do administrador judicial, inclusive possibilitando a revisão de valores, até semestralmente, diante da nova realidade das sanções a serem desempenhadas.

O comitê de credores revela-se órgão inócuo e absolutamente desnecessário, colocando-se em dúvida a permanência da assembleia geral de credores, por demais esvaziada com o absenteísmo, dificuldades de deslocamento e a concentração de créditos em mãos de instituições financeiras.

Melhor seria se o legislador previsse que a blindagem assegurada à empresa em recuperação, por uma só vez, pudesse alcançar os sócios de responsabilidade solidária, evitando-se assim múltiplos conflitos de jurisdição e diversas ações propostas contra o garante solidário, penhora de cotas, desconsideração da personalidade jurídica e outras medidas que afetam e abalam a empresa em recuperação.

Desastrosa medida prevê a possibilidade de a Fazenda Pública requerer a quebra, dentro do período de recuperação judicial, ou no cumprimento da vigência do plano. De início a Fazenda Pública tem posição assimétrica, na medida em que, tendo o privilegiamento do seu crédito, ao menos deveria dele abrir mão para poder requerer a quebra, cujas hipóteses, por maior clareza que tenham, demandam percuciente análise ou prova técnica específica. Agudiza-se a situação quando se oportuniza a inadimplência de créditos fiscais vencidos, exclusão do parcelamento e alienação de bens com oneração sem a prévia comunicação à Fazenda Pública.

Talvez sejamos o único Estado no mundo no qual o Fisco, em vez de querer incrementar a atividade produtiva, pelo excesso de carga tributária não só deseja a morte das empresas devedoras como também comparece ao seu sepultamento e ainda leiloa as cinzas.

É evidente que durante o período de recuperação a carga tributária deve ser proporcional à queda do faturamento, à redução do capital de giro e ao passivo da empresa recuperanda, sem exigências de certidões negativas ou de outras burocracias que eternizam o procedimento, criando verdadeiro tiroteio em diversas instâncias para a liberação da certidão, mesmo que positiva com efeitos negativos.

Enfim, enquanto o legislador não se conscientizar de que o problema não é de ordem legal, mas, sim, estrutural, peculiar ao ambiente dos negócios, à carga tributária, aos preços abusivos, à falta de concorrência, à mínima competição e à ineficiência dos órgãos de regulação, vamos continuar a legislar com absoluta certeza de que no dia seguinte vigorará o velho brocardo, muito acalentado entre nós: “Plus ça change, plus c’est la même chose”.