Opinião

Delações, omissões e comportamentos isonômicos

Autor

  • André Luís Callegari

    é advogado criminalista pós-doutor em Direito Penal pela Universidad Autónoma de Madrid professor de Direito Penal no IDP-Brasília sócio do Callegari Advocacia Criminal e parecerista especialista em lavagem de dinheiro.

25 de junho de 2018, 9h59

Desde a edição da Lei 12.850/13, que trata da colaboração premiada, muito se produziu a respeito da colaboração, principalmente sobre os procedimentos, elaboração de anexos, validação das provas e prêmios concedidos ao colaborador, porém, quase nada se produziu a respeito dos processos de revisão e/ou rescisão.

É verdade que nas cláusulas pactuadas com o Ministério Público há sempre a menção sobre a possibilidade de revisão e/ou rescisão quando o colaborador, usando de má-fé, deixa de revelar fatos ilícitos de que tenha conhecimento. Aqui já reside o primeiro problema, ou seja, a análise da ilicitude dos fatos e de seu conhecimento por parte do colaborador, pois, ainda que devidamente assistido por profissional qualificado, não poderá, em muitos casos, ter ou alcançar este conhecimento. Nesse sentido, isso deve ser levado em conta no momento de qualquer processo de revisão da colaboração. Veja-se que na maioria dos acordos firmados esse juízo ficará a critério do Ministério Público, o que deixa o colaborador na incerteza sobre determinados fatos que lhe poderão custar a manutenção do acordo.

O conhecimento da ilicitude em matéria penal não é tarefa fácil, nem mesmo para especialistas na área criminal, o que levará, muitas vezes, a uma suposta omissão em fatos narrados pelo colaborador que ele julga não relevante, mas que na ótica ministerial o seriam, ou seja, deveriam ter sido relatos. Mas quem de fato deve apurar isso? Nos acordos, diz que fica a juízo do Ministério Público a verificação sobre a ilicitude dos fatos narrados, porém, essa discricionariedade não pode ser tão ampla, sob pena de se estabelecer um critério unilateral de decisão do negócio jurídico firmado entre as partes, e isso não pode prevalecer nesse tipo de contrato firmado entre o colaborador e o órgão ministerial.

Aliás, o reconhecimento de que se trata de um negócio jurídico foi recentemente reconhecido na Orientação Conjunta 1/2018, elaborada pelo Ministério Público Federal e que trata dos acordos de colaboração premiada, portanto, aqui parece que não reside mais dúvidas de que o instituto é um negócio jurídico processual e, neste caso, o mínimo que se espera então é que se respeite o contraditório no momento de revisão e/ou rescisão de acordos de colaboração.

Voltando ao ponto central da questão, ou seja, supostas omissões e comportamentos contraditórios no momento da apuração de omissões, verifica-se que até agora poucos processos de colaboração foram submetidos à rescisão e isso se deve ao fato de que na maioria das vezes os processos de colaboração foram úteis e atingiram o interesse público (itens também constantes na Orientação Conjunta do MPF). Assim, para que se rescinda um acordo de colaboração, o fato supostamente omitido deve superar em muito o interesse púbico revelado pelo colaborador, ou seja, deve-se ponderar os interesses em jogo e o que deve preponderar são os fatos revelados em relação aos supostamente omitidos, porque, novamente, o que está em jogo é que se atinja o interesse público, e isso só pode ser medido pela qualidade da colaboração.

Feitas essas considerações iniciais, também se espera do agente público que adote os mesmos procedimentos em todos os casos, isto é, constatada suposta omissão, que se proceda a abertura de procedimento revisional do acordo. Ocorre que inúmeras colaborações já foram homologadas e seguem vigentes, mesmo que apontadas falhas ou omissões. Desde o início da "lava jato" houve problemas em relação a esse fato (omissões) e excepcionalmente se rescindiu um acordo. Tivemos casos inclusive de acareação entre colaboradores em face de omissões supostamente praticadas e mesmo assim o acordo seguiu válido.

Se um caso é de rescisão por suposta omissão, ele deve ser adotado para todos os outros casos, sob pena de o agente público incorrer na proibição do venire contra factum propium, isto é, de exercer posição jurídica em contradição com o comportamento exercido anteriormente (revisão de acordo), verificando-se a ocorrência de dois comportamentos de uma mesma pessoa, diferidos no tempo, sendo o primeiro (o factum próprio) contrariado pelo segundo (rescisão de acordo). Consiste, pois, numa vedação genérica à deslealdade. Em outras palavras, isso significa que, se o procedimento normal é o de revisão da colaboração em casos de suposta omissão, o agente público não pode adotar conduta diversa em um caso específico, porque, como frisamos, seria contraditório com a posição que vinha adotando.

De forma mais precisa, o venire contra factum proprium encontra respaldo nas situações em que uma pessoa (no caso o MPF), por um certo período de tempo, comporta-se de determinada maneira (processo de revisão), gerando expectativas em outra de que seu comportamento permanecerá inalterado. O comportamento sempre foi o de revisão, ou também denominado de recall, e nisso reside a expectativa dos colaboradores, de que esse será o comportamento padrão.

Como já salientado no início deste texto, muito já foi trilhado no caminho dos acordos de colaboração, porém, no que tange ao processo de rescisão, o terreno é movediço e depende ainda de sedimentação da doutrina e da jurisprudência. O instituto da colaboração premiada já sofreu muitas críticas e segue ainda com muitos detratores, portanto, é preciso cautela para que não se destrua a sua credibilidade e segurança jurídica nos processos de revisão e/ou rescisão.

De outro lado, é preciso sopesar quem ganha e quem perde com a rescisão do acordo. Ainda que as provas produzidas pelo colaborador tenham validade por força da lei, o Estado perde a credibilidade em assegurar a segurança jurídica necessária para que outros colaboradores firmem acordos de colaboração. Ademais, perde o Estado também a oportunidade de desvelar fatos que ainda dependam da participação do colaborador (depoimentos e dados de corroboração). O próprio fundamento usado na “eficácia das investigações” seria violado se o Estado “jogasse fora” ou “abrisse mão” dos depoimentos dos colaboradores. Tudo isso deve ser pensado na hora do processo de revisão dos acordos firmados.

Citando novamente a orientação conjunta do MPF, deve-se levar em conta, antes de qualquer decisão precipitada, se o processo de colaboração foi útil e atingiu o interesse público, bem jurídico maior na ponderação de interesses da sociedade em face de uma suposta omissão. Só assim poderemos construir um instituto forte e com credibilidade jurídica.

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