Diário de classe

Posse de drogas para consumo pessoal ainda tem questões controversas

Autores

  • Daniel Ortiz Matos

    é advogado mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) visiting scholar na McGeorge Law School (2017) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb).

  • Luis Felipe Leão Saccol

    é advogado mestrando em Direito Público – Hermenêutica Constituição e Concretização de Direitos – pelo programa de pós-graduação da Unisinos pós-graduando em Direito Público pela ESMAFE e membro do Grupo de Pesquisa "Liberdade & Garantias" sob a coordenação do professor Miguel Tedesco Wedy.

23 de junho de 2018, 8h00

No início deste ano o Superior Tribunal de Justiça entendeu que seria dispensável o mandado de busca e apreensão em flagrante de crime de tráfico de drogas, por ser este de natureza permanente[i]. Essa decisão foi em certo sentido controvertida, pois o que estava sendo analisado é se o comportamento dos policiais que adentraram numa residência devido ao forte cheiro de maconha seria ou não ilegal.

Deixando a situação um pouco mais complexa, perguntamos: e se os policiais encontrassem apenas um usuário de posse de uma pequena quantidade de drogas que não pudesse ser considerada como tráfico, não estariam os policias afrontando o direito constitucional da inviolabilidade domiciliar?

Para responder esta questão duas outras precisam ser enfrentadas anteriormente: 1) é (ainda) a posse de drogas para uso pessoal um crime?; e 2) a posse de drogas para uso pessoal pode ser ou é um crime permanente? Eis as perguntas que tentaremos responder no Diário de Classe de hoje.

Respondendo à pergunta de número 1, afirmamos: sim, a posse de drogas para uso pessoal ainda é considerada um crime no Brasil. Em sentido lato, a Lei de Drogas (11.343/2006) é também uma lei penal, já que, em consonância aos princípios da legalidade e anterioridade, traz em seu bojo normas incriminadoras, que por sua vez, serão aplicadas por juízos criminais, seja na Justiça comum ou nos juizados especiais.

A Lei de Drogas define fatos típicos e estabelece suas respectivas penas em seu capítulo III intitulado “Dos crimes e das penas”. Dentro deste está inserido o artigo 28, que versa sobre a posse de drogas para uso pessoal nos seguintes termos:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas:
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Esta topografia não é sem sentido. Podemos presumir que o tratamento legal dispensado ao fato descrito é de uma ação criminosa, mesmo tendo suas peculiaridades. É evidente que os nossos legisladores buscaram diferenciar de modo preciso, seja na tipificação, mas sobretudo, nas penas, o usuário do traficante.

Contudo, isso não significa por si mesmo uma descriminalização da posse, tampouco uma despenalização, ou ambas as hipóteses.

O fato de não ser mais penalizado com penas restritivas de liberdade não desconfigura a natureza de crime. Entendemos que o art. 1°[ii] da Lei de Introdução ao Código Penal (Decreto-Lei 3.914/1941) traz apenas um critério diferenciador entre crime e contravenção, não definindo, portanto, um conceito de crime ao direito brasileiro.

Ademais, o próprio Códice no artigo 12 traz a ressalva que: “as regras gerais deste código aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de modo diverso”. Isto é, mesmo que se pensasse ser o art.1° da LICP uma conceituação de crime, ainda assim haveria a possibilidade de que lei especial, como no caso em tela, pudesse tipificar uma ação e cominar penas de um modo mais específico.

Noutro passo, a respeito de uma possível alegação que estaríamos diante de um crime sem pena, isto é, que houve uma despenalização da posse, notamos que ela se sustentaria se, e somente se, por pena fosse entendida apenas as restritivas de liberdade. Todavia, tal equiparação não se coaduna com o nosso sistema jurídico que, a todas as luzes, reconhece outras formas de pena. Nesse sentido, é suficiente o texto constitucional, que em seu art.5° prescreve que:

XLVI – a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes:
a) privação ou restrição da liberdade;
b) perda de bens;
c) multa;
d) prestação social alternativa;
e) suspensão ou interdição de direitos

Importante ressaltar que este rol é numerus apertus, podendo ainda lei estabelecer outras modalidades. Além disso, dentre estas não haveria qualquer distinção prévia entre aquelas que deveriam ser principais ou substitutivas.

Assim, não há nenhum óbice constitucional para a existência de crimes com outras espécies de penas que não as privativas ou restritivas de liberdade. Nesses casos, não estaríamos diante de um crime sem pena, mas, diferentemente, de um crime com uma penalização diversa daquela que tradicionalmente vinha sendo adotada.

É possível também identificar neste debate o processo de constitucionalização do ordenamento jurídico pátrio, inaugurado com a Constituição de 1988[iii]. Diante desse cenário, o Código de Penal e a sua Lei de Introdução passam a ser lidos a partir de uma necessária filtragem constitucional. Nesse sentido, é relevante a constatação que em nenhum dos textos constitucionais anteriores ao atual havia qualquer menção às modalidades de pena.

Desse modo, é possível explicar a formação de um imaginário jurídico que, lastreado na LICP, compreendeu o critério diferenciador entre crime e contravenção, como a definição dos requisitos essenciais para que um ato tipificado fosse considerado um crime.

Ou seja, um crime deveria ser necessariamente cominado com uma pena privativa de liberdade. Entretanto, ao trazer no inciso XLVI do art. 5° várias modalidades de penas, sem obstar a existência de outras, nem estabelecer quais delas seriam principais ou substitutivas, a Constituição de 1988 lançou luzes a esta questão, limitando, portanto, o art.1° da Lei de Introdução ao Código Penal à apenas um critério diferenciador.

A reconfiguração deste imaginário jurídico a partir da Constituição, que também está conectada com um declínio do reconhecimento da primazia das penas privativas de liberdade[iv], talvez nos ajude a compreender o fato de que apenas com a nova Lei de Drogas de 2006 a pena privativa de liberdade não foi mais aplicável ao usuário de drogas.

Nesta linha de raciocínio, é paradigmático que antiga Lei de Drogas (6.368/76), anterior à Constituição, denominada de Lei de Tóxicos, estabelecia para a posse de modo expresso a pena privativa de liberdade de detenção de 6 meses a 2 anos. De modo similar, o Código Penal em sua redação original cominava em artigo 281 a pena privativa de liberdade para a posse de substância entorpecente, sem distinguir se seria ou não para uso pessoal[v].

A atual Constituição, ao estabelecer um rol exemplificativo de penas a fim de que a lei as individualize de modo proporcional e adequado, assentou de modo lapidar em nosso ordenamento duas premissas fundamentais para a compreensão do conceito de crime: 1) pode haver crime sem a cominação de penas privativas ou restritivas de liberdade; 2) o caráter repressivo da pena se dá na resposta penal à uma conduta tipificada como crime e não no tipo da pena, podendo assim variar consideravelmente em sua intensidade.

A nossa interpretação acerca da posse de drogas para uso pessoal ser um crime também se deduz da leitura da exposição de motivos da Lei de Drogas. O intento não era de descriminalizar ou despenalizar determinadas condutas nela abrangidas. Diferentemente, percebe-se o propósito de conferir maior precisão aos tipos penais bem como proporcionalidade e razoabilidade às suas respectivas penas.

Disto nos parece mais factível a presunção de que o propósito do legislador era conferir a posse de drogas para uso pessoal um tratamento diferenciado, com penas mais brandas, mas sem descriminalizá-la. Nesta linha, o deputado Paulo Pimenta, que foi o relator do projeto de lei na Câmara dos Deputados, afirmou em seu relatório que:

Ressalvamos que não estamos, de forma alguma, descriminalizando a conduta do usuário — o Brasil é, inclusive, signatário de convenções — internacionais que proíbem a eliminação desse delito. O que fazemos é apenas modificar os tipos de penas a serem aplicadas ao usuário, excluindo a privação da liberdade, como pena principal[vi]. (grifo nosso)

Mesmo compreendendo a função meramente informativa da “exposição de motivos” e dos relatórios que compõe os projetos de lei, isto não significa que eles em nada contribuem para a densificação dos sentidos legais. Tal consideração faz parte do caráter público, intersubjetivo, que caracteriza o direito em ambientes democráticos.

Acerca da pergunta 2, se o crime de posse de drogas para uso pessoal pode ser ou é um crime permanente, respondemos: é para os verbos “guardar”, “ter” ou “transportar”, mas não para “adquirir”, que seria um crime instantâneo.

Assim, a resposta ao questionamento principal, se os policiais encontrassem apenas um usuário de posse de uma pequena quantidade de drogas que não pudesse ser considerada como tráfico, não estariam os policias afrontando o direito constitucional da inviolabilidade domiciliar? Dizemos: não.

O mesmo raciocínio do STJ é aplicável tanto para o tráfico de drogas quanto para a posse, que é crime, e que na maioria dos verbos do tipo é também permanente. Pois o que justificaria a entrada dos policiais é a presunção razoável, baseada em indícios, do cometimento de um crime.

Por fim, cumpre registrar que a posse de drogas para uso pessoal pode deixar de ser crime no Brasil. No Recurso Extraordinário 635.659, proposto pelo defensor público-geral de São Paulo, é questionada a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas. O relator, ministro Gilmar Mendes, votou pelo provimento do RE no sentido de declarar a inconstitucionalidade do art. 28 sem redução de texto, sob os seguintes argumentos, em suma: 1) o uso de drogas geraria um dano privado, sendo, portanto, desproporcional tratá-lo como crime; 2) tendo em vista que o uso se configura numa autolesão, o tratamento penal estaria também ferindo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e autodeterminação.

Dessa forma, para o ministro, deve ser afastada a natureza penal deste dispositivo, mantendo-se, todavia, até o advento de uma lei nova, as sanções ali descritas, mas apenas com natureza administrativa[vii]. Até o momento acompanharam o voto do relator os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin. É importante pontuar que não há parametricidade constitucional para tal empreendimento.

Ainda que seja inadequado, em face de política criminal – lócus onde residem os principias argumentos nesse sentido -, punir como crime (com ou sem pena) o ato de portar drogas para uso próprio, é uma tarefa que cabe ao legislador. Isto é, não havendo previsão constitucional expressa vedando a possibilidade de criminalizar determinadas condutas, não compete o Judiciário fazê-lo, pois este é um espaço de conformação democraticamente estabelecido ao Congresso Nacional.

A provável declaração de inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas será mais uma atitude ativista da Suprema Corte brasileira, realidade que não contribui para a consolidação da nossa democracia e o fortalecimento da nossa institucionalidade.

* Os autores agradecem aos colegas Gilberto Morbach, Frederico Pessoa da Silva e Giovanna Dias pela interlocução tão significativa para a realização deste estudo. 


[ii] Art 1º. Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente.

[iii] Observamos que este movimento se deu de maneira mais acentuada a partir de 1988 pela mudança de perspectiva em relação ao papel da Constituição.
Outrora limitada a uma função estrutural de formação, organização e limitação do Poder Político e em certos aspectos entendida apenas como uma carta de intenções meramente programática; é perceptível que com constitucionalismo que emergiu após a segunda Guerra houve uma ênfase no caráter normativo, dirigente, dos textos constitucionais.
Tal postura frente a Constituição foi evidenciada em países de modernidade tardia, como o Brasil, com o fim dos regimes de exceção e o (re)estabelecimento da democracia.

[iv] A emergência de novas modalidades de pena ocorreu ainda no século XIX, mesmo século experimentou o apogeu das penas privativas de liberdade. Dentre as razões para esta mudança, está a crítica de que cárcere não cumpria a sua finalidade, a ressocialização. Ao contrário, impulsionava a reincidência.
Desta forma, nos Congressos Penitenciários Europeus já se propugnava penas alternativas. Um dos primeiros exemplos desta crescente tendência surgiu na Rússia em 1926 que cominou a prestação de serviços à comunidade. No Brasil o Código Penal não trouxe originalmente penas alternativas à privação de liberdade, isto veio acontecer somente 1984 (Lei 7.209) com a reforma da parte geral que prescreveu três penas restritivas de direitos, a prestação de serviços à comunidade; a interdição temporária de direitos; e a limitação de fim de semana.
Este rol foi ampliado com a Lei 9.714/98, assim às penas restritivas de direitos se somaram: 1) prestação pecuniária; 2) perda de bens e valores; 3) prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas; 4) interdição temporária de direitos.

[v] Art. 281. Importar ou exportar, vender ou expor à venda, fornecer, ainda que a título gratuito, transportar, trazer consigo, ter em depósito, guardar, ministrar ou, de qualquer maneira, entregar a consumo substância entorpecente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis.

[vi] BRASIL. Diário da Câmara dos Deputados. nº 20. Ano LIX. Brasília. 2004. Disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD13FEV2004.pdf#page. Acesso em: 23/5/2018. pp.05549-05550

Autores

  • é advogado, mestre e doutorando em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), visiting scholar na McGeorge Law School (2017) e bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Bolsista Capes.

  • é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos e bolsista CNPq/Fapergs de Iniciação Científica.

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