Ambiente Jurídico

O efeito punitivo da responsabilidade
civil ambiental

Autor

  • Álvaro Luiz Valery Mirra

    é juiz de Direito em São Paulo doutor em Direito Processual pela USP especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França) coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

23 de junho de 2018, 8h01

Spacca
A responsabilidade civil, em termos atuais, conforme tem admitido a doutrina, pode ter diversos efeitos principais e autônomos, não se limitando mais apenas à simples reparação do dano.[i] Tudo depende, segundo se tem entendido, dos objetivos que, em um determinado sistema jurídico, são atribuídos à responsabilidade civil.[ii]

Nesse sentido, se em certa matéria a responsabilidade civil for utilizada como meio de obter a cessação ou a diminuição de um dano, seu efeito vai ser a reparação do dano. Se, diversamente, a responsabilidade civil for utilizada como meio de fazer cessar a atividade ou omissão que se encontra na origem do dano, seu efeito vai ser a supressão de uma situação ou fato danoso. E, finalmente, se a responsabilidade civil for utilizada como meio de sancionar uma conduta, seu efeito será o de uma pena civil.[iii]

A reparação, propriamente dita, como é fácil de compreender, está íntima e diretamente ligada ao dano, supondo a ocorrência de um prejuízo, o qual constitui o alvo da providência ressarcitória ou compensatória almejada, para o fim de eliminá-lo ou reduzi-lo.[iv] Já a sanção de um comportamento e a cessação da atividade ou omissão lesiva têm finalidades diversas.

Com efeito, ainda que em uma e outra das hipóteses se possa ter – e normalmente se tenha – um dano bem caracterizado, este não será diretamente atacado pelas medidas concretas a serem adotadas. No primeiro caso, da sanção, tratare-se-á de punir civilmente uma conduta; punição que não terá qualquer relação direta com o prejuízo e que poderá acarretar uma condenação que ultrapasse até as consequências prejudiciais do fato danoso.

No segundo caso, da supressão de atividade ou omissão lesiva, acabar-se-á por agir sobre a fonte do dano, para evitar a sua renovação ou o seu agravamento devido à continuação da atividade nociva, sem, contudo, a rigor, reparar o dano causado.[v]

Tudo depende, portanto, da opção que se fizer, no ordenamento jurídico, a respeito dos efeitos da responsabilidade civil no tocante a uma determinada matéria, aceita, ainda, a possibilidade de cumulação de todos eles.

O Direito Ambiental brasileiro admite, de maneira expressa, sem qualquer sombra de dúvidas, a reparação do dano e a supressão da atividade ou omissão lesiva ao meio ambiente, como efeitos da responsabilidade civil, passíveis de imposição cumulativa, na ação civil pública, relativamente a uma mesma degradação ambiental.[vi]

Questão interessante, e mais delicada, em termos atuais, é a do reconhecimento da sanção do responsável como efeito principal e autônomo da responsabilidade civil ambiental, ao lado dos demais efeitos mencionados (reparação do dano e supressão da atividade ou omissão danosa à qualidade ambiental).

Não se ignora, aqui, o entendimento consagrado na doutrina e na jurisprudência quanto à possibilidade de inclusão, na reparação de danos ao meio ambiente, do denominado “valor de desestímulo”, ou, mesmo, quanto à viabilidade da imposição de determinadas providências indenizatórias, voltadas à reparação integral do dano ambiental, com base no proveito econômico obtido pelo agente com a degradação causada, expedientes próprios dos punitive ou exemplary damages do Direito anglo-americano.[vii]

Entretanto, a imposição, na condenação, do pagamento de uma quantia em dinheiro ou de outra providência qualquer, a título de valor de desestímulo, ou a determinação, no contexto da reparação integral do dano ao meio ambiente, da restituição ao patrimônio público, pelo degradador, do proveito econômico por ele obtido com a atividade lesiva[viii], são, reconhecidamente, medidas inseridas no âmbito estrito da tutela reparatória propriamente dita, para que a responsabilidade civil ambiental cumpra suas funções acessórias, tradicionalmente aceitas, de dissuasão de comportamentos ilícitos e de prevenção particular e geral contra atentados a bens e direitos que importam à vida e à dignidade humanas.

Não se trata, é bem de ver, de providências específicas que tenham, para além da reparação de danos e da supressão da atividade ou omissão danosa, o efeito principal de pena civil para o degradador, o que demanda disposição legal expressa a respeito.[ix]

De onde se extrairia, então, a punição do degradador do meio ambiente como efeito principal e autônomo da responsabilidade civil ambiental?

O ministro Herman Benjamin entende que, a partir da edição da Lei 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), instituiu-se, entre nós, a possibilidade de aplicação de sanção civil ao degradador do meio ambiente, na responsabilidade civil ambiental, com imposição, pelo juiz cível, em acréscimo à reparação concedida, de multa civil, com caráter expiatório.

Tal providência está amparada no art. 3º da referida Lei 9.605/1998, segundo o qual as pessoas jurídicas e naturais devem ser responsabilizadas administrativa, civil e penalmente, em virtude de infração à própria lei. Nesse sentido, a Lei 9.605/1998 tornou mais completo o sistema de proteção jurídica do meio ambiente, por intermédio, inclusive, da ampliação e do aperfeiçoamento da intervenção estatal no terreno sancionatório civil, administrativo e penal.[x]

Nas palavras do eminente jurista:

“(…) sem prejuízo de outras técnicas reparatórias previstas no ordenamento, (…), o agora completo sistema de responsabilização do poluidor segue, então, as seguintes linhas básicas: a) responsabilidade civil pelo dano ambiental (pessoal – patrimonial ou moral – e/ou ecológico), com base na Lei n. 6.938/1981 (regime objetivo), acrescida da inovadora possibilidade do juiz cível, em complementação ao quantum debeatur indenizatório, impor ao réu multa civil, esta com base na Lei n. 9.605/98, desde que presente infração a qualquer dos dispositivos do novo estatuto; e b) responsabilidade penal e administrativa nos termos da Lei n. 9.605/98 (regime subjetivo para os ilícitos penais), além de outras sanções previstas no restante do ordenamento, sem prejuízo de, no próprio campo criminal, proceder-se à responsabilização civil, de modo incidental”.[xi]

Dessa forma, na orientação propugnada pelo ministro Herman Benjamin, é viável ao juiz, na ação de responsabilidade civil por danos ao ambiente, em acréscimo à reparação propriamente dita do dano e à supressão do fato danoso ao meio ambiente, vale dizer, em caráter cumulativo com estas últimas, impor, igualmente, uma pena civil ao responsável, desde que a atividade ou omissão lesiva à qualidade ambiental constitua, também, no caso concreto, infração a qualquer um dos dispositivos da Lei 9.605/1998.

E isso com um detalhe importante, na visão do eminente ministro: a sanção civil poderá ser imposta, na demanda coletiva de responsabilidade civil, independentemente da avaliação, no caso concreto, da culpa do agente, já que se estará dentro do contexto da responsabilidade civil objetiva, própria da Lei 6.938/1981.

Na esteira desse entendimento, vale indagar se seria possível estender o efeito punitivo em questão a todas as hipóteses de responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, independentemente de a atividade ou omissão lesiva configurar, também, infração a algum dispositivo da Lei 9.605/1998.

Essa foi, de fato, a orientação adotada, por exemplo, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em antigo acórdão, relatado pelo desembargador José Vellinho de Lacerda, ao confirmar sentença de primeira instância proferida em ação civil pública de responsabilidade por corte indevido de árvores, que impôs ao degradador, além da obrigação de reconstituir o meio ambiente degradado, com o plantio de árvores, o pagamento de quantia em dinheiro, a título de multa, como penalização do agente.

Do voto vencedor, proferido nesse julgado pelo desembargador Tupinambá Miguel Castro do Nascimento, resulta clara a feição punitiva dessa parte da condenação:

“Sr. Presidente, de logo, saliento que vou acompanhar integralmente o voto do eminente Relator. Mas preciso explicar meu voto para que fique clara minha resposta à alegação do bis in idem indenizatório, porque para a reconstituição está havendo a obrigação de plantar 150 árvores e há uma multa que vai para o Fundo (…).”[xii]

No Superior Tribunal de Justiça, a matéria ainda enseja entendimentos diversos e não coincidentes. De fato, em acórdão que teve voto condutor do ministro Luis Felipe Salomão, em demanda individual de responsabilidade civil por danos decorrentes do vazamento de amônia em curso d’água, a corte considerou “inadequado pretender conferir à reparação civil dos danos ambientais caráter punitivo imediato, pois a punição é função que incumbe ao direito penal e administrativo”, não consagrando o ordenamento jurídico brasileiro, no entender do colegiado, o instituto dos danos punitivos (punitive damages).[xiii]

Mais recentemente, porém, o próprio Superior Tribunal de Justiça, em julgado relatado pelo ministro Napoleão Nunes Maia Filho, parece ter reconhecido a viabilidade e a necessidade da imposição, em ação de responsabilidade civil por dano ao meio ambiente, de sanção pecuniária ao degradador da qualidade ambiental, em acréscimo à reparação integral do dano, e isso sem qualquer referência à Lei 9.605/1998.[xiv]

Ou seja: admitiu o STJ, nesse aresto, ao menos em tese, que a responsabilidade civil ambiental, fundada tão só nos preceitos da Lei n. 6.938/1981, pode ter, de sua parte, igualmente, efeito punitivo.[xv]

Todavia, ressalvou a corte, nessa última decisão, que a sanção pecuniária, na responsabilidade civil ambiental “deve ser aplicada somente nas situações em que reste caracterizada a atitude antiecológica, indesculpável e exigente de tal repreensão”, inserindo, à primeira vista, na matéria, a necessidade de exame da culpa do agente.

Verifica-se, portanto, que, com avanços e recuos próprios de um debate de tal magnitude, tem se chegado nos últimos anos, no âmbito da doutrina e da jurisprudência nacionais, à compreensão de que a responsabilidade civil ambiental pode ter como efeito principal e autônomo, ao lado da reparação propriamente dita do dano e da supressão da atividade ou omissão lesiva ao meio ambiente, a punição do degradador da qualidade ambiental, seja com amparo na Lei 9.605/1998, seja com fundamento na própria Lei 6.938/1981, o que leva à possibilidade de imposição cumulativa, nas ações civis públicas, da reparação do dano ambiental, da cessação da atividade ou omissão lesiva ao ambiente e da penalização civil do responsável.

A principal questão, observada a evolução recente da jurisprudência, talvez esteja em definir, de forma clara, se, para a punição do degradador, se terá de considerar igualmente a culpa deste ou se prevalecerá, também nesse ponto, o sistema da responsabilidade civil objetiva, inafastável quando se trata da reparação do dano e da supressão do fato danoso ao meio ambiente, por força do disposto no art. 225, § 3º, da CF e do art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981.

Imagina-se, dessa forma, que, com a inserção definitiva da dimensão punitiva na matéria, se terá um regime realmente completo de responsabilidade civil ambiental e poder-se-á, quem sabe, no futuro, pelo efeito dissuasório progressivo da sanção, lançar mão com frequência cada vez menor da sempre difícil e complexa reparação do dano causado ao meio ambiente, o que, para muitos, seria um grande progresso no aperfeiçoamento do direito ambiental.[xvi]

 


[i] VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. Traité de droit civil: les effets de la responsabilité. 3ª ed. Paris: LGDJ, 2010, p. 01 e ss.

[ii] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 304-305.

[iii] VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice, op. cit., p. 01 e ss.; MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 304 e ss.

[iv] ROUJOU DE BOUBÉE, Marie-Ève. Essai sur la notion de réparation. Paris: LGDJ, 1974, p. 69.

[v] Sobre todos esses aspectos, ver ROUJOU DE BOUBÉE, Marie-Ève, op. cit., p. 69-80 e MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 303-304.

[vi] Art. 225, § 3º, da CF; art. 4º, VI e VII, e art. 14, caput, e § 1º, da Lei n. 6.938/1981; arts. 3º e 11 da Lei n. 7.347/1985. Em doutrina: MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 369 e ss. Na jurisprudência: STJ, REsp 497.447/MT, 1ª T., j. 06.05.2003, rel. Min. José Delgado; STJ, REsp 1.164.630/MG, 2ª T., j. 18.11.2010, rel. Min. Castro Meira.

[vii] Em termos gerais, no Direito Civil, ver BITTAR, Carlos Alberto. Reparação civil por danos morais. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 220-242.

[viii] Na doutrina, ver PACCAGNELLA. Luís Henrique. Dano moral ambiental. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 13, p. 44-51. Na jurisprudência, STJ, REsp 1.145.083/MG, 2ª T., j. 27.09.2011, rel. Min. Herman Benjamin.

[ix] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 304-305.

[x] BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 9, p. 28-30.

[xi] BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e, op. cit., p. 30. Admitem, também, em termos gerais, a ampliação das funções da responsabilidade civil ambiental, inclusive no tocante ao caráter expiatório, LEITE, José Rubens Morato; AYALA, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. 6ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 142.

[xii] TJRS – 1ª Câmara Cível – Ap. Cív. n. 593.08490/8 – j. 09.11.1993 – rel. Des. José Vellinho de Lacerda – Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 10, p. 149.

[xiii] STJ, REsp 1.354.536/SE, 2ª Seção, j. 26.03.2014, rel. Min. Luís Felipe Salomão – recurso que tramitou sob o regime dos recursos repetitivos. Embora a demanda versasse sobre direitos individuais de pescadores cuja atividade profissional havia sido afetada pela poluição do curso d’água, a análise do acórdão é mais ampla e abrange, igualmente, o denominado dano ecológico ou ambiental “puro”, vale dizer, aquele causado imediatamente aos bens e recursos ambientais. Na doutrina, STEIGLEDER, Annelise Monteiro. Responsabilidade civil ambiental: as dimensões do dano ambiental no direito brasileiro. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 250-253.

[xiv] STJ, AgInt no REsp 1.483.422/CE, 1ª T., j. 24.04.2018, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho.

[xv] Diz-se “em tese” porque, no caso examinado, o STJ entendeu não ser cabível a imposição da sanção pecuniária, ausente atitude antiecológica indesculpável do degradador, mostrando-se suficiente, para atender ao imperativo legal de proteção do meio ambiente, a reparação do dano.

[xvi] TRÉBULLE, François Guy. Les fonctions de la responsabilité environnementale: réparer, prevenir, punir. In: CANS, Chantal (Coord.). La responsabilité environnementale: prévention, imputation, réparation. Paris: Dalloz, 2009, p. 17-43.

Autores

  • é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!