Limite Penal

Quando o árbitro de vídeo falha: a Copa e o processo penal

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Philipe Benoni Melo e Silva

    é advogado e presidente da Abracrim (Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas) do Distrito Federal.

22 de junho de 2018, 8h00

Spacca
De tempos em tempos, a discussão do árbitro de vídeo nos jogos de futebol vinha à tona. Na Copa do Mundo de 2018, a Fifa decidiu, pela primeira vez na história, utilizar essa figura, sob o argumento de que seria uma verdadeira revolução no sistema de transmissão dos jogos. O argumento daqueles que são contrários ao árbitro de vídeo é que ele paralisaria demais o jogo, que é marcado pelo dinamismo.

Antes, quando ocorria alguma falha do juiz durante o jogo, parece que todas as pessoas que estavam de fora do campo conseguiam enxergar e denunciavam o fato. Todavia, dificilmente o juiz atendia. A falta já tinha passado, ou o pênalti inexistente já havia sido marcado, ou o gol ilegal já havia sido computado. E segue o jogo.

Apesar de toda a polêmica, o fato é que o árbitro de vídeo está sendo utilizado. Parece que o futebol está evoluindo, buscando, assim, a redução das falhas daquele responsável por “julgar” o mando de campo, embora mesmo quando há erro evidente o juiz sustente o erro por força de sua autoridade, contra tudo e contra todos.

Em outro giro, o processo penal parece estar em involução. Cada vez mais o Supremo Tribunal Federal é chamado a se manifestar sobre o óbvio — inconstitucionalidade da condução coercitiva, cumprimento provisório da pena, quebra do princípio da presunção de inocência etc.

Infelizmente, às vezes passa em branco. A falta é cometida, as garantias são quebradas, o gol ilegal é marcado, e a torcida do acusador comemora. E o inocente é conduzido coercitivamente. É preso temporária e/ou preventivamente. É condenado. Vai, definitivamente, para a prisão, sem o trânsito em julgado do processo. E não importa o que a Constituição da República garante. E assim segue o jogo, com gol contra.

A regra é clara! “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, ou “são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos”, ou, ainda, “o silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. Mas parece que a Justiça realmente é cega. Ela não quer enxergar o que salta aos olhos; parece juiz da Copa.

Aparentemente, o processo penal está clamando por um árbitro de vídeo. Aquele juiz responsável pela condução do processo não está dando conta dos players da relação processual. Ou ele se faz de cego e não vê os duros golpes violadores dos direitos e garantias fundamentais, ou, às vezes, parece “influenciado” unicamente pela hipótese levantada pelo órgão acusador. Nesses casos, a imparcialidade parece não ser mais a regra do jogo.

O constituinte de 1988 rendeu homenagens ao modelo acusatório em detrimento do modelo inquisitorial. Diferentemente do modelo inquisitorial, no modelo acusatório, as pessoas que acusam, defendem e julgam são distintas, garantindo, assim, a imparcialidade e preservando o princípio do contraditório e da ampla defesa do acusado. Sem embargo disso, a vocação pelo modelo inquisitorial ainda preserva uma presença significativa no processo penal brasileiro.

No Congresso Nacional, está em curso o Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal, transformado no Projeto de Lei 156/2009. Esse projeto reserva os artigos 15 a 18 para cuidar, especificamente, do “juiz das garantias”.

A responsabilidade precípua do juiz das garantias é, na dicção do caput do artigo 15 do referido projeto de lei, exercer o controle da legalidade da investigação criminal e salvaguardar os direitos individuais.

Trata-se da figura de um juiz que atuaria somente na fase inquisitorial, durante as investigações, sendo o responsável para cuidar dos pedidos de prisões, buscas e apreensões, escutas telefônicas etc. Todavia, quando do início da ação penal, ele se afasta, ficando impedido de funcionar no processo, conforme a prescrição disposta no artigo 17 do aludido projeto de lei. Assim, ficaria preservado o modelo acusatório no processo penal e permitiria que um juiz que não foi contaminado pelas informações preliminares julgasse sem a inegável influência que os elementos informativos trazem aos autos. Sem dúvidas, é medida que, de um lado, reforça a imparcialidade do juiz e, de outro lado, aponta para a preservação dos direitos e garantias do acusado no âmbito do processo penal.

Lamentável e curiosamente, a instituição do juiz das garantias, que é figura para dar primazia aos princípios e garantias constitucionais, tem recebido críticas por parte da doutrina. Qual o argumento? O mesmo do futebol: o juiz das garantias retirará o dinamismo do jogo processual.

Todavia, conforme já afirmamos, eficientismo não pode significar desrespeito aos direitos e garantias fundamentais. Sendo o processo o meio estatal legítimo de limitação da liberdade individual, o objetivo pretendido por seus protagonistas não pode suplantar a estrita observância às regras do jogo[1].

Conforme apontava Otto Kirchheimer[2], o processo deve ser estruturado para possibilitar que as partes possam contribuir criticamente na formação da decisão judicial. Caso não exista esse poder de influência, o processo é desnecessário.

Os atores do aprimoramento do aparelho investigativo, quer na sua dimensão humana, na tecnológica ou na dimensão política, não podem refugar, inadmitir ou levantar barreiras ao aprimoramento dos institutos de preservação dos direitos e garantias individuais no processo penal do cidadão, aptos a salvaguardar a plenitude do contraditório e da ampla defesa.

A Constituição cidadã, o Estado Democrático de Direito, a República Federativa do Brasil e a natureza pétrea dos direitos e garantias fundamentais, quer individuais, quer sociais, não podem soçobrar diante de prerrogativas eficienticistas e decisionistas, ao argumento da resolução incontinenti dos problemas nacionais.

É lamentável ver o rumo que caminha a República e seus defensores da ordem jurídica. A vontade de vencer o jogo processual é levada ao cabo, a todo e qualquer custo. O investigado/acusado é instrumentalizado a fim de se ter provimento na ação proposta. Vide o caso da mulher que foi conduzida coercitivamente para sofrer uma laqueadura forçada[3], na qual o Ministério Público, utilizando-se de uma ação civil pública, pediu, o juiz autorizou, e a laqueadura forçada foi realizada. E o árbitro de vídeo? Ele não estava lá! É o eugenismo aplicado por meio da atuação da "Justiça".

A paridade de armas, tanto de ataque quanto de defesa, é medida que se impõe, sob pena de, com todos os auspícios do atual estado civilizatório e constitucional, desenvolver-se um processo penal nos porões do Estado inquisitorial, com os instrumentos de condenação da Idade Média, fantasiados das indumentárias da sociedade pós-moderna.

Por isso que, mais uma vez, estamos com Coutinho quando afirma que a lei processual penal é das mais imperfeitas; é "monstro de duas cabeças; acaba por valer mais a prova secreta que a do contraditório, numa verdadeira fraude. Afinal, o que poderia restar de segurança é o livre convencimento, ou seja, retórica e contra-ataques; basta imunizar a decisão com um belo discurso. Em suma: serviu a Napoleão um tirano; serve a qualquer senhor; não serve à democracia"[4]. O perigo será quando não se compreender o sentido autêntico do juiz das garantias.


[1] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4 ed. rev. atual. E ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 343.
[2] KIRCHHEIMER, Otto. Justicia politica: empleodel procedimento legal para fines políticos. México: Uteha, 1968.
[3] https://www.conjur.com.br/2018-jun-10/grupo-advogados-repudia-esterilizacao-mulher-sao-paulo
[4] COUTINHO, Jacinto. apud LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 11 ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 145

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    é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

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    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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    é advogado criminalista, mestrando em Políticas Públicas, Processo e Controle Penal e especialista em Direito Público e Direitos Indisponíveis.

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