Opinião

Eficiência dos contratos de gestão na saúde exige respeito à lei

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22 de junho de 2018, 6h42

Recentemente, o modelo de prestação de serviços públicos por meio de contratos de gestão celebrados com organizações sociais (OSs) foi declarado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. A partir de então, dois movimentos podem ser percebidos. De um lado, perderam força argumentos puramente privatistas ou estatistas, fundados em ideias preconcebidas de um modelo de Estado ideal; de outro lado, passaram a ser desenvolvidos estudos acerca dos resultados concretamente obtidos com a aplicação do modelo de gestão por OSs.

Exemplo desse novo estágio de discussões pode ser encontrado em instigante texto recentemente publicado na ConJur pelo procurador junto ao Tribunal de Contas da União Júlio Marcelo de Oliveira. Nele, o articulista sustenta ter sido criado no Brasil um mito de que as parcerias com a iniciativa privada configurariam fórmula mágica para a solução dos problemas no setor de saúde. Em sua opinião, “tal raciocínio é enganoso e oportunista”, já que a celebração de parcerias na saúde “abre as portas para todo tipo de desvio de condutas que o Direito Público tanto lutou para eliminar da administração pública: nepotismo, corrupção, favorecimento pessoal”.

Sem questionar a constitucionalidade do modelo, o autor sustenta suas críticas em alguns resultados negativos decorrentes da gestão pública por organizações sociais, dentre os quais: (i) o aumento do custo dos serviços; (ii) o não atingimento das metas pactuadas no contrato de gestão; (iii) a falta de transparência; (iv) o direcionamento na escolha da organização social parceira; e (v) a distribuição de lucros pelas organizações sociais por meio da remuneração de dirigentes e da contratação de empresas prestadoras de serviços.

Por fim, após fazer referência a uma experiência exitosa ocorrida no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma o autor que a qualidade na gestão na saúde pública pode ser alcançada pelo regime publicístico, próprio da administração direta e autárquica. Diante disso, conclui não haver justificativa para o trespasse da gestão da saúde a organizações sociais, já que tal modelo traz prejuízo à impessoalidade e à transparência na gestão pública.

A propósito de tais críticas, no presente manuscrito buscamos discutir os argumentos consequencialistas citados pelo autor, os quais comumente têm sido utilizados para sustentar a ineficiência dos contratos de gestão no setor de saúde.

De início, não podemos negar que há problemas na estruturação dos projetos e na execução dos serviços de saúde por organizações sociais país afora. Mas a questão fundamental, e neste ponto parece haver necessidade de aprofundamento da discussão, consiste em aferir se tais problemas são fruto do próprio modelo de gestão por organizações sociais ou se decorrem da aplicação indevida do modelo, em afronta à legislação de regência e com falha dos mecanismos de controle previstos em lei.

Se a primeira hipótese acima mencionada for verdadeira, não resta alternativa senão a união de todos os gestores, controladores públicos, acadêmicos, usuários do SUS e membros do Poder Legislativo pela revogação da lei federal de organizações sociais. De outro bordo, se a segunda hipótese for verdadeira, é imprescindível que a comunidade científica, gestora e controladora se una para que o modelo seja devidamente compreendido e corretamente aplicado.

Adentrando no âmago da discussão, desde nossa pesquisa de doutoramento (clique aqui para ler a tese), defendemos a viabilidade jurídica e a vantajosidade administrativa das parcerias no setor de saúde. Isso porque, sinteticamente, chegamos à conclusão, à luz da experiência internacional e das ciências sociais aplicadas, de que a celebração de parcerias no setor de saúde pode trazer aumento da transparência na gestão dos serviços de saúde, o que permite a comparação entre os prestadores e, como consequência, aumento da eficiência e diminuição de custos.

Nessa esquadra, o próprio processo de estruturação de um contrato de gestão traz como primeiro desafio a definição de seu objeto, das metas e padrões de desempenho a serem alcançados e do orçamento a ser destinado a uma unidade de saúde. A propósito deste último item, a experiência brasileira recente demonstra que é bastante comum que a administração pública não tenha dados confiáveis acerca do custo integral de cada estrutura estatal. Em muitos casos, não há sequer histórico integral de serviços prestados e de custos envolvidos na gestão das unidades estatais de saúde para poder comparar com outros modelos, tanto no tempo quanto no espaço. No contrato de gestão, todas as exigências acima relacionadas devem ser cumpridas, pois compõem a espinha dorsal do próprio modelo de ajuste.

Portanto, a comparação entre o custo de uma unidade gerida por organização social e de uma unidade estatal pode e deve ocorrer, desde que guardados os mesmos parâmetros e as mesmas exigências a serem observadas na prestação dos serviços. É evidente, portanto, que um hospital público estatal abandonado ou subaproveitado por vários anos terá aumento de custo quando trespassado a uma organização social que assume a gestão com o dever de otimizar os atendimentos, melhorar a estrutura e atender às exigências da vigilância sanitária, corpo de bombeiros etc. (exigências essas que, não raro, são desprezadas quando da gestão estatal). Nesse mote, o aumento do custo de uma unidade estatal que passa a ser gerida por organização social apenas se justifica se a quantidade ou qualidade da estrutura e dos serviços for também ampliada, conforme previsto no contrato de gestão.

Além disso, o não atingimento das metas previstas no contrato de gestão pode decorrer de uma série de fatores. Desde a má gestão da entidade até a falta de demanda por determinado procedimento. Em qualquer caso, a legislação prevê mecanismos de correção do problema, como desconto no repasse de recursos públicos, ajuste no conjunto de metas pactuadas e aplicação de sanções. O contrato de gestão permite, assim, a rápida detecção de eventuais contrastes entre o planejamento original e a (nova) realidade enfrentada, com oferecimento de ferramentas para sua imediata correção.

Acerca da transparência, a atual regulamentação dos contratos de gestão na esfera federal, que espelha grande parte da normatização de estados e municípios, exige: (i) publicização e motivação da decisão pela celebração de uma parceria; (ii) realização de chamamento público, objetivo, motivado e impessoal para qualificação de uma entidade como organização social e para a celebração do contrato de gestão; e (iii) publicação na internet do inteiro teor do contrato de gestão e seus aditivos, acompanhado dos relatórios de execução e prestações de contas, bem como da análise realizada pelas comissões de avaliação. Portanto, a disciplina jurídica dos contratos de gestão garante plena transparência no processo de seleção, execução e prestação de contas, com a individualização de todas as atividades e custos decorrentes de uma unidade prestadora de serviços públicos sociais.

No que tange à escolha da entidade parceira, deve-se rememorar a decisão tomada pelo STF no julgamento da ADI 1.923. Na oportunidade, ficou assentada a exigência de processo seletivo público e impessoal para a escolha da organização social parceira. Trata-se de importante novidade no ordenamento brasileiro, que superou definitivamente a velha teoria dos convênios, segundo a qual, por existirem em tais ajustes interesses convergentes, não haveria viabilidade de competição. Nesse prisma, a celebração de contrato de gestão com entidades inaptas para a prestação dos serviços pactuados implica evidente desrespeito à legislação que disciplina o tema.

Outra crítica ao modelo de gestão por organizações sociais refere-se ao pagamento de salários aos diretores das entidades. Tal possibilidade decorre de importante conquista do terceiro setor nos últimos tempos. Afinal, nada mais justo que um profissional que dedica suas atividades, conhecimento e experiência a uma entidade social ser adequadamente remunerado. A crítica à remuneração de dirigentes de entidades sem fins lucrativos decorre de uma cultura que ainda vincula a atuação na área social à caridade e à misericórdia. Com o máximo respeito a tal compreensão, esse momento da história foi superado no dia em que o Estado brasileiro assumiu como seu dever garantir direitos fundamentais sociais, deixando de atribuir a proteção social ao altruísmo. Portanto, desde que respeitados limites pautados na remuneração paga a funções equivalentes no Estado e na iniciativa privada, tal qual previsto em lei, o pagamento de bons profissionais que atuam na gestão de organizações socais é salutar, dada a importância da atividade para todo o funcionamento de uma unidade de saúde.

Por fim, devemos ter em mente que uma organização social não se utiliza da estrutura estatal de apoio a suas atividades, como procuradoria jurídica, secretaria de administração, setor de pessoal, contabilidade, imprensa etc. Todas as atividades de apoio à consecução do objeto pactuado correm por conta do contrato de gestão, sem qualquer criação de despesa adicional ao poder público. Assim, é necessária a contratação pelas organizações sociais de empresas prestadoras de serviços de apoio para o devido funcionamento da entidade. Tais contratações devem seguir, conforme a lei, um regulamento próprio de aquisição de bens e serviços, publicado pela entidade e aprovado pela administração pública parceira, com observância dos valores previstos no plano de trabalho, também aprovado pelo poder público parceiro. Eventual distorção no processo de escolha ou no pagamento dos prestadores de serviços pode ser detectado na prestação de contas mensal que a entidade apresenta ao poder público parceiro, com imediata justificativa ou correção.

Desta brevíssima análise, podemos perceber que os problemas efetivamente encontrados em algumas parcerias celebradas com organizações sociais decorrem da inobservância por parte do poder público e da entidade parceira da legislação que disciplina os contratos de gestão com organizações sociais no Brasil. Esse parece ser o ponto a ser enfrentado para fortalecermos o sistema público de saúde no Brasil.

Nepotismo, corrupção, favorecimento pessoal e falta de transparência existem em todos os setores do Estado. A boa gestão pública, estatal ou privada, apenas pode ocorrer com respeito à lei e isso deve ser cobrado tanto das organizações sociais quanto da administração direta, indireta e demais poderes de Estado.

Como conclusão, vale relembrar a advertência do Tribunal de Contas da União de que “é necessária cautela para não se criar confusão entre o instrumento do contrato de gestão e o seu eventual mal uso” (clique aqui para ler a decisão). Essa distinção é essencial e, apesar de não afastar nenhuma das críticas à gestão por organizações sociais, conduz à defesa do modelo. Isso porque, como acima demonstrado, as consequências negativas assinaladas não decorrem do regime jurídico dos contratos de gestão, mas do desrespeito à legislação que disciplina o tema.

Nesse passo, promover a discussão, avançar na compreensão e exigir a devida aplicação do modelo talvez seja o maior desafio para evitar descalabros administrativos e melhorar a oferta de serviços públicos de assistência à saúde no Brasil.

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    é doutor em Direito do Estado pela USP, coordenador da pós-graduação em Direito Administrativo da Universidade Positivo e coordenador científico da empresa ADVCOM – Consultoria e Treinamento em Parcerias.

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