Direito do Agronegócio

A quem interessa a venda direta do etanol das destilarias aos postos?

Autor

  • Gustavo Ventura

    é advogado especialista em Direito Tributário pela Universidade de Santiago de Compostela e mestre pela PUC-SP. Professor de pós-graduação e presidente da comissão de Direito Financeiro do Instituto dos Advogados de Pernambuco.

22 de junho de 2018, 9h03

Spacca
Os recentes aumentos sucessivos dos combustíveis levaram o país a uma situação inédita e altamente prejudicial, representada pela greve dos caminhoneiros. Bilhões de reais em prejuízos e a certeza de que o Brasil tem no seu principal modal logístico uma série de deficiências e desafios a superar, que não serão resolvidos com a tabela dos fretes, instituída pela MP 832/2018[1], nem com a redução do preço do óleo diesel anunciada pelo governo. Trata-se, apenas, do começo de um longo e necessário processo de ajuste do setor logístico.

O cidadão brasileiro que possui veículos automotores, em sua imensa maioria, não se beneficiou de tal redução, pois seus automóveis são movidos a gasolina (que é mistura ao etanol anidro) ou a etanol hidratado (popularmente conhecido como álcool combustível).

Diante de tantos aumentos, que prejudica especialmente a população com menor poder aquisitivo, começou-se a indagar como seria possível reduzir os preços dos combustíveis ao cidadão comum. Com isso, voltou à tona uma antiga limitação ao livre mercado: a proibição das destilarias em vender o etanol hidratado diretamente aos postos de combustível, uma vez que se encontram obrigadas a vender para distribuidoras de combustível, para posterior venda aos postos e aos consumidores finais.

Tal obrigação, em um momento de aumento dos combustíveis e da crescente necessidade de se buscar uma melhor eficiência energética e da redução dos custos com o transporte, deve ser revista o quanto antes. É o que aqui defendemos.

O curioso é que a proibição da venda direta do etanol hidratado das destilarias aos postos de combustível não se dá por meio de lei ordinária, mas por mero ato da ANP, a Resolução 43/2009, que versa sobre os requisitos para cadastramento de fornecedor, comercialização e envio de dados de etanol combustível (biocombustível[2]). Tal resolução busca fundamento de validade na Lei 9.478/97, que é a norma geral que versa sobre a política energética nacional.

Pois bem. Por meio do seu artigo 6º, a Resolução 43/2009 proíbe a venda direta do fornecedor[3] (produtor do etanol hidratado) aos postos de combustível, uma vez que a sua comercialização está restrita a (i) outro fornecedor, (ii) às distribuidoras de combustível e (iii) à exportação:

“Art. 6º O fornecedor somente poderá comercializar etanol combustível com:
I – outro fornecedor cadastrado na ANP;
II – distribuidor autorizado pela ANP; e
III – mercado externo.
Parágrafo único. O etanol comercializado somente adquirirá a denominação combustível se atender à especificação estabelecida pela ANP, inclusive quanto à adição de corante no caso do etanol anidro, e se tal finalidade for indicada no respectivo documento fiscal”.

Importante destacar que tal proibição não encontra fundamento de validade na Lei 9.478/97. Pelo contrário, a citada norma busca incentivar a produção e o aumento da participação do etanol no mercado de combustíveis, nos termos do seu artigo 1º:

“Art. 1º. As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos:
I – preservar o interesse nacional;
II – promover o desenvolvimento, ampliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos;
III – proteger os interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos;
IV – proteger o meio ambiente e promover a conservação de energia; (…)
XII – incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustíveis na matriz energética nacional.
XIII – garantir o fornecimento de biocombustíveis em todo o território nacional; (…)
XV – promover a competitividade do País no mercado internacional de biocombustíveis;
XVI – atrair investimentos em infraestrutura para transporte e estocagem de biocombustíveis; (…)
XVIII – mitigar as emissões de gases causadores de efeito estufa e de poluentes nos setores de energia e de transportes, inclusive com o uso de biocombustíveis (…)”.

Além do mais, a Lei 9.478/97, em momento algum, limitou a atuação comercial da sua indústria[4], muito menos restringiu a venda do etanol hidratado apenas para as distribuidoras de combustível.

Pois bem. Se não há determinação legal, muito menos constitucional, a limitação imposta pela Resolução 43/2009, é quase que intuitivo apontar a sua ilegalidade.

Ainda que reconheçamos o relevante papel regulamentador da ANP, uma vez que as agências reguladoras inquestionavelmente possuem atribuições normativas[5], a proibição imposta é antijurídica, por não encontrar fundamento constitucional e legal, além de causar prejuízos ao consumidor por impor um aumento desnecessário nos preços do etanol hidratado, especialmente em regiões próximas as unidades produtoras, a exemplo dos estados de São Paulo, Paraná, Goiás, Alagoas e Pernambuco.

Defendemos que a atividade econômica aqui tratada deve ser, sim, regulada, mas atendido o preceito do artigo 174 da Constituição:

“Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.

É de se ressaltar que a livre-iniciativa é fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos da Constituição:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.

Cabe transcrever ainda o artigo 170 da Constituição, onde a defesa a livre-iniciativa e a defesa do consumidor são vetores fundamentais da economia nacional:

“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor; (…)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”.

Mais especificamente sobre a política energética do país, a Constituição assim prescreve:

“Art. 238. A lei ordenará a venda e revenda de combustíveis de petróleo, álcool carburante e outros combustíveis derivados de matérias-primas renováveis, respeitados os princípios desta Constituição”.

Assim, nos parece um claro equívoco se limitar a livre concorrência na comercialização do etanol hidratado entre os produtores e distribuidores, impondo-se uma proibição sem fundamento em lei e contrário às normas constitucionais aqui expostas.

Se existem preocupações, legítimas, em relação à qualidade do etanol comercializado, é obrigação da ANP realizar fiscalizações periódicas em relação à qualidade do produto oferecido e do seu adequado transporte, mas simplesmente proibir não faz sentido algum, pois limita a livre concorrência e torna o produto muitas vezes mais caro aos consumidores.

Aqui não temos a pretensão de tratar de todos os aspectos jurídicos que envolvem o tema, mas apenas apontar que a proibição imposta pela Resolução 43/2009 não possui uma razão jurídica de ser, ainda que fundamentada no direito regulamentador das agências, inclusive sob o aspecto da necessidade de certificar a qualidade do produto.

Sob o aspecto econômico, a defesa da venda direta do etanol hidratado certamente levará a uma redução dos preços aos consumidores finais, especialmente para aqueles que adquirirem o produto próximo de uma unidade produtora.

Com a venda direta, além de se reduzir a incidência de tributos, pois se eliminará em muitos casos uma etapa na cadeia entre o produtor e o consumidor final, serão reduzidos os custos com o transporte — muitas vezes completamente desnecessário — entre o produtor e o distribuidor.

Simplesmente não há razão econômica que dê sustentação à obrigatoriedade dos produtores em venderem o etanol hidratado às distribuidoras. Ressalte-se que aqui não se está a defender o fim da venda do produtor ao distribuidor, mas a sua obrigatoriedade, conferindo ao produtor o direito a realizar a venda direta aos postos revendedores.

Pois bem. Dois projetos, um de lei e outro de decreto legislativo, estão em trâmite no Congresso Nacional. No Senado Federal, na terça-feira (19/6), foi aprovado por larga maioria o projeto de Decreto Legislativo 61, de autoria do senador Otto Alencar, que susta o artigo 6º, da Resolução 43/2009 da ANP. O projeto seguiu para a Câmara dos Deputados.

Apesar de reconhecermos a importância do citado projeto de decreto legislativo, a mera exclusão do artigo 6º, da citada resolução da ANP não é suficiente para conferir a devida segurança jurídica, inclusive por não abordar as consequências de ordem tributária.

Assim, somos da opinião de que o Projeto de Lei 10.316/2018, de autoria do deputado Federal Mendonça Filho, que altera a Lei 9.478/97, para dispor sobre a comercialização de etanol hidratado combustível, é de grande relevância.

Além de deixar claro a possibilidade de os produtores de etanol hidratado venderem o seu produto diretamente aos postos revendedores[6], altera a Lei 9.718/98 para regular a cobrança do PIS e da Cofins, nos casos da venda direta[7].

Em sendo aprovada pelo Congresso e promulgada pelo presidente da República, tal inovação incentivará a livre concorrência e barateará o preço do etanol hidratado para um grande número de consumidores.

É importante que a sociedade brasileira acompanhe e apoie a mudança da legislação acerca da possibilidade da venda de etanol hidratado dos produtores diretamente aos postos revendedores. Tal inovação promoverá a livre concorrência e iniciativa. Ganharão os consumidores, com os preços mais baixos de etanol, e o meio ambiente.


[1] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Mpv/mpv832.htm
[2] Segundo o artigo 6º, inciso XXIV, da Lei 9478/97, biocombustível é a substância derivada de biomassa renovável, tal como biodiesel, etanol e outras substâncias estabelecidas em regulamento da ANP, que pode ser empregada diretamente ou mediante alterações em motores a combustão interna ou para outro tipo de geração de energia, podendo substituir parcial ou totalmente combustíveis de origem fóssil.
[3] O artigo 2º da Resolução ANP 43/2009 define o fornecedor de etanol combustível: i) produtor de etanol com unidade fabril instalada no território nacional; ii) cooperativa de produtores de etanol; iii) empresa comercializadora de etanol; iv) agente operador de etanol; ou v) importador de etanol, não podendo, em nenhum dos casos, exercer as atividades de distribuição ou revenda varejista de combustíveis líquidos.
[4] Indústria de biocombustível: conjunto de atividades econômicas relacionadas com produção, importação, exportação, transferência, transporte, armazenagem, comercialização, distribuição, avaliação de conformidade e certificação de qualidade de biocombustíveis (artigo 6º, inciso XVIII, da Lei 9.478/97).
[5] Sobre o tema, Alexandre Santos Aragão, Agências Reguladoras, 3ª Edição, Editora Forense.
[6] “Art. 2º Acrescente-se à Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997: Art. 68-B. Os agentes produtores de etanol hidratado combustível poderão comercializá-lo: I – com agentes distribuidores; II – diretamente com postos revendedores; III – com o mercado externo; e IV – a critério da ANP, com outros agentes produtores.
[7] Art. 5º
I – 4,5% (quatro inteiros e cinco décimos por cento) e 20,7% (vinte inteiros e sete décimos por cento), no caso de produtor ou importador.
§ 1º
I – por distribuidor;
§ 4º
I – R$ 93,52 (noventa e três reais e cinquenta e dois centavos) e R$ 430,08 (quatrocentos e trinta reais e oito centavos) por metro cúbico de álcool, no caso de venda realizada por produtor ou importador;
§ 10. A aplicação do coeficiente de que trata o § 8º não poderá resultar em alíquotas da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins superiores a, respectivamente, 1,65% (um inteiro e sessenta e cinco centésimos por cento) e 7,6% (sete inteiros e seis décimos por cento) do preço médio de venda no varejo.
§ 12. No ano-calendário em que a pessoa jurídica iniciar atividades de produção ou importação de álcool, a opção pelo regime especial poderá ser exercida em qualquer data, produzindo efeitos a partir do primeiro dia do mês em que for exercida.

Autores

  • é advogado, especialista em Direito Tributário pela Universidade de Santiago de Compostela e mestre pela PUC-SP. Professor de pós-graduação e presidente da comissão de Direito Financeiro do Instituto dos Advogados de Pernambuco.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!