Opinião

Brasil oficializou o bis in idem — e todo mundo está quieto

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20 de junho de 2018, 6h58

A recente promulgação da Lei 13.655, que inclui normas de Direito Público no Decreto-lei 4.657/1942, a antiga Lei de Introdução ao Código Civil, atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, merece ser comemorada por diversas razões, o que não significa que esteja acima de críticas. Uma delas, objeto destas considerações, decorre da aparentemente bem-intencionada infração, pelo legislador, do aspecto material de um dos mais elementares princípios do Direito: non bis in idem, aquele princípio que assegura que ninguém pode ser condenado mais de uma vez pelo mesmo fato.

A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, tal como alterada em fins de abril, afirma textualmente, no parágrafo 3º de seu artigo 22, que um mesmo “agente” pode ser alvo de mais de uma sanção de mesma natureza relativa ao mesmo fato. Isso, já no caminho para a terceira década do século XXI, deveria deixar qualquer um ruborizado, especialmente em se tratando de dispositivo incluído em norma de amplíssima abrangência, mas parece que ninguém está muito preocupado com esse tipo de coisa.

A pretensa vontade do legislador pode até estar revestida de boas intenções[1], mas é de se indagar se o citado parágrafo 3º, voltado à dosimetria das sanções, é um benefício (“dos males o menor”) ou a naturalização (pior, a positivação) de um estado de coisas extremamente preocupante para qualquer um que se importe com as liberdades conquistadas pela cultura ocidental, com duros esforços nos últimos três ou quatro séculos.

O dispositivo em questão afirma, mais precisamente, o seguinte: “As sanções aplicadas ao agente serão levadas em conta na dosimetria das demais sanções de mesma natureza e relativas ao mesmo fato”. Ele está inserido como parágrafo de um artigo que trata de gestão pública e sucede a dois parágrafos que tratam, respectivamente, da regularidade de ação de gestor público e a dosimetria de sanções[2].

Admitindo correção da técnica legislativa adotada, poder-se-ia interpretar essa limitação do poder sancionatório estatal como vinculada apenas ao exercício da função punitiva da administração em relação aos gestores (servidores) públicos, já que o parágrafo é mera “disposição secundária de um artigo em que se explica ou modifica a disposição principal”[3]. Essa interpretação, de que a norma aqui criticada somente se aplica aos servidores — seria esta a classe do “agente” citado no texto? — é no mínimo preocupante: o poder punitivo estatal por acaso não é o mesmo para servidores públicos e o restante dos administrados? Por que tratar os primeiros diferente dos últimos? Tem-se uma escancarada violação ao princípio da isonomia, se for esse mesmo o caso. Imaginemos, então, para poupar o leitor, que o citado parágrafo 3º tem aplicação indiscriminada para todas as hipóteses de aplicação de sanções por órgãos da administração pública, ou, de forma mais ampla ainda, ao encontro do abrangente propósito da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para todas as hipóteses de apenamento, administrativas ou judiciais, indistintamente.

Pelo seu valor de face, esse parágrafo pode ser, como dito, até percebido como bem-vindo: se um agente é punido administrativamente — por exemplo, na forma de uma multa pecuniária — por um mesmo ato ilícito por um dado órgão, essa punição deve ser considerada no cômputo de multa pecuniária quando um outro órgão administrativo impuser outra sanção para o mesmo agente pelo mesmo fato. Uma hipótese teórica de aplicação desse artigo vem de imediato à cabeça: se já houver punição, pela Controladoria-Geral da União, de uma empresa participante de um cartel para fraudar o resultado de um processo licitatório por infringir o artigo 5º, IV, a da Lei 12.846/2011, o Cade deveria levar a multa aplicada pela CGU quando da dosimetria da pena por cartel do tipo bid-rigging (infração do artigo 36, I da Lei 12.529 em função de conduta enquadrada no parágrafo 3º, I, c, do mesmo artigo).

Só que o problema é bem outro: nesta circunstância hipotética, uma mesma pessoa está sendo punida por um único fato (por exemplo, um mesmo acordo entre concorrentes para limitar a competitividade de um certame licitatório, ou seja, um único cartel), e isso é incompatível com o Estado Democrático de Direito, como também com este é incompatível qualquer outra situação ou arranjo jurídico que implique punição — seja multa pecuniária, seja proibição de contratar com a administração, sejam mesmo sanções do tipo name and shame — da mesma pessoa em função do mesmo fato. Alegar que não há problemas nisso, para legitimar a dupla punição, porque se tratam de esferas ou bens jurídicos diferentes, é negar a realidade e colocar uma preferência política[4], ou seja, uma disputa institucional intraestatal, acima dos direitos do administrado e da própria finalidade punitiva: educar, evitar a reincidência e dissuadir a prática da conduta ilícita por outros agentes.

Com efeito, tornar Direito Positivo o “bis in idem, mas com moderação” — é isto, afinal, o que diz agora o parágrafo 3º do artigo 22 da nossa Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro —, é uma violência contra qualquer administrado: é uma tentativa de dizer, no vale-tudo entre os diferentes órgãos da administração pública, que o administrado só pode apanhar um pouquinho de cada um. A proporcionalidade, no caso, reside no esgotamento da reação punitiva estatal, e não no seu pretenso “balanceamento”.

O Brasil vai se estabelecendo, com essa norma de tolerância à dupla punição, na contramão da experiência internacional e da interpretação dos especialistas[5], que tende a caminhar cada vez mais para reconhecer explicitamente a proibição desse tipo de dupla sanção mesmo em casos de diferentes esferas — ou seja, equiparando cada vez mais o Direito Administrativo punitivo (ou sancionador) ao Direito Penal e, consequentemente, proibindo que o mesmo agente seja punido pelo mesmo fato no âmbito da persecução penal e, paralelamente, no âmbito de apurações administrativas[6].

A positivação dessa atrocidade jurídica, para além desse problema, implica um ataque a qualquer programa de leniência que se pretenda efetivo como instrumente de combate à criminalidade, especialmente a econômica, em um cenário em que já praticamente se consolidou o enforcement administrativo (CGU, Cade, CVM, BC, agências reguladoras setoriais etc.).

Hoje, sem norma alguma que autorize a dupla punição, já se sabe, como ilustração, que prevalece a incerteza jurídica em torno dos acordos firmados pelas principais empresas da construção civil no País – instrumentos essenciais para desvendar uma rede institucionalizada de corrupção e cartelização entre empresas e agentes políticos, e assegurar punição adequada e tempestiva, inclusive às pessoas jurídicas com participação central e ativa nos ilícitos criminais e administrativos por elas reconhecidos[7].

A existência de uma norma que institui o bis in idem sobre os “mesmos fatos” solapa qualquer esperança de um mínimo de segurança jurídica no âmbito desses acordos e deve desestimular em muito a colaboração com as autoridades, e o self policing pretendidos por qualquer tipo de programa de leniência. Agora, há a certeza de que um acordo com um órgão será considerado em outro; os “intérpretes autorizados” poderiam querer aplicar este artigo de forma a permitir a existência de um único guichê de “leniências”, mas parece que ainda estamos longe[8] deste estado de maturidade institucional.

Trocando em miúdos, a confiança é essencial estímulo à autoincriminação. O conhecimento de que a dosimetria da punição resultante da colaboração junto a determinado órgão pode ser majorada pelo cômputo de outras sanções sobre o mesmo fato, aplicadas, ao depois, por outros órgãos, retira essa qualidade essencial.

De todo o exposto — e relativamente ao parágrafo de lei sob exame —, pairam fundadas dúvidas sobre os efeitos benéficos que o dispositivo causará na já conturbada relação entre os órgãos administrativos ditos “punitivos” do Estado brasileiro. Oxalá tenham escapado ao exame outros aspectos que colaborem para o acerto da medida.


[1] Vide parecer da senadora Simone Tebet sobre o Projeto de Lei do Senado 349/2015, no que trata, em particular, da Emenda 12 (http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaDiario?tipDiario=1&datDiario=30/03/2017&paginaDireta=00145).
[2] Art. 22. Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.
§ 1º Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.
§ 2º Na aplicação de sanções, serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para a administração pública, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes do agente.
[3] Cf., por exemplo, o Manual de Redação da Presidência da República.
[4] Cf. CALDEIRA, Felipe Machado. A Conformação Constitucional do Direito Penal Econômico e a Impossibilidade de Sobreposição de Sanções Administrativa e Penal (RBCCrim 95/237, mar/2012) e COSTA, Helena Regina Lobo da. Direito penal econômico e direito administrativo sancionador: ne bis in idem como medida de política sancionadora integrada (Tese de Livre Docência, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2013).
[5] Vide nota 4 acima, por exemplo.
[6] SILVEIRA, Paulo Burnier da. O Direito Administrativo Sancionador e O Princípio Non Bis In Idem Na União Europeia: Uma Releitura A Partir Do Caso “Grande Stevens” e os Impactos Na Defesa Da Concorrência (Revista do CADE, v. 2, n.2, 2014). Cf., também, o capítulo 3.5 do relatório The Principle Of Ne Bis In Idem In Criminal Matters In The Case Law Of The Court Of Justice Of The European Union (set/2017), disponível em http://www.eurojust.europa.eu/doclibrary/Eurojust-framework/caselawanalysis/The%20principle%20of%20Ne%20Bis%20in%20Idem%20in%20criminal%20matters%20in%20the%20case%20law%20of%20the%20Court%20of%20Justice%20of%20the%20EU%20(Sept.%202017)/2017-09_CJEU-CaseLaw-NeBisInIdem_EN.pdf.
[7] Cf., por exemplo, http://www.valor.com.br/politica/4896716/odebrecht-teme-sofrer-deslealdade-do-governo?origem=G1&utm_source=g1.globo.com&utm_medium=referral&utm_campaign=materia e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/importante-decisao-do-stf-fortalece-acordos-de-leniencia-25042018?utm_source=akna&utm_medium=email&utm_campaign=Littera+Express+n%BA+623%3A+Importante+decis%E3o+do+STF+fortalece+acordos+de+leni%EAncia.
[8] Cf., por exemplo, http://www.valor.com.br/politica/5495333/hora-da-verdade-para-nossas-empreiteiras.

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