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Reoneração da folha de pagamentos pode produzir efeitos somente em 2019

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20 de junho de 2018, 8h05

Spacca
Ainda está muito vívido na memória de todos nós, brasileiros, o transtorno experimentado, durante 11 dias seguidos, no abastecimento de combustíveis, gêneros alimentícios, produtos de primeira necessidade e mercadorias em geral, decorrente da obstrução de rodovias federais por caminhoneiros em greve.

Essa greve foi iniciada no dia 21 de maio, precipuamente em razão da escalada dos preços do diesel e da dificuldade no repasse dessa elevação de custos aos tomadores de serviços de frete.

As principais reivindicações dos caminhoneiros foram a redução do preço do óleo diesel, a criação de uma política de preços mínimos dos fretes rodoviários, bem como outros pleitos menores, como a isenção da cobrança de pedágios sobre eixos suspensos de caminhões.

A União se viu obrigada a atender algumas das exigências dos grevistas em razão do agravamento da crise, e uma das mais dispendiosas consistiu nas medidas tomadas com o objetivo de reduzir em R$ 0,46 o preço do litro do óleo diesel.

Essa redução foi propiciada por subvenção concedida pelo governo federal e pelo corte e redução de tributos incidentes na venda desse combustível (Cide-combustíveis e PIS-Cofins, respectivamente). Segundo a União, o impacto orçamentário dessas medidas totalizou R$ 13,5 bilhões.

Essas desonerações geraram, como contrapartida, a necessidade da criação de alternativas de compensação da respectiva perda de arrecadação, de forma a que essa renúncia fiscal não representasse violação à Lei de Responsabilidade Fiscal (artigo 14).

E uma das formas eleitas pelo governo para atingir esse resultado foi a aceleração, no Senado Federal, do PLC 52/2018, que cuidava, entre outras matérias, da reoneração da folha de pagamentos pela Contribuição Previdenciária (CPrev), reoneração essa que já havia sido tentada anteriormente, sem sucesso, por meio de duas MPs (774 e 794, ambas de 2017). Nesse sentido, o parecer de plenário exarado pelo senador Ricardo Ferraço, no trâmite legislativo daquele projeto:

“O que propõe o Projeto (…) é a reoneração de 28 segmentos e arranjos econômicos que tiveram situações fiscais de desoneração. Dos 56 arranjos que foram lá atrás desonerados, 28 estão sendo reonerados. E esses arranjos que estão sendo reonerados vão gerar R$ 5,7 bilhões para serem fonte da redução de 46 centavos por litro. Esses 28 setores que estão sendo reonerados não alcançam o total da redução de 46 centavos por litro. Será necessário, como aqui explicou o Presidente Eunício Oliveira, que outras fontes sejam incorporadas, para que, em obediência à Lei de Responsabilidade Fiscal – para ser mais preciso, o art. 14 –, todas essas renúncias tributárias possam ser compensadas no exercício, da ordem de aproximadamente R$ 9,5 bilhões” (Parecer de Plenário 105/2018, senador Ricardo Ferraço).

Ou seja, para desonerar o diesel, a solução encontrada foi a de reonerar a folha de pagamentos.

Mas como foi viabilizada essa reoneração pela Lei 13.670, de 30/5/2018 (que resultou da aprovação desse projeto de lei)?

Como se sabe, a CPrev foi instituída pela Lei 8.212, de 24/7/1991, cujo artigo 22, com a alteração promovida pela Lei 9.876/99, determina que a contribuição patronal deveria ser calculada mediante a aplicação do percentual de 20% sobre o valor pago, creditado ou devido a empregados (inciso I) e a contribuintes individuais, como diretores e administradores não empregados e autônomos (inciso III).

Em 2/8/2011, no âmbito do “Plano Brasil Maior”, foi editada a MP 540, posteriormente convertida na Lei 12.546/11, que, com o objetivo de desonerar a folha de salários, fortalecer e formalizar o mercado de trabalho, estabeleceu, como forma alternativa de cálculo da CPrev, a sua incidência sobre a receita bruta (artigo 7º e seguintes). Essa nova forma de incidência nasceu compulsória para determinados setores específicos (por exemplo, empresas de tecnologia da informação).

Essa lei foi objeto de sucessivas alterações e a incidência sobre a receita bruta passou a ser aplicada a um número maior de setores (construção civil, infraestrutura, varejo, logística, transporte e determinadas indústrias, como a têxtil, entre outros).

Muito em função do fato de que essa obrigatoriedade de recolhimento da CPrev incidente sobre a receita bruta gerava distorções, na medida em que acarretava aumento da carga tributária de empresas que, apesar da quantidade reduzida de empregados, conseguiam minimizar seus custos de produção e gerar alto volume de receita, a Lei 13.161/2015 criou a sistemática facultativa de recolhimento da CPrev com base na receita bruta. 

A necessidade de tornar a CPrev sobre a receita bruta mera opção do contribuinte (e não pagamento compulsório) foi claramente demonstrada pela justificativa do projeto que resultou na Lei 13.161/15:

“(…) A fim de evitar eventuais prejuízos aos contribuintes com o aumento das alíquotas, propõe-se que essa contribuição seja facultativa para as empresas relacionadas nos arts. 7º e 8º da Lei nº 12.546, de 2011, de modo a permitir a essas empresas contribuírem para a Previdência Social com a contribuição incidente sobre a folha de pagamento, caso a contribuição incidente sobre a receita bruta torne-se mais onerosa”.

Com essa nova sistemática, empresas pertencentes a 56 segmentos econômicos passaram a ter, portanto, a prerrogativa de optar por um desses dois regimes de recolhimento (receita bruta ou folha de salários), no mês de janeiro de cada ano, ou na primeira competência subsequente para a qual houvesse receita bruta apurada.

Assim, respondendo objetivamente à pergunta acima, sobre como foi viabilizada a reoneração da folha pela Lei 13.670/18, a forma escolhida pelo Poder Legislativo foi a drástica redução do rol de segmentos econômicos que poderiam optar pelo pagamento da CPrev com base na receita bruta (de 56 para 28 setores). Em veto presidencial ainda não votado pelo Congresso Nacional, um número ainda maior de segmentos foi excluído do regime optativo

Portanto, a não ser que o Congresso Nacional derrube o veto presidencial, quase quatro dezenas de segmentos da economia terão que calcular a CPrev sobre a folha de pagamentos, sem mais poder optar por fazer incidir essa contribuição sobre a receita bruta.

Segundo dispõe a Lei 13.670/18, a sua entrada em vigor se deu na data da sua publicação e a reoneração por ela veiculada produzirá efeitos a partir do primeiro dia do quarto mês subsequente à referida publicação (artigo 11, incisos I e II).

Surge, então, a segunda pergunta, que aborda o tema central desta coluna: as empresas que tenham sido efetivamente reoneradas (ou seja, que tenham exercido a opção permitida pela legislação anterior e que tenham sido contempladas pelas novas regras) estarão obrigadas a migrar para o regime de tributação sobre a folha de pagamentos logo após o decurso do prazo da anterioridade nonagesimal acima referido?

Parece-me que não, por um motivo muito simples: por expressa determinação legal, a opção pela CPrev sobre a receita bruta é irretratável para todo o ano-calendário[1].

Vale dizer, a opção realizada dessa forma pressupõe que o contribuinte tenha planejado todo o exercício financeiro de 2018 sob a premissa fática e jurídica de que estaria obrigado a pagar, a título de CPrev, montante calculado com base na sua receita bruta, e não na sua folha de salários (independentemente de ela se provar mais gravosa, ou não). Eram essas as regras em vigor quando da opção realizada, e assim devem permanecer no período dentro do qual ela era originalmente irretratável para o contribuinte.

Há que se proteger aqui os mesmos valores que princípios como o da anterioridade (da não surpresa), da irretroatividade, da segurança jurídica e o da confiança legítima visam assegurar: que o contribuinte não seja surpreendido com novas regras de tributação que venham a onerar de forma diversa situações já cristalizadas ao amparo de direitos adquiridos ou de normas pré-definidas, vigentes no primeiro momento.

Quando a lei diz que a opção exercida pelo contribuinte é irretratável, o que ela pretende evitar é que ele faça barganha tributária, buscando adotar, ao longo do ano, a sistemática de tributação que lhe seja mais favorável em cada período (tributação da receita bruta, ou da folha de salários, a que for menor).

À conclusão semelhante chegou o STJ ao entender inviável, em outro regime tributário, que a migração ocorresse fora do respectivo prazo de opção. Segundo o tribunal, isso violaria os interesses do Fisco:

“(…) inviável a migração de regime fora dos prazos estabelecidos, porquanto restringida não apenas pelos imperativos legais impostos na lei, mas também pelos imperativos de organização administrativa e orçamentária. A alteração de regime produz efeitos bem mais amplos do que a simples forma de apuração. Certamente a opção é deixada à escolha do contribuinte, mas há regras de forma e de tempo para seu exercício, cabendo-lhe certificar-se de que a opção que vem a fazer é a mais benéfica. A opção por regime menos vantajoso não lhe confere direito à revisão, nem mesmo no exercício a que se refere, e menos ainda com efeitos retroativos. A jurisprudência desta Corte firma-se no sentido de repelir a alteração de regimes tributários perpetrada ao livre anseio do contribuinte, em descompasso com a legislação de regência, pois não se pode conceber que somente o contribuinte seja beneficiado na relação jurídico-tributária sem que também se preserve os interesses do Fisco, especialmente quando já considerada a livre manifestação de vontade do optante” (REsp 1.266.367/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 09.12.2013).

Ora, o mesmo raciocínio há que ser aplicado também ao Fisco, de forma que a irretratabilidade da opção exercida pelo contribuinte também impeça que o Estado possa alterá-la, mesmo que o quadro por ela estabelecido seja desfavorável aos cofres públicos.

A regras de regência somente podem ser alteradas após o final do decurso do período regido pela opção feita pelo contribuinte.

De fato, tal opção conferiu ao contribuinte direito adquirido (e não mera expectativa de direito) à utilização do regime tributário escolhido até final do respectivo exercício, o que, nos termos do artigo 5º, XXXVI, da CF/88, impede a sua alteração antes do termo acima referido. Nesse sentido, a seguinte passagem dos ensinamentos de Humberto Ávila:

“A cláusula do direito adquirido pode ser compreendida como a proibição de aplicação de nova norma relativamente a direitos surgidos pela concretização dos requisitos legais necessários à eficácia de fatos ou de atos jurídicos com base em norma anterior, vigente no momento da sua verificação. A proteção do direito adquirido visa proibir que uma norma posterior altere os efeitos surgidos pela completude dos fatos necessários à geração de direito subjetivo conforme a norma anterior. (…) Como o legislador estabeleceu determinadas condições para o nascimento de um direito subjetivo, cujo preenchimento desencadearia a produção de efeitos, ele instituiu uma base da confiança tão próxima que cria, em considerável medida, a proteção da confiança frente a alterações legislativas posteriores. Nesse caso, aceitar que uma nova lei impeça o surgimento do direito ou que restrinja seus efeitos, quando preenchidas as suas condições de eficácia, é aceitar que o legislador possa transformar o cidadão em um mero objeto da oscilação de sua vontade” (ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 4ª Ed. São Paulo: Malheiros, p. 369).

E essa opção também tem a natureza de ato jurídico perfeito, o que, nos termos do mesmo dispositivo constitucional acima referido, nos leva, necessariamente, à mesma conclusão de que a alteração legislativa em exame não pode alcançá-la.  Nesse sentido, a seguinte decisão do STJ proferida quando da análise da sistemática de apuração de crédito-presumido de IPI, que também está sujeita ao exercício de opção pelo contribuinte:

“(…) Realizada a opção pelo contribuinte, o crédito-presumido assim calculado e aproveitado é ato jurídico perfeito, não comportando modificação senão em virtude de erro quanto às disposições normativas da própria lei que rege a sistemática escolhida” (REsp 1.002.855, Segunda Turma, Rel. Min. Castro Meira, DJe 15.04.2008).

Por ser ainda muito recente, não há, ao que saibamos, decisões proferidas especificamente quanto à possibilidade da desconsideração da opção pelo regime de apuração da CPrev, na forma estabelecida pela Lei 13.670/18 (ou seja, logo após o decurso do prazo nonagesimal).

Há, contudo, precedentes relativos a discussões havidas após a edição da MP 774/17, que, como salientado no início deste estudo, representou a primeira tentativa (frustrada) do governo federal no sentido de reonerar a folha de salários, de forma idêntica à promovida pela Lei 13.670/18.

Com base nesse mesmo fundamento da “opção irretratável”, diversos contribuintes ajuizaram ações com o objetivo de ver reconhecido o seu direito ao recolhimento da contribuição previdenciária sobre a receita bruta até o final de 2017, muito embora a MP determinasse o início de sua produção de efeitos 90 dias após a sua publicação, isto é, a partir de julho do mesmo ano.

Muito embora não haja uniformidade de entendimento nos precedentes dos tribunais regionais federais a respeito do tema, destacamos abaixo alguns julgados favoráveis, que consignaram expressamente que, nesse caso, a mera observância da anterioridade nonagesimal não é suficiente para impedir a violação aos princípios da segurança jurídica e da confiança legítima:

TRF 3ª REGIÃO:
“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. IRRETROATIVIDADE DA LEI. (…) Em decorrência dessa ordem de ideias abrigadas pelo princípio da segurança jurídica, não valida a novel previsão legal da Medida Provisória nº 774/2017, que alterou o regime jurídico-tributário eleito, já a partir de 1º de julho do corrente ano, o fato de terem sido observados os princípios da irretroatividade da lei e da anterioridade mitigada. Isto porque, havia sido estabelecido pela Lei nº 12.546/2011, na redação dada pela Lei nº 13.161/2015, prazo de vigência da opção até o final de exercício financeiro e a impossibilidade de retratação da forma tributária escolhida neste período.

Sendo a opção irretratável para o ano calendário, a modificação ou revogação do prazo de vigência da opção atenta contra a segurança jurídica. E mais, prevista a possibilidade de escolha pelo contribuinte do regime de tributação, sobre a folha de salários ou receita bruta, com período determinado de vigência, de forma irretratável, a alteração promovida pela MP nº 774/2017, viola, também, a boa-fé objetiva do contribuinte, que, na crença da irretratabilidade da escolha, planejou suas atividades econômicas frente ao ônus tributário esperado.

O novel regime tributário somente pode aplicar-se em relação aos contribuintes que haviam feito a opção quanto ao regime segundo as regras da legislação anteriormente vigente, após o término deste ano calendário de 2017, sob pena de violação ao princípio da proteção ao ato jurídico perfeito, garantia constitucional que encontra assento justamente no princípio maior da segurança jurídica” (TRF-3ª Região, Agravo de Instrumento 5011263-26.2017.4.03.0000, 2ª Turma, Rel. Des. Souza Ribeiro, DJe 18.11.2017).

TRF 5ª REGIÃO:
“CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA PATRONAL SOBRE A RECEITA BRUTA (CPRB). OPÇÃO DE REGIME DE TRIBUTAÇÃO IRRETRATÁVEL. ART. 9º, PARÁGRAFO 13º, LEI 12.546/2011. MEDIDA PROVISÓRIA 774/2017 (CONTRIBUIÇÃO SOBRE FOLHA DE SALÁRIO). SENTENÇA MANTIDA.

(…)

3. A regra contida no art. 9º, parágrafo 13, da Lei nº 12.546/2011 estabelece que a opção feita pelo contribuinte quanto ao regime substitutivo de recolhimento da contribuição previdenciária sobre a receita bruta é irretratável para todo o ano calendário, criando-se, assim, justa expectativa que não pode ser ultrajada.

4. A integridade do sistema tributário pressupõe, além de outros balizamentos, a segurança jurídica e a proteção da confiança legítima, os quais restaram vulnerados com a previsão de mudança do regime jurídico eleito já a partir de 1º.07.2017” (TRF-5ª Região, Apelação 08121001120174058300, 4ª Turma, Rel. Des. Edílson Nobre, Sessão de 17.05.2018).

Como a regra se manteve inalterada na redação que lhe foi dada pela Lei 13.670/18, é provável que o Judiciário tenha que enfrentar a mesma discussão novamente.

Outra discussão que também nasceu da necessidade da criação de alternativas para compensar a perda de arrecadação decorrente do desconto de R$ 0,46 do valor do litro de diesel foi a relativa à necessidade de observância da anterioridade nonagesimal, para a produção de efeitos da redução dos benefícios do Regime Especial de Reintegração de Valores Tributários para as Exportadoras (Reintegra).

Segundo noticiado, empresas do Espírito Santo e de Santa Catarina já obtiveram liminares para usufruir dos referidos benefícios até o final de agosto, quando termina o prazo nonagesimal. Mas essa é uma outra discussão, de que tratarei oportunamente.


[1] O artigo 9º, parágrafo 13º, da Lei 12.546/11, introduzido pela Lei 13.161/15, estabelece que “a opção pela tributação substitutiva prevista nos arts. 7o e 8o será manifestada mediante o pagamento da contribuição incidente sobre a receita bruta relativa a janeiro de cada ano, ou à primeira competência subsequente para a qual haja receita bruta apurada, e será irretratável para todo o ano calendário”. Note-se que esse artigo não foi revogado e tampouco teve a sua aplicação expressamente excepcionada pela Lei 13.670/18.

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