Opinião

O desvio da injúria racial como suporte à intolerância no Brasil

Autor

  • Vera Lúcia Santana Araújo

    é advogada ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB.

19 de junho de 2018, 6h11

Três Copas mundiais de futebol.

Esse foi o tempo necessário para o Poder Judiciário do país do futebol constitucionalizar toda e qualquer manifestação de preconceito racial, que se materializa com os crimes de racismo e de injúria racial. Gol de placa!

As raízes da escravidão negra no Brasil são profundas e densas, sobressaindo o autoritarismo pronunciado de seu povo, que se expressa no cotidiano sob as mais diversas formas, e isso seguramente decorre de uma história construída sobre sólidos pilares de hierarquização assentada num modus vivendi de supremacia racial, sendo certo que mesmo nos dias de hoje as marcas dos ganhos da escravidão regulam o funcionamento econômico, político e social de um país que conta com uma população negra majoritária, quantitativamente. As cores das desigualdades não deixam margem à tergiversação.

Sobre o traço autoritário, as violências do Estado são emblemáticas e vão da recorrência de interrupção do curso democrático da vida nacional, a exemplo do golpe militar de 1964, à ação diária da violência policial, tão palpáveis, visíveis.

O mesmo traço, nas relações pessoais, pode ser expresso no jargão do “sabe com quem está falando?”, para posicionar a hierarquia dos interlocutores.

Noutra ponta das heranças da opressão escravagista, todas malditas, encontra-se o persistente racismo, característica indisfarçada do Brasil, perpassando classes econômicas, castas culturais, intelectuais, em flagrantes constrangedores; os atos ditos falhos, de somenos, agridem a constitucionalização da prática do racismo como conduta típica, criminosa.

A criminalização do racismo representou notável esforço das forças democráticas em atacar a banalização da violência racial que irrompe quando da manifestação do preconceito racial, e para conformar a repulsa da maior população negra fora do continente africano, a Constituição chamada de cidadã qualificou a prática do racismo como crime imprescritível e inafiançável. É a letra do artigo 5º, inciso XLII, da Carta Magna.

Sob essa configuração, esperou-se que novos e melhores tempos teríamos em termos de respeito à dignidade identitária de negros e negras no Brasil, mas a realidade do racismo visceralmente entranhado entre todos não deu trégua, e o sistema de Justiça, compreendido desde a polícia judiciária, passando solenemente pelo parquet, para encontrar acolhedor abrigo no Poder Judiciário, fez da Lei 7.716/79 uma “lei que não pegou”, na fala vulgar sobre a incapacidade do Estado em fazer da norma positivada um instrumento eficaz para a qual se volta.

Sobre a lei que define os crimes resultantes de preconceito racial, impõe-se nestas linhas anotar que a mesma conhecida como Lei Caó, em justa homenagem ao deputado federal Carlos Alberto Caó, autor do projeto que resultou na catalogação de condutas havidas como sendo racistas. Entre os poucos parlamentares negros, o baiano/carioca foi aguerrido defensor da democracia inclusiva, do combate ao racismo.

Assim, ao trazermos à cena o recente julgamento do Supremo Tribunal Federal (Heraldo Pereira x Paulo Henrique Amorim), após nove anos de tramitação — o processo data de 2010, quando a Copa do Mundo foi na África do Sul, passou pela Copa recepcionada pelo Brasil em 2014, e ganhou fim neste ano em que o evento mundial do futebol ocorre na Rússia —, temos que a matéria processual foi chamada à ordem, dando à prática do crime de racismo, na forma da injúria racial, o tratamento constitucional que lhe era retirado.

Sim, desde a edição da Lei 9.459/97, inovando o Código Penal com a tipificação da prática do racismo na forma do cometimento da injúria racial, a engenharia jurídica de negação da existência do racismo no Brasil elevou a níveis inimagináveis a violentação de tantos homens e mulheres submetidos a inquéritos conduzidos para “dar em nada”; denúncias desqualificadoras da desumanização que é a agressão racial, sentenças e acórdãos absolutamente desconectados dos fatos, posto que a injúria racial é racismo. O animus — preconceito racial — é racismo, e assim constitui o crime constitucionalmente previsto. Imprescritível. Inafiançável. Não pode ganhar relevância tipificadora ser cometido contra uma única pessoa. O requisito de coletividade invocado para a minimização do fato grave de ofensa à dignidade humana de um indivíduo deu azo a algumas bizarrices que este espaço nobre não comporta apresentar.

Com efeito, a leitura aritmética que vinha consolidando uma jurisprudência na qual o entendimento reduzia à honra subjetiva a ofensa racial dirigida contra uma só pessoa retirava da cena do crime seu único fato gerador — o preconceito racial —, e assim produzia a impunidade tantas vezes denunciada, mas pouco repreendida pelo Estado na forma própria do Direito, qual seja, processo com as garantias da ampla defesa e contraditório, sanção aplicada, quando advinda a legal condenação. Assim, a máquina pública, estatal, somente se movia para rejeitar o condenável crime de racismo.

De volta ao caso que se tornou paradigmático, interessante realçar umas determinadas nuances bastantes especiais, notadamente porque desmontam diversas lendas urbanas, tais como: o Brasil não tem preconceito racial, mas social, econômico, contra pobre (como se fosse acaso ou coincidência a pobreza nacional ser marcadamente negra); o preconceito é coisa de gente ignorante (como se a escravidão não fosse obra de iluminados, cultos, e sua persistência não fosse resultante das políticas dos mesmos doutos).

O processo sobre o qual o Supremo Tribunal Federal conheceu o manejo de todos os legítimos recursos da defesa envolveu dois jornalistas conhecidos — Paulo Henrique Amorim, o ofensor, e Heraldo Pereira, o ofendido, em crime gritante de racismo —, todas as críticas desferidas pelo condenado PHA contra Heraldo Pereira tinham como eixo, móbile, a identidade racial do agredido, associando a afrodescendência à marginalidade, ao servilismo, à subalternização, numa espécie de cruel jogral, relacionando sempre a presença do jornalista negro a situações próprias da exclusão racial, atacando-lhe a identidade, a origem, a autoestima.

Iniciado no Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a partir de tempestiva representação junto ao Ministério Público, o andar processual mostrou bem algumas das razões para a ainda pouco expressiva busca do Poder Judiciário nos casos de discriminação racial. Além de ser agredida, a pessoa precisa convencer o Ministério Público, titular da ação penal, sendo certo que seus integrantes pouco compreendem da vida assim como ela é quando o tema é exclusão, preconceito racial e outras mazelas mais que o racismo institucional não lhes permite desvelar. Suas origens, comumente, não lhes permitem reconhecer a alteridade que a norma jurídica processual exige, e assim não há ofendido a requerer a intervenção do Estado.

De fato, o “gargalo” processual do MP é crucial à compreensão da produção jurisprudencial que vinha sendo acumulada nos tribunais, vez que a valoração subjetiva do promotor, promotora, procurador, procuradora é determinante aos impulsos processuais, e assim, se esse ente jurídico não qualifica subjetivamente que o preconceito racial desumaniza a vítima, não há que falar em processo, recurso, e todo o périplo percorrido no caso em destaque.

Sobre essa compreensão, destaca-se, no manejar técnico jurídico, o procedimento da desclassificação do tipo penal da Lei 7.716/89 para o racismo capitulado no Código Penal, no tipo injúria qualificada, racial. Nessa hipótese, ao pretensamente desqualificar a conduta da prática do racismo, extrai-se do núcleo constitucional — racismo — o atributo da dignidade humana, como preceito fundante da República Federativa do Brasil; é isso que o inciso III, do artigo 1º da Carta Política assenta. Era essa dignidade que vinha sendo negada a negros e negras vítimas de racismo na modalidade da injúria racial; foi isso que o STF corrigiu; é sempre tempo de correção de rumos!

Para realçar o debate travado até alcançar a corte maior, merece apreciação a passagem do feito pelo Superior Tribunal de Justiça; ali se consolidou uma mais exata leitura jurídica acerca das relações raciais no Brasil e seus impactos jurídicos em face da escrita constitucional, importando trazer excerto do voto condutor, unânime, do ministro Ericson Maranho, convocado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Agravo em Recurso Especial 686.965/DF, respaldando-se em lição de Guilherme de Souza Nucci:

“Nesse sentido é o magistério de Guilherme de Souza Nucci, que, em seu Código Penal Comentado, 14ª edição, p. 756-757 tece o seguinte comentário: O art. 5º., XLII, da Constituição Federal preceitua que a 'prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei'. O racismo é uma forma de pensamento que teoriza a respeito da existência de seres humanos divididos em 'raças', em face de suas características somáticas, bem como conforme sua ascendência comum. A partir dessa separação, apregoa, a superioridade de uns sobre outros, em atitude autenticamente preconceituosa e discriminatória. Vários estragos o racismo já causou à humanidade em diversos lugares, muitas vezes impulsionando ao extermínio de milhares de seres humanos, a pretexto de serem seres inferiores, motivo pelo qual não mereceriam viver. Da mesma forma que a Lei 7.716/89 estabelece várias figuras típicas de crime resultantes de preconceitos de raça de cor, não quer dizer, em nossa visão, que promova um rol exaustivo. Por isso, com o advento da Lei 9.459/97, introduzindo a denominada injúria racial, criou-se mais um delito no cenário do racismo, portanto, imprescritível, inafiançável e sujeito à pena de reclusão”.

Definidor, esse entendimento ganhou a estabilidade tão guerreada, por meio do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

Assim assentado o tema, a eterna esperança brasileira precisa enfrentar batalhas mais complexas que aquelas dos campos que a cada quatro anos congraça tantos povos.

Com ou sem a taça hexa, o maior anseio do povo negro é se ver livre das reiteradas e renovadas manifestações criminosas, racistas, notadamente em tempos de universo conectado, em que a subjugação de negros e negras ganha de pronto a exposição mundial, e as assertivas jurisprudenciais somente concorriam para a perenização do racismo.

Combater o racismo é dever social e estatal, e o sistema de Justiça exerce papel crucial na efetividade dessa política pública.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!