Memórias civilistas

"Demora para aprovar fez com que Código Civil nascesse precisando de reforma"

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18 de junho de 2018, 7h40

Ao demorar 27 anos para ser aprovado, o Código Civil de 2002 já nasceu precisando de reformas. A análise é de Carlos Alberto Dabus Maluf, professor titular da Faculdade de Direito da USP e membro da comissão de juristas que propôs texto na Câmara dos Deputados. O jurista cita questões do Direito da Família e Sucessões como pontos que necessitam de atualizações, 15 anos depois de a lei entrar em vigor.

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Carlos Alberto Dabus Maluf conta memórias, analisa leis e relata bastidores da aprovação do Código Civil de 2002.
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Dabus concedeu entrevista a Otávio Luiz Rodrigues Junior, também professor da USP, para a Revista de Direito Civil Contemporâneo (RDCC). O civilista afirma que a aprovação da Constituição de 1988 e de leis importantes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente e ainda o Código de Defesa do Consumidor, criaram algum tipo de assimetria com o Código Civil.

“Muitas vezes o legislador é excessivamente lento e o Poder Judiciário termina por suprir as lacunas criadas pelos comportamentos sociais”, afirma Dabus.

O professor conta também sobre sua trajetória no estudo e ensino do Direito, na advocacia e seu contato com grandes juristas, como Moreira Alves e Silvio Rodrigues. Relata como mudou o perfil dos estudantes e critica mudanças curriculares.

Leia trechos da entrevista:

Revista de Direito Civil Contemporâneo — O senhor estudou no tradicional colégio São Luís, o berço da elite paulistana, e depois foi aprovado no vestibular para Direito no Largo de São Francisco, onde ingressou no ano de 1966. Por que a escolha do curso de Direito? E qual o ambiente vivido na época, considerando-se a ruptura política com o golpe de 1964?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 A escolha pelo curso de Direito deu-se por dois motivos. O primeiro por vocação e por tendência. Sempre gostei de História, Filosofia, era afeito às Ciências Humanas e não às Ciências Exatas. Não tinha familiaridade com Matemática, Física e Química.

O segundo motivo foi o exemplo de meu pai, que foi advogado por 50 anos (de 1935 a 1985) e que estudou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Minha vocação para o Direito não foi propriamente estimulada por meu pai.

Apesar de ele servir como um exemplo para mim, seu desejo era que eu seguisse Engenharia Civil. No entanto, ele percebeu que meus interesses intelectuais eram voltados para o Direito e, desde meus 16 anos, passou a me apoiar nesse projeto. Desde então, ele me apresentou aos grandes nomes do Direito na época, como Alfredo Buzaid (seu colega de turma), Goffredo da Silva Telles Junior, Silvio Rodrigues e Manuel Augusto Viera Netto (também colega de turma de meu pai).

De um modo peculiar, minhas áreas de interesse no Direito Civil foram ligadas a minhas origens familiares. As fazendas de café de meu avô materno, as incorporações de meu pai e as desapropriações dos imóveis da família que ocorreram nos anos 1980, enfim, tudo concorreu para que eu me decidisse pelo Direito Civil e que nele continuasse a aprofundar meus conhecimentos.

Em 1966, eu fui aprovado nos vestibulares da Universidade de São Paulo e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Optei pelas Arcadas em razão das tradições familiares e do prestígio da escola. Quando ingressei nas Arcadas, estávamos em pleno regime militar. Procurava não me envolver, porque havia muita repressão. Alguns de meus colegas de turma tiveram problemas com os militares. Quando estava no terceiro ano, o governo militar baixou o Ato Institucional 5, o AI-5.

A situação ficou muito dura após o AI-5. Os militares fecharam o Congresso Nacional. A censura imperava nos jornais. Quando os censores chegavam, os jornalistas rapidamente substituíam as notícias por versos de Camões ou receitas culinárias, ao exemplo do que ocorreu com O Estado de São Paulo e o Jornal da Tarde. Alguns de meus colegas sofreram diretamente com a repressão. O hoje senador Aloysio Nunes Ferreira, que foi meu veterano e presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, foi perseguido e terminou exilado na França.

RDCC — Seu curso de Direito estendeu-se de 1966 a 1970. Quais foram os professores mais marcantes para sua formação? Por quais obras o senhor estudou? E como se iniciou a paixão pelo Direito Civil?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Goffredo da Silva Telles Junior, Silvio Rodrigues e Oscar Barreto Filho. A paixão pelo Direito Civil manifestou-se logo no primeiro ano. Silvio Rodrigues era um excelente professor. Acompanhou-me durante quatro anos. Estudei por seu curso, editado inicialmente pela Max Limonad e depois pela Saraiva. Ele era claríssimo em suas aulas. Muito didático. Conhecia bem a matéria e sabia transmiti-la. Silvio Rodrigues era fortemente influenciado pelo Direito Civil francês. Como aluno, sempre tirei notas altas nessa matéria.

Quanto aos livros didáticos, lembro que usávamos o manual de Direito Constitucional, de Paulino Jacques, um professor da antiga Universidade do Distrito Federal (depois da Guanabara e hoje do Estado do Rio de Janeiro, a Uerj). Em Direito Penal, o catedrático Basileu Garcia indicava livros de Magalhães Noronha, Heleno Claudio Fragoso e Helio Tornaghi, além dos tratados de Nelson Hungria e Aníbal Bruno. Na disciplina de Legislação Social, estudávamos por Cesarino Junior. O professor Vicente Marotta Rangel recomendava o livro de Direito Internacional Público de autoria de Hildebrando Accioly, uma obra que é adotada até hoje em muitas faculdades.

Miguel Reale ministrou algumas aulas para minha turma e depois assumiu a Reitoria da Universidade de São Paulo. Moacyr Amaral dos Santos era docente quando ingressei na Faculdade de Direito, até que ele foi escolhido para o Supremo Tribunal Federal em 1967. Seu livro de Primeiras Linhas de Direito Processual Civil havia sido lançado em 1965. Em Direito Administrativo, tive aulas com José Cretella Junior, que chegou a professor titular em 1970, no lugar do Mario Mazagão. Direito Comercial era lecionado por Oscar Barreto Filho, que recomendava os livros de Waldemar Ferreira e Rubens Requião.

O centro intelectual da época era a França. Não só na Faculdade de Direito, mas em toda a USP. Silvio Rodrigues era um fanático pelos franceses. Washington de Barros Monteiro citava mais os italianos. Foi aí que tive contato com nomes comoSavatier, Demogue e Josserand. Silvio Rodrigues escolheu um jovem assistente, que começou a dar aulas aos 30 anos, e que viria a se tornar professor titular de Direito Civil por mais de duas décadas: Antonio Junqueira Azevedo.

RDCC — Em 1973, o senhor iniciou o mestrado em Direito, sob orientação do professor Silvio Rodrigues. Como era o curso de mestrado nos anos 1970? Por que a escolha do tema das Cláusulas restritivas nas doações e nos testamentos?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Dentre vários candidatos inscritos, o catedrático Silvio Rodrigues escolheu-me para preencher uma de suas poucas vagas disponíveis. Na entrevista, ele disse que me havia reservado uma vaga, porque tinha sido um de seus melhores alunos e, apesar de minha juventude, resolveu dar-me uma oportunidade. Na verdade, eu era um dos alunos mais jovens do curso.

O mestrado era uma novidade introduzida pela reforma universitária do início dos anos 1970. Além do mestrado, tínhamos também o doutorado. Entraram comigo naquele ano a professora Teresa Ancona Lopez (oriunda da PUC-SP) e o futuro ministro do Supremo Tribunal Federal, o então juiz Cezar Peluso (formado na Universidade Católica de Santos). Teresa Ancona Lopez foi minha colega de docência no Departamento de Direito Civil da USP, onde ingressou em 1974. Ela também era uma representante da Escola Francesa no Departamento de Direito Civil.

A escolha do tema Cláusulas restritivas nas doações e nos testamentos deu-se em virtude de questões familiares, pois muitos parentes meus haviam feito testamentos com as famosas cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade extensivas aos frutos e aos rendimentos. Naquela época, era comum a imposição dessas cláusulas, porque o regime de bens do casamento pelo Código Civil de 1916 era o da comunhão universal e os pais, receosos com a separação de seus filhos, gravavam seus bens, para evitar a comunicação. Somente com a Lei do Divórcio, de dezembro de 1977, é que se alterou o regime para o da comunhão parcial.

Quanto ao formato das aulas no mestrado, elas eram parcialmente expositivas e, na sequência, os alunos apresentavam seminários sobre temas escolhidos no início do semestre. Para vários professores, as avaliações consistiam em uma prova escrita e um trabalho escrito. Não houve grandes mudanças no sistema desde então.

RDCC — O senhor é francófono e sua produção é muito influenciada pela cultura jurídica francesa. É possível afirmar que a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco era um espaço preponderantemente marcado pelas ideias francesas no Direito Privado e, nos Direitos Penal e Processual, pela cultura jurídica italiana?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Sem dúvida. O Direito Civil era marcado pela Escola Francesa, que tinha como central a interpretação do Code Napoléon. Essa influência era notória nas obras de Washington de Barros Monteiro e de Silvio Rodrigues. O Direito Processual, por sua vez, era mais influenciado pela cultura jurídica italiana, principalmente com a vinda de Enrico Tullio Liebman, depois da Segunda Guerra Mundial.

Da mesma forma que o Direito Comercial recebeu muita influência do Direito italiano, com a vinda de Tullio Ascarelli, também depois da Segunda Guerra. Creio que essas foram as duas influências mais importantes na Faculdade de Direito em todo o século XX: francesa e italiana. Só mais recentemente é que o Direito alemão tem aumentado sua importância na Faculdade de Direito, embora sempre tenha havido professores germanófonos.

RDCC — Muito de sua produção acadêmica é voltada para o Direito das Coisas e suas interfaces com o Direito Administrativo. Tal decorreu de seu ingresso no Departamento Jurídico da Eletropaulo – Eletricidade de São Paulo S.A., antiga Light – Serviços de Eletricidade S.A., e de sua experiência acumulada no período de 1977 a 1997?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Sim, o fato de ter sido advogado da Light, depois Eletropaulo, por mais de 20 anos, levaram-me a estudar também Direito Administrativo, por causa das servidões administrativas das linhas de transmissão. Aquela experiência profissional foi muito importante, porque a Light (Eletropaulo) tinha demandas com todos os grandes escritórios de advocacia do eixo Rio-São Paulo.

Isso ocorria porque a concessionária de energia elétrica detinha a concessão de 78 municípios nos dois maiores estados da República. As ações de desapropriação e de servidão administrativa tramitavam na Justiça Federal, pois a concessão era federal e, segundo a Constituição, a competência para legislar sobre energia elétrica era da União. Na Light (Eletropaulo), eu trabalhei com o catedrático Miguel Reale, que era o consultor jurídico da empresa desde 1959.

Lá eu também convivi com o catedrático José Frederico Marques e com o professor Dalmo de Abreu Dallari. Mas quem me levou a trabalhar na Light foi meu amigo Renato Ribeiro, que foi sócio do professor Reale por 27 anos. A Light tinha a terceira melhor biblioteca jurídica de São Paulo, só ficando atrás da Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

RDCC — A Câmara dos Deputados aprovou em 1984, nos estertores do regime militar, o projeto de Código Civil, elaborado sob a coordenação geral do catedrático Miguel Reale. Na época, acreditava-se que esse projeto seria realmente convertido em lei?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Não se acreditava mais que esse projeto seria convertido em lei. O Congresso estava mais preocupado com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte e com a elaboração de uma nova Constituição, a qual acabou sendo promulgada em 5/10/1988 e chamada por Ulysses Guimarães de Constituição cidadã. Eu trabalhava na Eletropaulo e convivia diretamente com o professor Miguel Reale. Ele próprio não acreditava muito na viabilidade do projeto. Talvez as circunstâncias da época fossem também determinantes para que isso acontecesse. Era o final do regime militar, início da Nova República. 

RDCC — Sua livre-docência deu-se em 1988, com uma tese sobre o condomínio. Em sua opinião, o Código Civil de 2002 conferiu um tratamento adequado à matéria, abrangendo também o condomínio edilício? Em que nossa legislação sobre condomínio deveria ser aprimorada?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Minha tese de livre docência tinha o seguinte título: O Condomínio tradicional no Direito Civil. A banca foi composta pelos professores Antonio Junqueira de Azevedo, Rubens Limongi Franca, Altino Portugal Soares Pereira, Milton Fernandes e João Baptista Villela. O Código Civil de 2002 perdeu uma grande oportunidade de dar personalidade jurídica ao condomínio edilício. O código também se omitiu no que tange ao tratamento normativo do time sharing (multipropriedade).

A legislação atual precisaria ser alterada e modernizada, ao exemplo das regras de alteração de destinação do edifício, que exigem unanimidade, e do caráter irrisório da multa de 2% por inadimplemento de contribuições condominiais. Unanimidade é um requisito que não se exige nem para mudanças no texto constitucional.

Quanto ao valor da multa, ele não consegue atender às necessidades de previsibilidade e de estímulo ao cumprimento das obrigações pelos condôminos, o que se dá em prejuízo de todos. Penso que seria necessária uma mudança no Código Civil, na linha do que propôs o deputado federal Ricardo Izar, que previa a multa de 10% por inadimplemento total.

RDCC — O senador Antônio Carlos Magalhães desarquivou o projeto de Código Civil e conseguiu sua aprovação no Senado Federal em 1997. Na época, qual foi o impacto desse “ressurgimento” do Projeto Reale? Qual a reação dos professores de Direito Civil?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 As reações foram várias. O professor Junqueira de Azevedo refutou o projeto, entendendo que ele estava defasado e incompleto. Alguns professores, como Arnoldo Wald, consideravam que o Direito Empresarial não deveria fazer parte do Código Civil. Houve realmente uma oposição muito forte ao Código Civil entre civilistas de São Paulo, Paraná (Luiz Edson Fachin) e Rio de Janeiro (Gustavo Tepedino). O desarquivamento foi um ato discreto. A atuação do senador Josaphat Marinho foi essencial para que isso ocorresse. Em 1997, as pessoas continuavam a não acreditar na aprovação final do Código Civil, especialmente em razão do tempo anterior de tramitação.

RDCC — O projeto seguiu para a Câmara Federal e o deputado Ricardo Fiuza, de Pernambuco, assumiu a relatoria. Ele formou uma comissão de juristas para assessorá-lo, de entre os quais a professora Regina Beatriz Tavares da Silva e o senhor. Como se deu o convite para integrar essa comissão e qual foi seu trabalho no assessoramento ao relator?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 O convite partiu da professora Regina Beatriz Tavares da Silva, minha amiga há pelo menos 35 anos. Meu trabalho consistiu em assessorar a comissão, principalmente no Direito das Coisas, na parte de propriedade, dos direitos de vizinhança, do condomínio, dos direitos reais sobre coisa alheia e nos direitos reais de garantia. A comissão era composta por dez juristas e seus membros escreveram o primeiro Código Civil comentado após a vigência do novo diploma, editado pela Saraiva e já está em sua décima edição (2016). Até a quinta edição, esse código foi coordenado pelo deputado Ricardo Fiuza.

A partir da sexta edição, a obra tem sido coordenada pela professora Regina Beatriz Tavares da Silva. Além do deputado Ricardo Fiuza, da professora Regina Beatriz Tavares da Silva e de mim, os outros membros da comissão, que também são coautores da obra, são Alexandre Guedes A. Assunção, Joel Dias Figueira Jr., Jones Figueiredo Alves, Maria Helena Diniz, Mario Luiz Delgado Régis, Newton de Lucca e Zeno Veloso.

RDCC — Quais os bastidores do processo de aprovação do Código Civil na Câmara Federal? A seu ver, foram mais interessantes?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Até o momento da aprovação, em janeiro de 2002, a situação era tensa. Alguns juristas pressionavam o presidente Fernando Henrique Cardoso para não sancionar o projeto. Outros pediam uma vacatio legis de até dois anos e um terceiro grupo insistia em retirar o Direito de Empresa do texto final. Mas, felizmente o projeto foi sancionado. O presidente Fernando Henrique Cardoso foi colega do professor Miguel Reale na Universidade de São Paulo e o interesse em homenageá-lo, o maior jurista do Brasil na época (e talvez um dos maiores do mundo), pesou na decisão presidencial de não ampliar o prazo de vacatio legis. Na época, o professor Reale contava com 92 anos.

Aprovar o código seria um reconhecimento em vida aos serviços prestados pelo professor Reale ao País. Ele foi reitor da USP em duas gestões e era, ao seu tempo, o nome mais conhecido internacionalmente dentre os juristas brasileiros. Sua obra foi traduzida para dezenas de línguas e é referida em vários trabalhos de Filosofia do Direito no mundo.

RDCC — Imediatamente após a vigência do Código Civil de 2002, o deputado Ricardo Fiuza apresentou vários projetos de modificação da lei. Em sua opinião, quais os pontos que já nasceram desatualizados no atual código?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Algumas questões de Direito de Família e Sucessões já nasceram precisando de reformas. O problema é que o projeto demorou 27 anos para ser aprovado. Nesse período, tivemos a aprovação da Lei dos Registros Públicos, da Lei do Divórcio, da Constituição de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Código de Defesa do Consumidor, do Estatuto da Cidade e de outras leis importantes, que criaram algum tipo de assimetria com o Código Civil, mesmo ele tendo sido atualizado em diversos pontos na Câmara dos Deputados. Muitos dos problemas ligados ao Direito de Família e ao Direito das Sucessões foram objetos de decisões do STF, o que terminou por resolver algumas dessas questões, embora eu tenha reservas sobre muitas dessas intervenções judiciais.

RDCC — Discute-se hoje a conveniência da aprovação de um estatuto autônomo para o Direito de Família e das Sucessões. O senhor considera necessário retirar essa matéria do Código Civil?
Carlos Alberto Dabus Maluf — 
Considero que é desnecessária a aprovação de um estatuto autônomo para essas matérias. Essa alteração quebraria a estrutura do Código Civil. Esses temas pertencem ao Direito Civil como parte de um sistema e devem ali permanecer. É óbvio que a atualização legislativa é bem-vinda. Muitas vezes o legislador é excessivamente lento e o Poder Judiciário termina por suprir as lacunas criadas pelos comportamentos sociais.

RDCC — Tramita no Congresso Nacional um projeto de novo Código Comercial. O senhor considera oportuno abandonar o caminho da unificação das obrigações e dos contratos, que foi adotado pelo Código Civil de 2002?
Carlos Alberto Dabus Maluf — 
Não sou comercialista e respeito a opinião dos expertos, mas entendo que seria mais fácil modernizar e adaptar o Direito de Empresa do Código Civil. Aplica-se aqui o mesmo fundamento da minha resposta à pergunta anterior: o Código Civil foi elaborado sistematicamente para também compreender dispositivos do Direito de Empresa. Logo, seria um contrassenso revogar essa parte da codificação. Considere-se que o Código Civil tem apenas 15 anos de existência. Seria, no mínimo, açodado proceder a uma modificação tão invasiva no código com tão pouco tempo de experiência das soluções nele contidas.

RDCC — Washington de Barros Monteiro, falecido em 1999, foi, por muitos anos, catedrático de Direito Civil da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e um professor com grande proximidade consigo. O senhor tornou-se atualizador e, posteriormente, coautor do clássico Curso de Direito Civil, de Washington de Barros Monteiro, ao lado das professoras Regina Beatriz Tavares da Silva e Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto.
A partir de suas lembranças, o que destacaria na trajetória desse grande docente do Largo de São Francisco? Como tem sido a experiência de renovar uma obra tão importante para o Direito Civil nacional?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Minha convivência com o catedrático Washington de Barros Monteiro foi a melhor possível. Fui seu aluno na pós-graduação em Direito Civil da Faculdade de Direito de 1973 a 1977. Frequentei seu escritório na Praça Ramos de Azevedo, no famoso prédio Glória. Como eu era advogado da Eletropaulo, ia semanalmente a seu escritório para trocar ideias sobre o Direito Civil. Além do mais, tive um tio chamado Nicolau Tuma, que foi deputado federal, o qual era colega de turma de Barros Monteiro (turma de 1931) e muito amigo dele, o que facilitou minha aproximação com o professor. A filha do catedrático Barros Monteiro, Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto, era minha colega na pós-graduação e eu nutro por ela uma grande amizade.

A professora Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto foi também procuradora do Município de São Paulo. Para mim, é motivo de muita honra e orgulho ser hoje coautor de tão importante obra do Direito Civil brasileiro. É um clássico que merece continuar a influenciar na formação das novas gerações. Daí a importância dessa atualização permanente da obra. Coube-me a coautoria de três dos seis volumes. Os outros volumes são de coautoria de Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto e de Regina Beatriz Tavares da Silva. A editora deu-nos a liberdade para modificar o próprio conteúdo da obra, diferentemente de outras atualizações.

Ana Cristina de Barros Monteiro França Pinto queria contar com a participação de poucos atualizadores e pessoas que comungassem do pensamento de Washington de Barros Monteiro. Eu procurei atualizar toda a legislação e a jurisprudência citadas. Quando necessário, inclui também novas fontes doutrinárias. No volume sobre Direito Contratual, adicionei capítulos sobre novos contratos típicos e atípicos, além de abordar com maior profundidade maté- rias que ganharam maior importância com o Código Civil de 2002. Ser coautor aumenta minha responsabilidade, pois não se trata de uma mera atualização.

RDCC — Como ser autor de obras de Direito Civil em tempos de internet e de busca por informações rápidas e muitas vezes pouco aprofundadas?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Eu tenho uma enorme satisfação de dividir a autoria de meus escritos dos últimos 10 anos com minha esposa, a professora Adriana Caldas do Rêgo Freitas Dabus Maluf. Essa atividade compartilhada tem-me ajudado a adaptar a escrita, a linguagem e o foco das obras a um novo público, a uma nova realidade cultural e editorial e a me modernizar como autor e como docente. São exemplos dessa nova fase de minha vida acadêmica o curso de Direito de Família, já em segunda edição; o curso de Direito das Sucessões e, mais recentemente, o curso de Introdução ao Direito Civil. Nesses livros, temos tentado dar ênfase a temas contemporâneos e ampliar o espaço de matérias que geralmente são negligenciadas pela doutrina.

RDCC — O senhor é professor há mais de 40 anos, comparece quase diariamente às Arcadas e tem profundo amor à instituição. O senhor, em todos esses anos, assistiu a muitas transformações na Faculdade, no ensino do Direito e no perfil dos alunos. O que mudou desde então nos discentes, na relação com os docentes e no modo como se estuda o Direito Civil?
Carlos Alberto Dabus Maluf —
 Preocupa-me muito o futuro. A nova grade curricular, recentemente aprovada, poderá engessar o Direito Civil. Estamos cortando na carne, no que diz respeito às matérias obrigatórias. Não é possível dar em um único semestre Direito de Família e Direito das Sucessões. Além disso, o Direito das Coisas perderá muito com a retirada de parte significativa de seu conteúdo, como a relativa aos direitos reais sobre coisa alheia.

O perfil dos alunos transformou-se com o tempo. Há uma maior liberdade, diminuiu-se a reverência ao professor. Existe uma força política maior por parte dos alunos, o que se reflete em mais representatividade nos órgãos colegiados da Universidade. Lembro que alguns professores de meu tempo não admitiam o ingresso ou a saída de sala de aula após o início das atividades. Eu tento me adaptar às novas realidades. As mudanças fazem parte da vida. Posso dizer, no entanto, que sou esperançoso. Exerço a docência universitária há mais de 40 anos, tendo sido eleito e reeleito para a chefia do Departamento de Direito Civil. Sem falsa modéstia, posso ser considerado um professor que cumpre suas obrigações com diligência e responsabilidade.

Mesmo como professor titular, dou minhas aulas sem recorrer a assistentes, embora estes me ajudem nas atividades mais burocráticas. Em 2013, recebi uma homenagem que considero o ponto de culminância de minha carreira, que foi o liber amicorum organizado pelo professor Christiano Cassettari e orientado pelo professor titular Rui Geraldo Camargo Viana. Essa obra reuniu dezenas de professores de Direito Civil, advogados e magistrados de todo o país e reflete um pouco minha trajetória acadêmica e profissional.

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