Direito Civil Atual

STJ avança na delimitação do adimplemento substancial (parte 2)

Autor

  • Augusto Cézar Lukascheck Prado

    é professor de Direito Civil. Assessor de ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

18 de junho de 2018, 8h48

ConJur
Na última coluna, iniciou-se o exame da decisão proferida pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.581.505/SC, de relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, na qual se negou a aplicação da doutrina do adimplemento substancial em caso de inadimplemento incontroverso de mais de 30% do valor do contrato.

Destacou-se a importância do estabelecimento, no Brasil, das premissas dogmáticas de referida doutrina, de seu fundamento jurídico e de seus critérios de aplicação, ressaltando-se a importância, nesse contexto, da atuação do Superior Tribunal de Justiça, talvez o principal responsável por essa delimitação. Disso falaremos melhor nesta coluna.

O ordenamento jurídico nacional, diferentemente dos ordenamentos de países como Alemanha[1], Italia[2] e Portugal[3], não possui disposição expressa que acolha a referida doutrina, o que aumenta o ônus argumentativo daqueles que pretendem sua aplicação em determinado caso concreto.

É fundamental, portanto, em primeiro lugar, a determinação do fundamento da introdução da doutrina do adimplemento substancial no sistema jurídico nacional.

Notável a preocupação do acórdão nesse sentido, destacando a existência de diversos posicionamentos no que tange ao correto fundamento da referida doutrina, havendo quem pretenda baseá-la na função social do contrato, na boa-fé objetiva, na vedação ao abuso de direito, na vedação ao enriquecimento sem causa ou em mais de um fundamento concomitantemente.

Há uma tendência, no entanto, conforme consignado pelo eminente Ministro relator, a considerar a referida doutrina como introduzida no direito brasileiro por meio da cláusula geral da boa-fé objetiva[4].

Com efeito, o adimplemento substancial insere-se, para aqueles que o fundamentam a partir da cláusula geral da boa-fé objetiva, dentro da chamada função limitadora do exercício de posições jurídicas ativas[5] junto a outras concretizações, como o venire contra factum próprio, o tu quoque, a supressio etc.

Mais que isso, pode-se afirmar que o adimplemento substancial representa espécie de vedação ao exercício inadmissível de posição jurídica, porquanto veda o exercício do poder formativo resolutivo sem a observância da boa-fé objetiva[6], inserindo-se, ademais, nas hipóteses de vedação ao manejo de poderes-sanção por faltas insignificantes[7] em que se verifica a desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem[8].

No que diz respeito aos critérios de aplicação, o acórdão da 4ª Turma do STJ aponta as seguintes diretrizes extraídas do julgamento do paradigmático REsp 76.362/MT, de relatoria do ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, julgado em 11 de dezembro de 1995[9]: a) a existência de expectativas legítimas geradas pelo comportamento das partes; b) o pagamento faltante ínfimo em se considerando o total do negócio; c) a possibilidade de conservação da eficácia do negócio sem prejuízo ao direito do credor de pleitear a quantia devida pelos meios ordinários.

O acórdão da 4ª Turma menciona, ainda, lição doutrinária da lavra de Otavio Luiz Rodrigues Jr. segundo a qual “os autores ingleses, tomando como fundamento a gravidade objetiva do prejuízo causado ao credor pelo não cumprimento da prestação, formulam três requisitos para admitir a substancial performance: a) insignificância do inadimplemento; b) satisfação do interesse do credor; e c) diligência por parte do devedor no desempenho de sua prestação, ainda que a mesma se tenha operado imperfeitamente”[10].

De mais a mais, na esteira da preocupação do acórdão com a fixação de critérios para a incidência da referida doutrina, outras balizas podem ser apontadas: a) ela não diferencia a causa do inadimplemento, isto é, se imputável ou não imputável, bem como se este é tido como absoluto ou relativo; b) no que diz respeito à causa do inadimplemento, ela somente terá relevância quando se tratar de contrato de trato sucessivo, pois, se o descumprimento for doloso, o credor terá fundado receio de que o devedor poderá descumprir novamente, de tal modo que passa a perder seu interesse na continuação da avença; c) a doutrina do adimplemento substancial desconsidera a natureza do dever descumprido, levando-se em conta apenas sua gravidade[11].

Existem, ainda, outros critérios traçados pela doutrina nacional para se perquirir a existência ou não do adimplemento substancial, quais sejam: a) o grau de satisfação do interesse do credor, ou seja, a prestação imperfeita deve satisfazer seu interesse; b) a comparação entre o valor da parcela descumprida com o valor do bem ou do contrato; c) o esforço e a diligência do devedor em adimplir integralmente[12]; d) a manutenção do equilíbrio entre as prestações correspectivas; e) a existência de outros remédios capazes de atender ao interesse do credor com efeitos menos gravosos ao devedor; e f) a ponderação entre a utilidade da extinção da relação jurídica obrigacional e o prejuízo que adviria para o devedor e para terceiros a partir da resolução[13].

Diante dessas considerações, indaga-se: um inadimplemento de cerca de R$ 70.450,00, em um contrato de valor total estimado em R$ 230.875,00, parece suficiente para satisfazer os interesses do credor? Poderia ser considerado um inadimplemento de pouca monta, um dacaimento mínimo? Estaria mantido o equilíbrio entre as prestações correspectivas? Seria adequado impor ao credor, contra sua vontade, a utilização tão somente da via indenizatória para a satisfação de seu interesse?

O acórdão, após destacar que o critério quantitativo não seria suficiente para a correta análise do adimplemento substancial, devendo ser acrescido de critérios qualitativos, conclui, não obstante, que a simples análise quantitativa e objetiva do inadimplemento seria, na espécie vertente, suficiente, por si só, para afastar a aplicação da doutrina no caso dos autos, dado o vulto do inadimplemento.

Toca-se, aqui, em ponto fundamental da matéria. A percepção do que seja o decaimento mínimo é um dos aspectos principais a serem abordados quando se analisa a doutrina do adimplemento substancial[14]. Consciente dessa dificuldade, o acórdão, ao analisar o critério quantitativo, menciona diversos precedentes do STJ para ilustrar o que aquela Corte Superior entende por decaimento mínimo apto a obstar a resolução contratual: a) atraso na última parcela (REsp 76.362/MT); b) inadimplemento de 2 parcelas (REsp 912.697/GO); c) inadimplemento de valores correspondentes a 20% do valor total do bem (REsp 469.577/SC); d) inadimplemento de 10% do valor total do bem (AgRg no AgREsp 155.885/MS); e e) inadimplemento de 5 parcelas de um total de 36, correspondendo a 14% do total devido (REsp 1.051.270/RS).

Ao fim e ao cabo, o julgado tem o grande mérito, preocupado com o aumento dos custos de transação em longo prazo, de elaborar análise dogmática séria da doutrina do adimplemento substancial, apontando a necessidade de se estabelecer seu fundamento jurídico no direito brasileiro, ao mesmo tempo em que busca critérios de aplicação para conferir à matéria tratamento lógico-sistemático adequado, alertando, dessa forma, para o fato de que o emprego desarrazoado e sem critérios desta doutrina — como, aliás, vem ocorrendo, no sistema jurídico nacional, com outras figuras jurídicas importadas — “não pode ser estimulado a ponto de inverter a ordem lógico-jurídica que assenta o integral e regular cumprimento do contrato como meio esperado de extinção das obrigações”.

A prevalecer esta linha decisória estampada no acórdão da 4ª Turma do STJ, pode-se vislumbrar um caminho seguro e consistente a ser seguido pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência nacional. Desse modo, ressalta-se a necessidade da jurisprudência de não apenas encontrar um resultado pragmaticamente apto a resolver o caso concreto, mas que seja capaz de fornecer fundamentação sistematicamente consistente e adequada, o que de fato ocorreu no caso examinado.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).


1 §323 (5) Hat der Schuldner eine Teilleistung bewirkt, so kann der Gläubiger vom ganzen Vertrag nur zurücktreten, wenn er an der Teilleistung kein Interesse hat. Hat der Schuldner die Leistung nicht vertragsgemäß bewirkt, so kann der Gläubiger vom Vertrag nicht zurücktreten, wenn die Pflichtverletzung unerheblich ist.
2 Art. 1455: Il contrato non si può risolvere se l’inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all’interesse dell’altra.
3 Art. 802º, 2: O credor não pode, todavia, resolver o negócio, se o não cumprimento parcial, atendendo ao seu interesse, tiver escassa importância.
4 BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparatista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 9, n. 1, p. 60-77, nov., 1993; SANTOS ALBUQUERQUE, Fabíola. O instituto do adimplemento substancial e suas repercussões na teoria clássica da relação jurídica obrigacional. Revista da ESMAPE, v. 10, n. 21, p. 181-196, jan./jun., 2005; BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento Substancial. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 59-91; MARTINS COSTA, Judith. A boa-fé objetiva e o adimplemento das obrigações. Revista Brasileira de Direito Comparado, v. 25, p. 229-281, 2º sem. 2003; FRADERA, Vera Maria Jacob de. O conceito de inadimplemento fundamental do contrato no artigo 25 da lei internacional sobre vendas, da Convenção de Viena de 1980. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 11, p. 59, 1996.
5 NUNES FRITZ, Karina. O princípio da boa-fé objetiva e sua incidência na fase negocial: um estudo comparado com a doutrina alemã. Revista Forense, v. 395, p. 173-208, jan./fev., 2008.
6 O exercício de determinado direito sem a observância da boa-fé objetiva pode configurar exercício inadmissível de posição jurídica. De acordo com o art. 187 do CC, o abuso de direito é verdadeiro ato ilícito.
7 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa Fé no Direito Civil. 6. reimp. Coimbra: Almedina, 1983, p. 857-858.
8 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa Fé no Direito Civil. 6. reimp. Coimbra: Almedina, 1983, p. 853.
9 REsp n. 76.362/MT, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 11/12/1995, DJ 1/4/1996, p. 9917. Ver, ainda, AGUIAR JR, Ruy Rosado de. Extinção dos Contratos por Incumprimento do Devedor: Resolução. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 132.
10 REsp n. 1.581.505/SC, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 18/8/2016, DJe 28/9/2016. Ver, ainda, RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos. 2. ed., São Paulo: Atlas, 2006, p. 72.
11 BUSSATA, Eduardo Luiz. Resolução dos Contratos e Teoria do Adimplemento Substancial. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 111 e 117.
12 BECKER, Anelise. A doutrina do adimplemento substancial no Direito brasileiro e em perspectiva comparatista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, v. 9, n. 1, p. 60-77, nov., 1993.
13 SCHREIBER, Anderson. A tríplice transformação do adimplemento. Adimplemento substancial, inadimplemento antecipado e outras figuras. Revista Trimestral de Direito Civil – RTDC, ano 8, v. 32, p. 3-37, out./dez., 2007.
14 FERREIRA, Antonio Carlos. A interpretação da doutrina do adimplemento substancial (Parte 2). 9 Fev. 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-jun-29/direito-civil-atual-interpretacao-doutrina-adimplemento-substancial-parte>. Acesso em: 23 set. 2016.

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  • é professor de Direito Civil Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP). Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP).

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