Opinião

Hesíodo, a ideia de trabalho e a justiça
dos oprimidos

Autor

  • Arlei Wiclif Leal da Silva

    é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura e graduado em Gestão Financeira e em Direito.

17 de junho de 2018, 10h37

Hesíodo é concebido por muitos estudiosos contemporâneos como uma figura histórica, especialmente em razão da voz autoral apresentada em seus textos, sendo comumente identificado como “o primeiro poeta ocidental a falar em seu próprio nome e dar indicações mais precisas sobre sua vida pessoal”[1], diferentemente do que ocorre em Homero, poeta da Ilíada e da Odisseia, motivo pelo qual nos ensina Lafer que “Hesíodo inicia, na Grécia, o rico filão dos poetas que cantam em primeira pessoa”[2].

A postura autobiográfica de Hesíodo demonstra maior individualidade e consciência poética, o que representa uma evolução em relação a Homero, passando-se de um estágio “em que o poeta se vê como um discreto intermediário das Musas para uma poética em que o artista está mais consciente de seus meios e apresenta uma individualidade mais delimitada”[3].

Mostra-se, vale dizer, incerto o quanto da vida de Hesíodo fundamenta os acontecimentos e citações encontrados em seus textos, especialmente se considerarmos as contradições neles presentes e o artifício ficcional próprio do gênero literário. Inobstante, a imagem da existência humana ali encontrada “deve ter se inspirado na observação de uma vida real ou de vidas reais”[4], não havendo que se duvidar que “esse fundo empírico da percepção de Hesíodo se fundament[a] ao menos em parte na visão que ele tinha de sua própria existência”[5].

A questão concernente ao quanto do texto refere-se à pessoa de Hesíodo pode ser considerada menor diante da constatação de que ele “se preocupa em apresentar uma individualidade assim definida e a investigação de como essa vida é imaginada e representada poeticamente”[6]. Aliás, esse ideal pode nos levar a uma leitura menos biografista e mais preocupada com o poema enquanto construção literária, havendo, ainda, a possibilidade de identificar Hesíodo como uma figura de ficção e interpretar o texto em função dele mesmo.

Independentemente do posicionamento relativo à expressão pessoal de Hesíodo em seus textos, é possível verificar que seu poema intitulado Os Trabalhos e os Dias apresenta “reflexões de caráter geral sobre a vida do pequeno agricultor, relações sociais e comerciais, a administração do trabalho agrícola, a maneira como o trabalhador se liga ao funcionamento da natureza”[7] e outros temas relacionados que transcendem os limites do passado em que está inserido. Neves Lafer, a propósito, menciona que esse poema mostra “a organização do mundo dos mortais, apontando sua origem, suas limitações, seus deveres, revelando-nos, assim, em que se fundamenta a própria condição humana”[8], diferentemente do que ocorre em Teogonia, obra na qual “Hesíodo mostra como se organiza o mundo dos deuses, apresentando-nos sua genealogia, mostrando sua linhagem e como foram distribuídos seus lotes e suas honras”[9].

Jaeger explicita que Os Trabalhos e os Dias “apresenta a mais viva descrição da vida campestre da metrópole grega no final do século VIII e completa essencialmente a representação da vida mais primitiva do povo grego que aprendemos do Jônico Homero”[10].

Marcado pela tradição oral da poesia arcaica grega, o texto é recheado de críticas sociais, “sabedoria milenar, narrativa mítica, discurso indignado, religiosidade e observação do cotidiano e da natureza, vazado num estilo às vezes enigmático”[11]. Os protagonistas do poema são pessoas que precisam do trabalho realizado diariamente na terra para viver, não podendo contar com o auxílio de servos ou escravos, contrastando com o que encontramos nos textos de Homero, nos quais o “foco principal da atenção são nobres guerreiros cuja relação com a dureza do trabalho está muito mediata”[12].

Todavia, Moura acentua que não há em Hesíodo “uma glorificação do trabalho como atividade que seria por si só enobrecedora”[13], já que, antes de tudo, é uma necessidade, colocado pelos deuses no caminho da prosperidade. O trabalho também não é vergonhoso, sendo apenas através dele que se pode obter uma boa vida. O progresso é sempre associado à dedicação ao trabalho, como exemplo do verso 495, no qual o autor defende que “o ganho fácil, obtido por meios desonestos, levará ao desastre”[14]. Em Hesíodo, segundo Jaeger, revela-se o valor do trabalho, explicitando que o “heroísmo não se manifesta só nas lutas em campo aberto, entre cavaleiros nobres e os seus adversários”[15], mas também na “luta silenciosa e tenaz dos trabalhadores com a terra dura e com os elementos”[16].

Embora exprima um espírito conservador e temeroso, o camponês descrito por Hesíodo “não assume uma postura absolutamente conformista”[17], visto que, “sem deixar de reconhecer com humildade o lugar do homem na difícil ordem das coisas”[18], o poeta grego fala contra os “reis”, aos quais atribui o título de devoradores de presentes, “dando vazão portanto a suas insatisfações com uma aristocracia que, concentrando em suas mãos o poder dos tribunais, fazia dele mau uso”[19], donde surge o tema da justiça, o qual comentaremos a seguir.

Os Trabalhos e os Dias inserem-se, pois, num “contexto de pequenos agricultores, em uma terra escassa, vivendo não só um período de crise agrícola e social, mas também religiosa”[20], tratando-se, todavia, de um momento “extremamente fecundo no qual podemos localizar grandes transformações econômicas, sociais e religiosas, além de nos encontrarmos diante da etapa embrionária desta experiência única na História da Humanidade que foi a polis grega”[21].

Murari e Caporalini doutrinam que Os Trabalhos e os Dias é “composto por vários poemas que se ligam e dão sustentação ao todo”[22], englobando um problema crucial e que preocupa Hesíodo e toda a raça humana: a justiça.

Através do poema, o autor sugere que o trabalho apenas terá sua correta compensação “se a justiça é administrada sem distorções”[23]. A propósito, nos versos 240-241, Hesíodo ensina que uma cidade inteira pode sofrer pelos crimes de um só homem, que peca e “maquina iniquidades”[24], homem este frequentemente associado aos chamados “reis” e, conforme Moura, aos “membros da nobreza encarregados da administração da justiça”[25].

Conquanto o poder divino para Hesíodo perpasse toda a realidade e seja guardião da justiça, o autor não considera o humano um ser passivo, cabendo-lhe, segundo Moura, escolhas morais das quais resultam a relação que estabelece com os demais homens e com o divino, observando, assim, “o mundo natural, repleto de deuses, e nesse panorama sabe reconhecer os sinais que orientam seu trabalho. Em tal contexto, o planejamento e a organização são essenciais”[26], ou seja, “ao lado dos mitos, o povo guarda a sua antiga sabedoria prática, adquirida pela experiência imemorial de incontáveis gerações e que se compõe de conhecimentos e conselhos profissionais, e de normas morais e sociais, concentradas em fórmulas breves”[27]. Por meio da obra Os Trabalhos e os Dias, especialmente da segunda parte, Hesíodo transmitiu-nos um grande número dessas preciosas tradições, pondo em evidência “os múltiplos elementos culturais dos camponeses, para os quais escreve”[28].

Em Hesíodo, portanto, é introduzido pela primeira vez “o ideal que serve como ponto de cristalização a todos estes elementos e adquire uma elaboração poética em forma de epopeia: a ideia do direito”[29].

Por sinal, já se dirigindo a uma concepção de justiça universalizante, não discriminatória, Hesíodo exprime a ideia de que o “processo de formação do homem grego não se consuma pela simples imposição ao resto do povo das maneiras e formas espirituais criadas por uma classe superior”[30], já que “todas as classes dão sua contribuição”[31]. Dessa forma, o autor grego procura “desvendar os valores próprios da vida do campo e acrescentá-los ao tesouro espiritual da nação inteira”[32]. Nesse diapasão, embora os detentores do poder e da formação sejam os nobres, os “camponeses não deixam de ter uma independência espiritual e jurídica considerável”[33].

Neves Lafer doutrina que Hesíodo “reivindica uma prática jurídica inspirada na Justiça de Zeus para o seu caso pessoal e, consequentemente, também para seus contemporâneos”[34]. Cumpre ressaltar, aliás, que, ao tratar da temática relacionada à justiça, o tema exterior no poema de Hesíodo “é o processo com o seu irmão Perses, invejoso, briguento e preguiçoso, que, depois de ter malbaratado a herança paterna, insiste constantemente em novos pleitos e reclamações”[35], conquistando, inclusive, a boa vontade do juiz por meio de suborno. Nada obstante, ressalta Jaeger que “a luta entre a força e o direito que se manifesta no processo não é, evidentemente, um assunto meramente pessoal do poeta; este torna-se, ao mesmo tempo, porta-voz da opinião dominante entre os camponeses”[36].

Jaeger ainda ensina que, “a propósito da luta pelos próprios direitos, contra as usurpações do seu irmão e a venalidade dos nobres, expande-se no mais pessoal dos seus poemas, […] uma fé apaixonada no direito”[37]. Falando em primeira pessoa, Hesíodo “abandona a tradicional objetividade da epopeia e torna-se porta-voz de uma doutrina que maldiz a injustiça e bendiz o direito. É o enlace imediato do poema com a disputa jurídica sustentada contra o seu irmão Perses, que justifica esta ousada inovação”[38].

De fato, o processo contra seu irmão Perses expressa a íntima tensão da luta de Hesíodo pelos próprios direitos, não afetando, todavia, a finalidade didática do poema. Segundo Jaeger, “Hesíodo apresenta o simples acontecimento civil da ação judicial como uma luta entre os poderes do Céu e da Terra pelo triunfo da justiça”[39], rogando a Zeus que defenda a justiça e se encarregando, “na Terra, do papel ativo de dizer a verdade ao irmão extraviado e afastá-lo do caminho funesto da injustiça e da contenda”[40].

O trabalho, para Hesíodo, como já dito, é uma dura necessidade para o ser humano, e “quem por meio dele provê sua modesta subsistência recebe bênçãos maiores do que aquele que cobiça injustamente os bens alheios”[41]. Na segunda parte do poema, Dike converte-se numa divindade independente, que senta ao lado de seu pai, Zeus, e se lamenta quando os homens “abrigam desígnios injustos, porque tem de prestar-lhe contas deles”[42].

Para Hesíodo, não se deve apelar, dentre os homens, para o direito do mais forte, como o falcão e o rouxinol. Sendo um homem simples, identificado com o povo, ele “empreende, através de sua fé inquebrantável na proteção do direito pelos deuses, uma luta contra o seu próprio meio”[43]. É na vida e no pensamento dos camponeses que Hesíodo injeta, através do texto em comento, a sua ideia de direito, conjugando-a com a ideia de trabalho, o qual é celebrado, como já mencionado, como único caminho para se alcançar a excelência, ligada à noção de cumprimento de propósito. Conforme Murari e Caporalini, a justiça e o trabalho “estão intimamente ligados”[44], na medida em que aquele que trabalha possui um valor moral, sendo “justo e merecedor da bonança dada por Zeus”[45].

Os Trabalhos e os Dias, portanto, apresenta-nos a vida dos camponeses, alicerçando no mundo do trabalho a sua ideia do direito como fundamento da vida em sociedade, ressaltando a formação independente dessa classe popular, excluída até então.


[1] HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Edição, tradução, introdução e notas de Alessandro Rolim de Moura. Curitiba: Segesta, 2012, p. 18.
[2] HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Introdução, tradução e comentários de Mary de Camargo Neves Lafer. 3. ed. São Paulo: Iluminuras, 1996, p. 16.
[3] HESÍODO, 2012, op. cit., p. 19.
[4] Ibidem, p. 21.
[5] Idem.
[6] Idem.
[7] Ibidem, 24.
[8] HESÍODO, 1996, op. cit., p. 15.
[9] Idem.
[10] JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução: Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 85.
[11] HESÍODO, 2012, op. cit., p. 12.
[12] Ibidem, p. 25.
[13] Ibidem, p. 26.
[14] Ibidem, p. 28.
[15] JAEGER, Werner, op. cit., p. 85.
[16] Idem.
[17] HESÍODO, 2012, op. cit., p. 31.
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] HESÍODO, 1996, op. cit., p. 15.
[21] Ibidem, p. 15-16.
[22] MURARI, Juliana Cristhina Faizano; CAPORALINI, José Beluci. A Problemática da Justiça em Os Trabalhos e os Dias de Hesíodo. VII Jornada de Estudos Antigos e Medievais. VI Ciclo de Estudos Antigos e Medievais do PR e SC. Disponível em: <http://www.ppe.uem.br/jeam/anais/2008/pdf/c012.pdf>. Acesso em: 24.out.2017, p. 01.
[23] HESÍODO, 2012, op. cit., p. 31.
[24] Ibidem, p. 87.
[25] Ibidem, p. 63.
[26] Ibidem, p. 34.
[27] JAEGER, Werner, op. cit., p. 90.
[28] Idem.
[29] Ibidem, p. 91.
[30] Ibidem, p. 86.
[31] Idem.
[32] Idem.
[33] Ibidem, p. 87.
[34] HESÍODO, 1996, op. cit., p. 16.
[35] JAEGER, Werner, op. cit., p. 87.
[36] Idem.
[37] Ibidem, p. 91.
[38] Idem.
[39] Ibidem, p. 92.
[40] Ibidem, p. 92-93.
[41] Ibidem, p. 93.
[42] Ibidem, p. 97.
[43] Ibidem, p. 98.
[44] MURARI, Juliana Cristhina Faizano; CAPORALINI, José Beluci, op. cit., p. 06.
[45] Idem.

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    é mestrando em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade de São Paulo, especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Magistratura e graduado em Gestão Financeira e em Direito.

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