Observatório Constitucional

Direitos dos animais confirmam quarta dimensão dos direitos fundamentais

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16 de junho de 2018, 8h01

O tema escolhido para nossa contribuição em mais um semestre de atividades do Observatório Constitucional tangencia os direitos fundamentais dos animais, explorando suas possibilidades teóricas e apresentando, muito brevemente, as decisões do Supremo Tribunal Federal sobre este assunto.

A pergunta que instiga a reflexão é a possibilidade de enquadramento dos direitos dos animais numa quarta dimensão dos direitos fundamentais, em contraposição e diálogo com o que a doutrina constitucionalista tradicional[1] tem chamado de direitos fundamentais de quarta geração.

Paulo Bonavides, entre nós, é precursor da doutrina que defende a existência de uma quarta geração, ou dimensão, dos direitos fundamentais. Entretanto, as divergências sobre o assunto, associada a uma já longa e silenciosa ausência de premissas teóricas e metodológicas a justificarem a existência de um elemento inequivocamente diferenciador entre os direitos fundamentais de terceira e quarta dimensões, indicam que ainda é tempo de refletir sobre isso.

Acreditamos que a proposta de direitos fundamentais de quarta dimensão justifica-se pela análise, também polêmica, da existência de direitos dos animais não-humanos. O presente artigo apresentará alguns aportes teóricos do paradigma do Estado de Direitos Fundamentais[2] como o ambiente dogmático adequado para reconhecer, com apoio na doutrina pós-humanista, as condições de possibilidade de direitos fundamentais dos animais, bem como dará notícia dos precedentes do Supremo Tribunal Federal que enfrentaram esta temática.

O principal compromisso de um Estado de direitos fundamentais é com a irradiação, vinculação e efeitos, inclusive entre privados, desses direitos para todas as relações jurídicas e sociais. Sua construção, ao longo da história da humanidade, impõe, limita e condiciona o modelo político da contemporaneidade à garantia de uma vida digna para a pessoa humana.

Um Estado constitucional comprometido com os direitos fundamentais assumiu feições de Estado ideal, cuja concretização passou a ser sua constante tarefa[3]. Dentro dessa perspectiva, os direitos fundamentais passam a ser vistos, também, como um direito objetivo, destacando sua força jurídica autônoma.[4]As implicações dessa nova faceta dos direitos fundamentais surgem na concretização desses direitos, que serão irradiados para todo o ordenamento jurídico e direcionará, também, os órgãos Legislativo, Judiciário e Executivo[5], bem como toda a sociedade civil.

A importância do tratamento dos direitos dos animais, na perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, ocorre, exatamente, pela posição preeminente dos direitos fundamentais[6], transformando, portanto, os direitos dos animais em normas diretamente decorrentes do ordenamento jurídico constitucional, na condição de um dos componentes básicos da ordem constituinte.

Destacar a força irradiante não subjetivista dos direitos fundamentais, em seu sentido objetivista mais amplo, é essencial para que se possa avançar em uma discussão sobre direitos fundamentais dos animais, uma vez que a proposta é estender, a indivíduos de outras espécies, a titularidade de direitos inerentes à sua condição existencial, de maneira a alargar os horizontes do princípio da dignidade humana, basilar de todo o ordenamento jurídico-constitucional contemporâneo, para um conceito pós-humanista, acolhedor de todos os indivíduos como titulares dos referidos direitos.

Os direitos fundamentais, desde os essencialmente humanos, considerados pré-positivos e suprapositivos, até os efetivamente positivados na Constituição, correspondem aos direitos garantidos a seres humanos que são considerados sujeitos em uma determinada organização social e política. Abrange direitos individuais, coletivos e difusos, e regulam, a partir desses direitos, a atuação estatal, afirmando-se sua vinculatividade obrigatória tanto perante os entes públicos quanto às entidades privadas.

A teoria pós-humanista[7] permite um diálogo entre os direitos fundamentais dos animais não humanos com a doutrina humanista clássica e propõe uma nova visão acerca do que é possível incluir como pauta, na seara constitucional, de uma nova visão teórica e prática acerca da natureza jurídica dos animais não humanos. Seria possível, nesse contexto, falar-se em sujeitos de direitos fundamentais não-humanos?

A abordagem pós-humanista é a forma, então, encontrada, dentro dos seus variados campos de estudo e pesquisa, para questionar verdades preconcebidas quanto ao sujeito humano e construir um panorama inclusivo dos demais sujeitos que constituem o todo[8], propondo um novo saber. Esse progresso científico no âmbito jurídico[9] enseja uma interação com outras áreas, para que seja possível uma revolução nas interações existentes entre os humanos e os demais animais.

A proposta de um Estado de direitos fundamentais que acolhe os sujeitos não-humanos implica, necessariamente, a ampliação dos destinatários dos direitos ditos próprios e inerentes aos humanos para além de seres da nossa espécie[10], de maneira que o princípio da dignidade humana, basilar de toda a construção teórica dos direitos fundamentais, seja estendido para os demais entes animados.

A humanidade, por razões culturais e históricas, possui um enorme bloqueio ético em considerar que há outros indivíduos, que não da espécie humana, oprimidos e discriminados de maneira arbitrária e inquestionada. É um caminho que não visa desconstituir, mas ressignificar suas premissas e direcionar-se para uma proteção da vida universal, uma vez que a dignidade, a priori, é direito inerente apenas aos seres humanos, ainda que de maneira universalizada, como os direitos fundamentais de terceira geração.

Trazer essa percepção para o âmbito jurídico e, mais, para a teoria constitucional, é questionar a própria premissa humanista como categoria constitucional. A Constituição, como a “lei de todas as leis que o Estado produz”, positiva todos os preceitos axiológicos, partindo de pressupostos humanistas, bem como do conceito de dignidade humana.[11] A tendência em remodelar esse paradigma não visa excluir direitos dos sujeitos humanos, nem negar valores existenciais do ser humano, mas de questionar a sua posição central na condição de únicos titulares de direitos fundamentais.

Nesse sentido, e na linha de responder positivamente à pergunta sobre a existência de direitos fundamentais de quarta dimensão, é que se propõe o reconhecimento de direitos fundamentais dos seres vivos não humanos, principalmente dos animais, advertindo-se, entretanto, que isso não está sedimentado no âmbito internacional, nem das constituições dos países, tampouco sendo uma posição defendida pela doutrina pátria [12].

Por isso é que se percebe, nessa ausência de reconhecimento, um aporte para defender a possibilidade de dar aos direitos fundamentais dos animais um tratamento normativo próprio e, no que tange à dogmática dos direitos fundamentais, elevá-los a categoria de normas constitucionais, na qualidade de direitos fundamentais de quarta dimensão, os quais para além dos sujeitos humanos, prestigiariam características da existência não humana, declarando-se, com isso, uma proteção da vida animal, em sentido amplo.

Elevar os direitos fundamentais a este patamar é o mesmo que ressignificar o princípio da dignidade humana, com uma finalidade essencialmente inclusiva, pois, enquanto os direitos fundamentais de terceira geração abrangem todos os direitos do gênero humano, em seu último grau de evolução conceitual, os direitos fundamentais de quarta dimensão corresponderiam a um passo além da dimensão humana, protegendo os seres vivos que habitam o planeta em caráter universal.

Essa ressignificação trata, portanto, de redimensionar a dignidade humana, que protege a integridade física e emocional da pessoa humana e lhe garante um tratamento apto a que o indivíduo e as coletividades possam gozar de seus direitos de forma plena.[13]. Cuida também de proibir atos violadores de tal dignidade, protegendo e acolhendo indivíduos cuja dignidade foi arbitrariamente negada e que reclamam por uma reparação histórica e um debate ético honesto e significativo dos valores a eles relacionados.

O tratamento dos direitos dos animais como uma quarta dimensão dos direitos fundamentais justifica-se, portanto, mediante a possibilidade de manter a proeminência da dignidade humana como vetor constitucional e fazer, simultaneamente, uma releitura desse princípio, transferindo-o para o patamar de uma dignidade global, pós-humana.

A partir da proposta pós-humanista é possível traçar uma superação do paradigma antropocêntrico, que tornou a dignidade da pessoa humana o epicentro de todo o catálogo dos direitos fundamentais[14], para dar um grande passo constitucional no sentido de reconhecer a animais não humanos valor intrínseco[15].

A proposta de inserir animais não humanos no cenário jurídico, na condição de sujeitos de direitos fundamentais de quarta dimensão é justificada pela busca de justiça social interespécies[16]. Admitir a dignidade jurídica dos animais, no sentido de proteger constitucionalmente a singularidade da vida animal, embora pareça pouco provável, já vem sendo vista como possível no constitucionalismo e tem seus reflexos expressos na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Muito embora a Suprema Corte brasileira não tenha reconhecido a existência de direitos fundamentais dos animais, como categoria constitucional autônoma decorrente da doutrina pós-humanista, não se pode deixar de registrar a existência de, pelo menos, três precedentes relevantes em que a jurisprudência constitucional brasileira prestigiou, com fundamento na norma constitucional constante do art. 225, §1º, VII, da CRFB, o direito dos animais a não serem submetidos a crueldade.

No Recurso Extraordinário 153.531/SC, julgado em 03 de junho de 1997, o Supremo apreciou o caso da Farra do Boi, afirmando a inconstitucionalidade dessa manifestação cultural, sob o argumento de que ela confrontava a Carta da República a qual, expressamente, rejeitava crueldade contra animais.

Compreensão semelhante pode ser encontrada nas decisões das ADIs 2.514/SC e 1.856/RJ, em que se discutia a constitucionalidade de legislação estadual referente a exposições e competições entre aves combatentes. Em 29 de junho de 2005 e 26 de maio de 2011, respectivamente, o STF, em sua composição plenária, entendeu que a sujeição dos animais a experiências de crueldade não se apresentava compatível com a Constituição brasileira.

Por fim, na mesma linha, o Pleno da Suprema Corte, na ADI 4.983, julgada em 6 de outubro de 2006, confirmou que a garantia do exercício de direitos culturais não autorizava práticas e manifestações que submetessem os animais a crueldade, declarando a inconstitucionalidade de legislação estadual regulamentadora das vaquejadas.

Tem-se, pois, um indicativo jurisprudencial consolidado no Supremo Tribunal Federal a reconhecer, ainda que de forma não expressa, direitos dos animais com respaldo diretamente no texto constitucional (art. 225, §1º, VII, da CRFB), o que me anima a reafirmar que é possível, no contexto do Estado de Direitos Fundamentais, acolher uma quarta dimensão desses direitos, como aquela que reconhece e protege direitos dos seres vivos não humanos.

 


[1] Por todos vide: NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo : Editora Método, 2009, p. 362-364.

[2] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais, disponível em: <https://jus.com.br/artigos/42128/estado-de-direitos-fundamentais>. Acesso em 11/5/2018

[3] SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2012, p. 140.

[4] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais, disponível em: <https://jus.com.br/artigos/42128/estado-de-direitos-fundamentais>. Acesso em 11/05/2018, p. 10.

[5] LUÑO, Perez. Los Derechos Fundamentales apud SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p 143.

[6] [6] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais, disponível em: <https://jus.com.br/artigos/42128/estado-de-direitos-fundamentais>. Acesso em 11/05/2018.

[7] A própria expressão “pós-humanismo” ainda é discutida e entendida de maneiras diversas: a) utilizada para marcar o fim do período de desenvolvimento social conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do humanismo’; b) sinalização de que o que constitui o ser humano está passando por transformações, ou seja, existe um novo significado para o que é ser humano e c) “pós humano” significa uma convergência geral dos organismos com as tecnologias, tornando-as indistinguíveis. Cf. PEPPERELL, Robert. The Post-human Condition. Oxford: Intellect, 1995, p. 174 e SANTAELLA, Lúcia. Pós-humano: por quê? Revista da USP. São Paulo, n. 74, p. 126-137. Jun/ago, 2007, p. 133.

[8] SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/9144>. Acesso em 13/05/2018.

[9] SILVA, Tagore Trajado de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/9144>. Acesso em 13/05/2018.

[10] SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/9144>. Acesso em 13/05/2018

[11] BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 88.

[12] SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 50-51.

[13] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 50.

[14] CASTRO, Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, 2ª ed., Editora Forense, 2010: Rio de Janeiro, p. 50.

[15] Sobre o conceito de valor intrínseco, pertinente citar Fernando Araújo em A hora dos direitos dos animais, o qual aponta três imprecisões quanto à noção de valor intrínseco, evidentemente influenciadas pelo pensamento jusnaturalista e que contribuem para uma atribuição radical de consideração ou completa desconsideração de algo ou alguém: a) a ideia de que só merece respeito aquilo que é reconhecido como possuidor de valor intrínseco, ou seja, o valor intrínseco é correlacionado com o nosso reconhecimento e nossa vontade de respeitar; b) o que possui valor intrínseco é superior aquilo que não possui valor intrínseco, tendo este valor meramente instrumental e c) todos que possuem valor intrínseco possuem o mesmo valor intrínseco, ou seja, tem o mesmo peso para todas as pessoas. Essas ambiguidades demonstram que o valor intrínseco que embasa a própria dignidade humana não é algo natural, mas sim construído subjetivamente por quem o gera. É fruto de sua subjetividade. ARAÚJO, Fernando. A Hora do Direito dos Animais. Coimbra: Almedina, 2003.

[16] SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e autonomia de um saber pós-humanista. (2015), p. 2003-2004.

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