Ordem restabelecida

Fim das coercitivas resgata garantias constitucionais, dizem advogados

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15 de junho de 2018, 11h07

O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira (14/6), por 6 votos a 5, que é inconstitucional a condução coercitiva para interrogatórios. Com isso, fica proibida a prática, que vinha sendo utilizada com frequência em investigações, incluindo a operação “lava jato”. A decisão foi elogiada por criminalistas, que consideraram que o fim da condução coercitiva resgata garantias constitucionais.

Autora de uma das ações analisadas, a Ordem dos Advogados do Brasil comemorou a decisão. “Uma vitória para a democracia! Todos nós queremos o combate ao crime e à impunidade, mas nos estritos termos da lei. Não vou me cansar de afirmar que não se combate o crime cometendo outro crime”, diz o presidente do Conselho Federal da OAB, Claudio Lamachia.

“A Constituição brasileira assegura que ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo, além do que, o investigado ou acusado tem o direito de permanecer calado, portanto, a condução coercitiva, por si só, já representa uma violência do Estado contra o cidadão, absolutamente imprópria numa democracia”, afirma o criminalista Luiz Flávio Borges D’Urso, presidente de Honra da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim).

O advogado Maurício Dieter, chefe do Departamento de Amicus Curiae do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), avalia que a decisão garante preceitos fundamentais. “Trata-se de uma vitória importante na tentativa de restaurar os direitos humanos no processo penal brasileiro, corrompidos que estavam por pretensões punitivas que não merecem qualquer elogio”, afirma Dieter, que fez sustentação oral no STF durante o julgamento – a entidade atuou como amicus curiae em uma das ações.

O criminalista Pierpaolo Cruz Bottini afirma que forçar alguém a participar de interrogatório é uma medida descabida. “A condução coercitiva é um contrassenso. Se o depoimento é ato de defesa e o acusado pode inclusive ficar em silêncio, a medida e descabida.” 

Em coluna publicada na ConJur, Bottini já havia defendido o fim da medida, apontando suas ilegalidades. Além disso, ele rebateu os argumentos dos que acreditam que o fim da condução coercitiva aumentará as prisões cautelares. “O fim da condução coercitiva não levará à sua substituição pela prisão temporária, uma vez que os requisitos, as hipóteses de cabimento e as finalidades são distintas”, escreveu.

O criminalista Alberto Zacharias Toron aponta que ao reconhecer a inconstitucionalidade da condução coercitiva, o Supremo Tribunal Federal avança num trabalho que se iniciou com a edição da Súmula Vinculante 14, que considera direito do defensor ter acesso amplo aos elementos de prova.

"É preciso lembrar que, antes desta súmula, era comum realizarem-se prisões buscas e apreensões, e paralelamente se impedia o advogado do investigado de examinar os autos. Ou seja, levava-se adiante uma forma profundamente autoritária de se investigar. E o pretexto era o mesmo, impedir que o advogado orientasse o seu cliente, impedir que o cliente tivesse prévio conhecimento da investigação para supostamente não poder elaborar uma versão defensiva. As conduções coercitivas tinham o mesmíssimo espírito. Portanto, o STF completou um trabalho que iniciou quando editou a SV 14. Pôs fim a uma forma autoritária de se investigar incompatível com o Estado de Direito", afirma.

Para João Paulo Martinelli, professor de Direito Penal do IDP-São Paulo, “a condução coercitiva, da forma como vem sendo aplicada, não possui previsão legal”. “Qualquer medida que restrinja direitos, especialmente a liberdade, precisa ter previsão legal. O voto do ministro Celso de Mello foi magistral, uma aula de processo penal. O ministro lembrou que nosso Código de Processo Penal foi editado na vigência de um regime de exceção, a ditadura Vargas, período em que a Constituição era completamente diferente da atual”, diz.

Martinelli destaca, no entanto, que ainda há outras violações que seguem ocorrendo, “como a prisão preventiva decretada de ofício pelo juiz ou a produção de provas pelo magistrado, quando este faz perguntas às testemunhas, como se fosse parte do processo”.

O criminalista Nelio Machado elogiou o resultado. “A decisão representa o retorno da corte aos princípios universais de respeito às garantias da Constituição, implicando no encerramento do espetáculo medieval das conduções coercitivas.” O advogado João Francisco Neto acredita que em breve outras violações também devem cair. “Cuida-se de notável derrota, dentre outras tantas que estão por vir, daqueles que se empolgam com métodos repressivos inovadores e sem amparo na lei”, avalia.

Professor de Direito Penal e Processual Penal, Daniel Gerber se mostrou espantando com os argumentos apresentados por aqueles que defendem a condução coercitiva para interrogatório. “Definitivamente, estamos em uma cultura punitivista e midiática. O discurso populista superou todas as mínimas garantias que um cidadão deve ter contra o Estado”, diz. Segundo ele, a possibilidade de prender alguém momentaneamente para escutá-lo é insustentável, seja do ponto de vista ético, seja do jurídico.

Prisões cautelares
Vera Chemim
, advogada constitucionalista, faz um alerta. “A decisão poderá acarretar no aumento do número de prisões cautelares, entre elas, a ressurreição da prisão temporária, quando se fizer necessária à investigação ou ao processo penal, a menos que se criem outros mecanismos na seara processual penal que possam viabilizar a investigação e o próprio processo penal.”

Entendimento semelhante é o da criminalista Claudia Vara, do San Juan Araujo Advogados. “Preocupa a postura das instâncias ordinárias a partir de tal decisão, pois não se pode admitir, em um Estado Democrático de Direito, a substituição da condução coercitiva pela prisão cautelar, tendência essa que já foi verificada após a concessão da medida liminar pelo ministro Gilmar Mendes nos autos dessa ação, depois da qual houve expressivo aumento do número de prisões cautelares”, avalia.

Nathalia Rocha, do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, entende que a decisão não representa impunidade e não afetará os depoimentos já colhidos  “Aos que temem a impunidade, é importante que se tenha em vista que as investigações penais não serão prejudicadas, pelo contrário, serão legitimadas pelo respeito a garantias constitucionais, sobretudo ao direito a não autoincriminação.”

Para Daniel Bialski, a decisão encerra uma ilegalidade que, segundo ele, era cometida com o objetivo de forçar uma eventual delação premiada. Everton Seguro reforça esse entendimento: “Acredito que a maioria dos casos na 'lava jato' e outras operações, com uso da condução coercitiva, teve o propósito de intimidar os acusados. Isso não mais ocorrerá após a decisão do STF.”

Miguel Pereira Neto, presidente da Comissão de Estudos sobre Corrupção, Crimes Econômicos, Financeiros e Tributários do Instituto dos Advogados de São Paulo (Iasp), avalia que o Supremo acertou ao considerar inconstitucional o uso das conduções coercitivas, por entender que, da forma como vinham sendo feitas, elas afrontam o Estado de Direito.

“Condução coercitiva é medida drástica e só deveria ser aplicada em situação extrema. No entanto, a Justiça vem lançando mão desse instrumento mesmo quando a parte nunca foi intimada a depor espontaneamente. É uma afronta e excrescência típica de estado de exceção, com exposição midiática degradante, execração pública, violação da liberdade e punição antecipada", afirma.

O criminalista José Roberto Coêlho, sócio do escritório Andre Kehdi & Renato Vieira Advogados, concorda. Para ele a tese defendida pelo ministro Gilmar Mendes é correta. “O direito ao silêncio deve ser visto de forma ampla; é o direito de não autoincriminação. Se o sujeito – suspeito, investigado ou réu – pode ficar em silêncio no ato e até deixar de contribuir com a investigação (se negar a fornecer material grafotécnico para que seja feita perícia, por exemplo), é bastante coerente que ele nem mesmo precise se fazer presente em um ato que ele poderia ficar totalmente em silêncio. Por isso, não há sentido em obrigar investigados ou réus a serem conduzidos de forma coercitiva”, destaca.

* Texto atualizado às 11h40 e às 14h23 do dia 15/6/2018 para acréscimo de informação.

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