Doutrina em crise

"Pós-graduação em Direito deve ter regras transparentes, estáveis e previsíveis"

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12 de junho de 2018, 8h00

Spacca
O professor Otavio Luiz Rodrigues Jr, da Faculdade de Direito da USP, tem se notabilizado por suas críticas ao que chama de crise na doutrina jurídica. Ele costuma citar os exemplos de trabalhos ditos científicos, mas que são feitos apenas para aumentar produtividade: investigam assuntos sem aplicação, desenvolvem teses “inúteis” ou que se valem de citações cruzadas para aumento artificial de impacto.

Por isso seu mandato à frente da Coordenação de Área de Direito na Capes já começa com novidades. Rodrigues foi eleito para o cargo em abril deste ano. Pelas regras da disputa, todos os candidatos devem apresentar suas propostas durante a candidatura. E a do professor da USP foi clara: transparência na regra e consulta aos pares para desenvolver novos critérios de avaliação dos cursos de pós-graduação em Direito.

De início, Rodrigues tornou obrigatória a consulta pública para livros e eventos científicos, criou regras sobre os conflitos de interesses e quer recuperar o fórum de coordenadores de cursos como um “instrumento de formulação de políticas”, conforme conta em entrevista à ConJur.

“Os próximos passos serão a revisão dos critérios de avaliação de livros e tentar dar maior segurança e previsibilidade ao processo de regulação e de avaliação da área de Direito”, afirma.

Desde dezembro de 2017, Otavio Rodrigues é livre-docente de Direito Civil da USP. Sua tese, já celebrada nos círculos acadêmicos, propõe uma recolocação do Direito Civil brasileiro: primeiro ele discute a posição que o Direito Civil assumiu em relação às demais disciplinas jurídicas ao longo dos últimos dois séculos para depois descrever o papel do Direito Civil e defender seu fortalecimento diante do inevitável processo de "constitucionalização"

Leia a entrevista: 

ConJur — O senhor acaba de ser aprovado na livre-docência da Faculdade de Direito da USP e está para publicar a tese em livro. Pode falar um pouco sobre ela? Pelo que foi comentado na época da banca, ela propunha um reposicionamento do Direito Civil brasileiro. É isso mesmo?
Otavio Luiz Rodrigues Jr — A tese é o somatório de uma série de pesquisas e estudos sobre a constitucionalização do Direito Civil, que se iniciaram em 1999 e tiveram sequência em Portugal e na Alemanha, países nos quais fiz estágios pós-doutorais com os catedráticos Jorge Miranda e Reinhard Zimmermann. O grande responsável por essa tese e a pessoa a quem eu pretendi homenagear foi meu orientador no doutorado na Faculdade de Direito da USP, o precocemente falecido professor Antonio Junqueira de Azevedo. Desde meados dos anos 1990 ele se preocupava com o tema. Se estivesse vivo, ele faria sua pergunta de outro modo, com um ar meio irônico, meio inquisitivo, que caracterizava suas arguições: “Qual é sua tese?”

ConJur — E qual é a sua tese?
Otavio Rodrigues — É uma narrativa da trajetória do Direito Civil, especialmente a partir do século XIX, com Savigny e seus sucessores, até um marco fundamental: 15 de janeiro de 1958. Nessa data, o Primeiro Senado do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha proclamou o resultado do caso Lüth. Foi o mais importante julgado da corte, que reconheceu a eficácia indireta dos direitos fundamentais nas relações particulares. Essa narrativa demonstra a centralidade metodológica do Direito Civil para o Direito em geral e sua posição de vanguarda, que não se perdeu com o passar dos anos, a se observar da influência de nomes como Windscheid, Esser, Larenz, Wieacker, Canaris, Bydlinsky e Teubner, para não se referir a nomes mais “contemporâneos” como Zimmermann, Lorenz e von Bar. Escolhi a Alemanha porque o Direito Civil alemão ainda tem unidade e autonomia epistemológica notáveis no marco europeu – e, claro, por uma delimitação de tema, para que uma tese que chegou a quase 700 páginas não se tornasse um texto sem fim.

ConJur — Há uma discussão sobre um “enfraquecimento” do Direito Civil, não?
Otavio Rodrigues
— A tese enfrentou três causas do enfraquecimento do que se poderia denominar de estatuto epistemológico do Direito Civil. Elas deveriam ser analisadas objetivamente e submetidas a testes de adequação e de delimitação. Há, portanto, três partes da tese que se organizam de modo relativamente autônomo, mas cuja leitura em conjunto é necessária:

– A primeira defende a atualidade e a utilidade da “distinção sistemática” (Bydlinsky) ou “grande dicotomia” (Bobbio) do Direito Público e do Direito Privado. O principal adversário dessa separação foi Hans Kelsen e trata-se de um dogma positivista negar a autonomia essencial do Direito Privado. Boa parte do que se escreveu sobre o fim da “distinção sistemática” é resultado do momento histórico dos anos 1930-1960, com os regimes autoritários ou totalitários do período, e não houve uma crítica posterior à recepção desse discurso. O leitor verá que há custos argumentativos pesados para se negar a “distinção sistemática” e que a unificação vem sendo desmentida pela explosão de espaços tipicamente privados em áreas como o Direito de Família (cada vez mais marcado pela autonomia privada e pelo recuo do Estado), o Direito dos Contratos (avançando por setores regulados, graças às novas tecnologias) e mesmo em áreas do Direito Público.

Não se trata aqui da defesa da privatização do Direito. Esse é um discurso dos anos 1990. A tese defende que a publicização faz parte do passado e que os juristas têm de buscar resolver problemas de delimitação e de qualificação das relações jurídicas, ao invés de se ocupar de “escaramuças de fronteira” entre o Direito Público e o Direito Privado.

– Afirmada a “distinção sistemática”, examinei a chamada constitucionalização do Direito Civil. Pretendeu-se chegar a delimitações terminológicas sobre o que é e o que não é constitucionalização do Direito Civil. A grande vantagem dessas delimitações está em evitar, por exemplo, confundir constitucionalização com a supremacia hierárquica das normas constitucionais, a posição de centralidade da Constituição no ordenamento jurídico ou ainda a necessidade de se interpretar o direito ordinário em coerência com as normas e os princípios constitucionais. Documentei a pesquisa com autores nacionais (especialmente privatistas) dos séculos XIX a XXI que afirmavam tais postulados sem maiores reservas. Dito de outro modo, não havia novidade nesse discurso. Propus, ao final da segunda parte, um modelo para a constitucionalização, combinando elementos de autores que escreveram antes de mim, especialmente do Direito Constitucional.

– A terceira parte é uma decorrência das anteriores: se o Direito Privado conserva sua autonomia e a constitucionalização é um fenômeno delimitado, interessa desenvolver um modelo para a face mais saliente dessa última, que é a eficácia dos direitos fundamentais em relação aos particulares.

Há muita literatura sobre o tema no Brasil. A originalidade da tese está em 3 aspectos. O primeiro é uma descrição histórica, analítica e contextual do caso Lüth. Apresento ao leitor de língua portuguesa uma abrangente descrição de quem foram as personagens (Lüth, o autor do boicote ao filme de Veit Harlan, o cineasta nazista), o que estava por trás do julgamento (uma luta entre duas visões sobre a reconstrução alemã) e como o Tribunal Constitucional elaborou sua decisão (em franco respeito aos espaços do Direito Civil).

O segundo aspecto está na apresentação das principais teorias sobre a eficácia, mas recuperando o papel de seus formuladores durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Nipperdey e Dürig, os “pais” da eficácia direta e da eficácia indireta, respectivamente, são apresentados em simultâneo a suas ideias. O papel de Larenz e de Wieacker na construção das cláusulas gerais e do Direito nacional-socialista também foi destacado.

O terceiro e último aspecto é a defesa da eficácia indireta no Brasil, com sua distinção em eficácia indireta forte e eficácia indireta fraca.

ConJur — Uma característica comentada na sua tese é a referência a elementos do cinema, da literatura e da filosofia para discutir o tema. Por que optou por esse caminho?
Otavio Rodrigues
— É um estilo que caracteriza meus livros desde a dissertação de mestrado sobre revisão judicial dos contratos, que editei pela Atlas nos anos 2000. Essa combinação torna a leitura mais agradável, mas tem uma função técnica. A compreensão do caso Lüth é outra quando se sabe que Veit Harlan, o cineasta cujo filme romântico foi boicotado por Erich Lüth, era um dos principais nomes do cinema nazista (ele rodou o último grande filme alemão de guerra quando os russos já estavam às portas da fronteira oriental) e que havia grupos de apoiadores a sua causa em 1957. A polêmica dos universais, envolvendo Guilherme de Ockham e retomada por Umberto Eco em O Nome da Rosa, é central para qualquer debate contemporâneo sobre a disputa entre formalistas e substancialistas no Direito, o que interfere diretamente no debate sobre constitucionalização. Literatura, cinema, teatro e música são ótimos instrumentos para se estudar Direito.

ConJur — O senhor foi escolhido para a Coordenação da Área de Direito da Capes. Como funciona esse processo?
Otavio Rodrigues
— O papel da Capes é o de cuidar do aperfeiçoamento e da formação em pós-graduação no país e regular o modo como as diversas áreas de conhecimento estruturam seus cursos de mestrado e doutorado. No Brasil, a pós-graduação é dividida por áreas (Ciências Biológicas, Engenharia, Direito, entre outras) e cada uma dessas áreas tem um coordenador. Eles são escolhidos por meio de um modelo de regulação com características interessantes, que envolve a participação do governo e da sociedade: os coordenadores de programas de pós-graduação votam em até cinco nomes. Os mais votados são chamados a apresentar currículo e um plano de trabalho para o mandato, de quatro anos. A Diretoria de Avaliação, então, organiza uma lista e a encaminha ao Conselho Superior, que elabora uma lista tríplice e a envia ao presidente da Capes, que escolhe um.

O professor Ingo Wolfgang Sarlet, da PUC do Rio Grande do Sul, e eu tivemos as mais altas votações, na ordem de quase 70% do total. Nossos nomes foram referendados unanimemente pelo Conselho Superior da Capes. Fui honrado com a designação e comecei a executar as primeiras medidas que foram anunciadas aos integrantes do sistema de pós-graduação, ainda na fase da consulta, e depois informada à Capes, no plano de trabalho. Posteriormente, a Capes, por indicação minha, designou o professor Ingo Sarlet como meu adjunto para cursos acadêmicos e a professora Flaviane Barros Bolzan de Morais, da PUC de Minas Gerais e da Universidade Federal de Ouro Preto, para os cursos profissionais. Desde então, tenho recebido o apoio de diversas lideranças da pós-graduação em Direito. O professor Oscar Vilhena, da FGV Direito SP, publicou na ConJur um interessante artigo no qual também expressa seu referendo e sua confiança em meu nome e no dos professores Ingo Sarlet e Flaviane Barros.

ConJur — O que faz um coordenador de área da Capes?
Otavio Rodrigues
— Ele não ocupa um cargo público, não recebe remuneração e não é obrigado a exercer suas funções permanentemente em Brasília, a não ser quando convocado para as reuniões de trabalho na Capes, que geralmente ocorrem todos os meses. A Coordenação é responsável pela regulação dos cursos de pós-graduação strictu sensu em Direito, o que implica:

a) definir critérios de avaliação de livros, periódicos, eventos, atividades de internacionalização e solidariedade social;

b) decidir sobre a criação de novos cursos de pós-graduação (mestrados e doutorados, acadêmicos e profissionais);

c) avaliar os cursos a cada quatro anos e indicar em que posição estão no ranking das pós-graduações. Essa avaliação interfere na continuidade do curso e na distribuição de recursos para fins de internacionalização.

As funções, até por serem regulatórias, implicam atividades de julgamento, de normatização e de execução de políticas para a pós-graduação.

Para fazer isso, ela depende de diretrizes, impulsos e até mesmo de normas feitas pelo Conselho Técnico-Científico da Educação Superior (CTC-ES), pelo Conselho Superior e pela presidência da Capes. Além disso, a Coordenação constitui comissões internas, que auxiliam em suas funções, compostas por docentes vinculados aos programas de pós-graduação, com o objetivo de controlar e qualificar a produção bibliográfica e a produção técnica da área.

ConJur — O que pretende fazer à frente da área de Direito?
Otavio Rodrigues
— Uma das primeiras medidas, que já foi divulgada à Área, é o Comunicado Dire.Capes 1/2018. Em linhas gerais, ele consolida antigas boas práticas da área e introduz algumas mudanças no processo de regulação:

a) a consulta pública aos programas e às sociedades científicas tornou-se obrigatória, a não ser em casos excepcionais, em relação a livros, periódicos e eventos;

b) o fórum de coordenadores foi legitimado como instrumento de formulação de políticas;

c) a participação no processo de decisão é objeto de regras claras para se evitar conflitos de interesses;

d) os canais oficiais de comunicação foram referidos.

Os próximos passos serão a revisão dos atuais critérios de avaliação de livros, periódicos e eventos, além da tentativa de objetivar e dar maior segurança e previsibilidade ao processo de regulação e de avaliação da Área.

A prioridade é a nova regulação dos livros. No dia 13 de junho, em Salvador, ocorrerá o fórum de coordenadores de programas de pós-graduação em Direito e nele farei a apresentação dessa proposta.

ConJur — E já há planos sobre como isso será feito?
Otavio Rodrigues
— Tudo o que pretendo fazer (e já comecei) está na carta-programa enviada aos coordenadores de pós-graduação em Direito e no plano de trabalho apresentado à Capes, nas fases do processo escolha. Essas ações foram objeto de debate e reflexão com muitos colegas, em particular com os professores Ingo Sarlet e Flaviane Bolzan de Morais.

Tenho a ventura de contar com uma área amadurecida e com larga tradição de coordenadores de alto nível. Não tenho pretensão de fazer tabula rasa dessa bela tradição, mas, é claro, tenho um programa – que é público – e saberei implementá-lo. De modo especial após ter sido eleito para o CTC-ES. Há 17 anos o Direito não possuía assento nesse conselho. Terei condições mais favoráveis para expor as peculiaridades da Área.

ConJur — Alguns desses programas envolvem a criação de novas regras?
Otavio Rodrigues — Os influxos e as expectativas da área e de seus integrantes devem sempre dialogar com as diretrizes da presidência da Capes, de seu Conselho Superior, de sua Diretoria de Avaliação e do CTC-ES. Não adianta formular políticas e estabelecer regras para a área se elas ignorarem as diretrizes. Essa é uma dialética permanente e que nunca se mostrou fácil, até pelas especificidades do Direito em relação a outras áreas. O equilíbrio é mais um dos pontos a ser alcançado, especialmente agora que houve uma ampla renovação do corpo de coordenadores de área e, por consequência, do CTC-ES, além da substituição da titular da Diretoria de Avaliação, agora ocupada pela professora Sônia Báo, da Universidade de Brasília.

Tudo isso implica também mudanças de ideias e de visões sobre a pós-graduação. Some-se ao fato da existência de um grupo de trabalho na Capes encarregado de fazer um diagnóstico da pós-graduação brasileira e propor mudanças nos critérios de avaliação. Temos um período avaliativo em curso, iniciado em 2017, e há grande expectativa por mudanças.

ConJur — Os cursos de mestrado e doutorado em Direito têm se voltado mais ao mercado do que à pesquisa e à formação de docentes?
Otavio Rodrigues
— A pós-graduação tem duas funções centrais: produzir conhecimento e formar docentes e pesquisadores. Evidentemente, a extensão e outras funções podem ser associadas à pós-graduação, mas ela não subsistirá se fracassar na renovação dos quadros acadêmicos e no avanço da ciência. Os mestrados e doutorados profissionais, criações relativamente recentes da Capes, ainda estão em busca de um perfil específico e de critérios próprios de avaliação. Acredito que eles vão atrair um público em busca de uma formação que conjugue a experiência da prática com o estado da arte de algumas áreas do conhecimento. Por isso a abertura para que parte do corpo docente seja formada por profissionais sem titulação acadêmica necessária (doutorado), mas com produção técnica e trajetória profissional reconhecida.

ConJur — Essa é uma prioridade para a sua gestão?
Otavio Rodrigues
— Preocupa-me a baixa oferta de cursos de mestrado e doutorado em certas áreas. É minha intenção levantar os dados a respeito para que se tenha uma dimensão exata dessa questão, o que terá impacto direto no número de docentes e na formação das futuras gerações nas graduações em Direito. Para fazer esse estudo, será criada uma Comissão de Estudos, Planejamento e Estatísticas na Área do Direito. É fundamental ter uma avaliação quantitativa desses elementos para que as políticas regulatórias não sejam fruto de impressões e sim baseadas em dados fiáveis. Há colegas com grande experiência nesse campo, a exemplo do professor Alexandre Veronese, da Universidade de Brasília. Aquilo que não pode ser mensurado não pode ser controlado.

ConJur — O Brasil possui mestres e doutores demais?
Otavio Rodrigues
— A grande expansão de cursos de pós-graduação strictu sensu no Brasil nos últimos 10 anos ainda não conseguiu diminuir a enorme distância aos países capitalistas centrais. Segundo dados do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos apresentados em 2016 na 68ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), entre 1996 e 2014, o número de doutores no Brasil cresceu 486% e o de mestres, 379%. Mesmo assim, ainda estávamos dentre as três piores médias da OCDE – de acordo com informações da OCDE, em 2013, o Brasil tinha 7,6 doutores para cada 100 mil habitantes. Em termos comparativos, vejam-se alguns índices de doutores por 100 mil habitantes:

a) Eslovênia (56,5);
b) Reino Unidos da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte (41);
c) Portugal (39,7);
d) Alemanha (34,4);
e) Coréia do Sul (25,1);
f) Estados Unidos da América (20,6);
g) Hungria (10,8).

Abaixo do Brasil estavam México (4,2) e Chile (3,4).

Para além dessa assimetria do Brasil com o exterior, preocupa-me (e muito) a desigualdade regional. Um dos compromissos de meu mandato é a criação de condições para o desenvolvimento da pós-graduação em Direito no Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país. Especialmente a Região Norte, que merece atenções peculiares e deve contar com a mais ampla solidariedade regional.

ConJur — Uma de suas colunas na ConJur comentou a disputa entre fordistas e renascentistas da produção acadêmica. Seriam os produtores de artigos em série contra os que se detêm mais numa pesquisa. É uma crítica às revistas técnicas de Direito?
Otavio Rodrigues
— Os periódicos ocupam a centralidade da política de qualificação e de avaliação da pós-graduação no mundo há, no mínimo, uma década. A partir de um modelo desenvolvido nas ciências exatas e nas biológicas, o periódico científico tornou-se o principal parâmetro de comparação da produção científica no mundo. Esse fenômeno trouxe consigo alguns efeitos colaterais: o inglês tornou-se a língua de referência; o livro perdeu grande importância no sistema; houve uma explosão na produção de artigos científicos, quase sempre desacompanhada da qualidade.

Nós que atuamos nas ciências humanas em sentido lato recebemos com maior força esse impacto. Em relação ao Direito, tenho um compromisso com a valorização do livro e vou começar esse processo com a discussão dos critérios de avaliação por meio de uma consulta pública. Diferentemente do que ocorreu com a avaliação de periódicos, os livros precisam de mudanças radicais em seu processo avaliativo. Mas não posso ignorar a tendência em direcionar a produção acadêmica para periódicos. Meu compromisso, para além da estabilidade e da previsibilidade das regras, está em ser transparente com a Área do Direito: não ocorrerá de a produção em livros ser avaliada de um modo e, no período da quadrienal, os livros não receberem todos os pontos que lhes forem conferidos pelas regras anteriormente postas. A Área do Direito só quer conhecer a regra do jogo e não ser surpreendida com sua não aplicação posteriormente. Vou contar com a enorme experiência da professora Claudia Lima Marques, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

ConJur — Alguns professores vêm criticando o que chamam de crise na doutrina. Falam de artigos que consideram inócuos, do fatiamento de pesquisas para inflar a produtividade e até de práticas pouco éticas, como as citações cruzadas. Concorda com essa crítica?
Otavio Rodrigues
— Com a vitória do que eu denominei de fordistas sobre os renascentistas nas universidades, a produção de artigos tornou-se um fim em si mesmo. Já se discute se o artigo como expressão da pesquisa não está com os dias contados por causa das fraudes: inflação de impacto com citações cruzadas artificiais, impulsionadas por editores pouco honestos; artigos sem qualquer utilidade e outros problemas. Esse debate não é exclusivo do Direito e deve ser posto em causa nos fóruns da pós-graduação.

O artigo científico nasceu para substituir a forma com que os pesquisadores divulgaram suas investigações: a carta. Era por correspondências que um cientista comunicava a seus pares haver descoberto um novo elemento químico, resolvido um teorema ou desenvolvido uma nova teoria. As cartas eram respondidas com informações de que o destinatário também avançava naquele setor ou que elas serviam para que as descobertas fossem testadas ou submetidas à crítica dos pares. Há uma célebre polêmica entre Isaac Newton e Gottfried Wilhelm Leibniz sobre a paternidade do cálculo infinitesimal. Eles desenvolveram os conceitos de derivada e integral, que são fundamentais para a disciplina de Cálculo. Os dois passaram a disputar quem foi o verdadeiro criador da teoria, que já tinha sido discutida por eles em cartas. Newton acusava Leibniz de ter se apropriado de parte de suas ideias.

ConJur — Recentemente o Departamento de Direito Civil da USP e a Rede de Direito Civil Contemporâneo organizaram um evento com a universidade Humboldt, da Alemanha. Um tema comum foi a recepção malfeita de conceitos jurídicos alemães. Qual a sua visão a respeito?
Otavio Rodrigues
— Os problemas da má recepção tem sido objeto de meus artigos e minhas colunas há bastante tempo. Publiquei um artigo sobre a influência do Código Civil e do Direito Civil alemão no Brasil, no qual tratei detidamente desse tópico. Na Revista de Direito Civil Contemporâneo, há artigos recentes, em português ou traduzidos para nossa língua, dos alemães Benjamin Herzog e Jan Peter Schmidt, que descrevem como isso ocorreu e quais os riscos dessa recepção incorreta de institutos estrangeiros no país.

ConJur — O que isso quer dizer? Devemos parar de “traduzir” conceitos jurídicos estrangeiros?
Otavio Rodrigues
— Alguém pouco atento ou com intenções pouco honestas poderá confundir essas críticas como uma defesa da “tropicalização” do Direito ou de uma xenofobia cultural. Evidentemente, não se trata disso. A recepção e os legal transplants são naturais na circulação de ideias em uma vida universitária cada vez mais internacionalizada. Fechar-se ao Direito estrangeiro é inútil e uma expressão do atraso. O que defendo é uma assimilação crítica da doutrina e das teorias estrangeiras. E isso passa necessariamente por método; conhecimento das circunstâncias históricas, ideológicas e circunstanciais da teoria e seus autores; a identificação de semelhanças e diferenças do ordenamento nacional em relação ao ordenamento estrangeiro. Em minha tese de livre-docência fui enfático em citar o exemplo de autores como Franz Wieacker e Karl Larenz, cujas teorias foram recepcionadas acriticamente no Brasil. Os efeitos disso já são sentidos nos abusos cometidos em nome da boa-fé objetiva. Pode-se olhar para o lado e encontrar problemas similares no Direito Penal e no Direito Constitucional.

ConJur — Qual o próximo passo?
Otavio Rodrigues
— O que falta agora é a voz da doutrina reverberar nos tribunais. Um exemplo de como o diálogo entre a doutrina e a jurisprudência pode ser bem sucedido é o REsp 1.581.505, julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça em agosto de 2016. Nesse acórdão, o ministro Antonio Carlos Ferreira, relator, procedeu a uma genealogia teórica do adimplemento substancial e pôs em dúvida algumas “certezas inconvenientes” de parte da doutrina, como se a substantial performance tivesse sido concebida para atender à boa-fé objetiva em sua formulação originária na Inglaterra do século XVIII. Recomendo a leitura da fundamentação desse voto, que foi objeto de comentários no volume 9 da Revista de Direito Civil Contemporâneo, de autoria de Augusto Cézar Lukascheck Prado.

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