Contas à Vista

Orçamento republicano, justiça distributiva e a liberdade igual

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

12 de junho de 2018, 8h00

Spacca
Costumo dizer que o orçamento é um sistema de vasos comunicantes, pois alterar um item implicará necessariamente em movimentar outro. Isso vale tanto para o sistema público como para o privado. Basta o leitor olhar para seu próprio orçamento familiar — criadas novas despesas, ou aumenta sua receita, ou aumenta sua dívida, ou cancela outras despesas antes estabelecidas. O orçamento, público ou privado, é um sistema de organização desse conjunto de fatores. É claro que as normas a que o orçamento familiar está vinculado são diversas daquelas do público — poderia gastar rios de tinta descrevendo as diferenças, mas não é meu intuito nesta coluna; qualquer bom manual de Direito Financeiro é capaz de apontá-las.

O orçamento público é o local, por excelência, no qual o governo realiza a justiça distributiva, isto é, aquela na qual se redistribui as riquezas de uma sociedade. Trata-se do ambiente no qual o governo faz as escolhas trágicas de distribuição dos recursos arrecadados[1]. Nele não se realiza a justiça comutativa, que é feita primordialmente perante o Poder Judiciário — através da lógica da comutatividade, isto é, dando a cada qual o que é seu. Se um inquilino deixar de pagar o aluguel devido, o proprietário do imóvel poderá ingressar em juízo pedindo seu pagamento, além de despejar o mau pagador — isso faz parte da justiça comutativa.

É possível ao Poder Judiciário realizar justiça distributiva, mas isso é raro. Busca-se justiça distributiva na ADI 5.595, de relatoria do ministro Lewandowski, através da qual se tenta recompor o valor inicial das verbas que foram congelas por 20 anos pela Emenda Constitucional 95. Isso já foi comentado em diversas colunas[2]. Porém, como padrão, o Poder Judiciário realiza justiça comutativa.

Afirma-se, portanto, que o orçamento é o lócus por excelência da justiça distributiva, pois teoricamente arrecada-se de todos em prol de todos. Já imaginaram se fosse comutativo? Quem pagasse mais tributos receberia mais serviços públicos, e quem menos pagasse receberia menos — não lhes parece esdrúxulo?

Pode-se definir como sendo republicano o orçamento público no qual se arrecade mais de quem ganha mais, ou de quem possui mais bens, e gaste mais com quem mais necessita dos serviços públicos que são concretizados através de gastos públicos. Diz-se republicano, pois implementa o princípio da isonomia, sem privilégios a quem quer que seja, tratando desigualmente aos desiguais, na medida de sua desigualdade, visando reduzi-las, e não aprofundá-las, e respeitando suas diferenças. Isso demonstra uma combinação entre a capacidade contributiva, noção bastante conhecida dos tributaristas, que aponta para a correlação ideal entre a cobrança de tributos sobre quem ganha mais ou possui mais bens, e a capacidade receptiva, conceito cunhado por Regis de Oliveira, que indica a correlação ideal entre a necessidade de cada qual em receber os serviços públicos que são prestados pelo governo. Exemplificando esse segundo conceito: quem possui mais necessidade na ampliação dos serviços públicos de saúde é quem pode pagar por um plano privado ou quem está à margem da possibilidade de realizar esse gasto individual? O conceito de capacidade receptiva, próprio do Direito Financeiro, é bastante interessante para se compreender o mecanismo redistributivo do orçamento, e imprescindível para a noção de orçamento republicano.

Será que temos um orçamento republicano no Brasil atual? Seguramente, não. Atualmente, arrecada-se mais de quem ganha menos e se gasta mais com quem ganha ou possui mais — e isso pode ser provado através da leitura de documentos oficiais que demonstram, de forma isolada, de quem mais se arrecada e com quem mais se gasta no Brasil. A leitura conjunta desses documentos é que nos leva às conclusões abaixo.

Verifica-se que a arrecadação é muito mais concentrada nos tributos incidentes sobre o consumo, o que faz um quilo de feijão ter a mesma carga tributária para o rico e para o pobre, embora isso corresponda a diferentes percentuais da renda individual de um e de outro, sendo muito baixa a possibilidade de se aferir a capacidade contributiva sobre o consumo. No Brasil, 17% do PIB é arrecadado sobre essa base impositiva. Os tributos sobre a renda somam 6% do PIB e sobre a propriedade apenas 1,5%. Para se chegar à carga tributária total, deve-se ainda acrescer os tributos sobre a folha de salários, que alcançam 8,5% do PIB[3]. Isso aponta para uma arrecadação pouco republicana, pois se arrecada mais sem aferir a capacidade contributiva dos indivíduos.

Por outro lado, um dos principais itens de gastos é o pagamento dos encargos da dívida pública (cerca de 9% do PIB, em 2015)[4], o que demonstra remuneração sobre o capital de quem tem dinheiro para emprestar ao governo — que, seguramente, não engloba os mais pobres de nossa sociedade. Outros gastos relevantes são com a massa salarial dos servidores públicos (cerca de 13% do PIB)[5], além de gastos previdenciários (gerais e setoriais, que alcançam cerca de 11% do PIB)[6]. O dispêndio verdadeiramente social não passa de uma pequena fração, sendo que o Bolsa Família não chega a 0,5% do PIB[7]. Tudo indica que a capacidade receptiva não está sendo cumprida pelo sistema de gastos públicos no Brasil.

Existem ainda as renúncias fiscais — isenções, reduções de base de cálculo, imunidades e uma infinidade de instrumentos financeiros semelhantes —, muito mais difíceis de serem quantificadas, pois os valores não ingressam no orçamento. Existem incontáveis números oficiais mensurando essa renúncia, mas confesso desconfiar de todos em razão de não existir um conceito preciso sobre esse mecanismo, bem como pela carência de dados nacionais — quem mensura a renúncia fiscal que eventualmente seja concedida pela prefeitura de Juruti, no estado do Pará? Será que nossa contabilidade nacional apura isso com precisão? Tenho sinceras dúvidas.

É no balanço entre arrecadação, gastos e renúncias, demonstrado pelos (quase impenetráveis) relatórios de execução orçamentária, que se pode identificar se financeiramente o Brasil pode ser classificado como uma república, na qual se arrecada de quem ganha ou possui mais, e se gasta com os setores mais vulneráveis de nossa sociedade. Pelas breves linhas acima, tudo indica que nosso orçamento não é republicano.

Com isso, verifica-se o descumprimento do princípio constitucional que baliza a existência de nosso país e pelo qual nos reunimos em sociedade, qual seja, a “redução das desigualdades sociais e eliminação da pobreza”, previsto no artigo 3º, III, da Constituição.

Algum leitor mais afoito poderia perguntar: então isso pode ser submetido ao STF através de uma ação direta de inconstitucionalidade? Penso que não. Decisões macropolíticas não são subsumíveis ao Poder Judiciário, sendo matéria atinente aos Poderes que são periodicamente eleitos: Executivo e Legislativo. Exatamente por esse motivo que se deve ter muita atenção às regras eleitorais, sendo importantíssimo, nesse contexto, o estudo do Direito Financeiro Eleitoral[8], com os olhos voltados não apenas para o preenchimento dos cargos de presidente e governador, mas também para o Legislativo, elemento central do princípio da legalidade, instrumento imprescindível tanto para a arrecadação (artigo 150, I, CF) quanto para o gasto (artigo 167, I, CF).

O fato é que, da forma que segue, continuaremos sendo um dos países mais desiguais do mundo, não permitindo que ricos e pobres tenham as mesmas oportunidades em nossa sociedade. Sem iguais oportunidades para a criança que nasça em um berço rico ou pobre, como reduzir a estratificação socioeconômica em nosso país? Isso beneficia a quem? Estou seguro de que a desigualdade social e a pobreza são alguns dos principais problemas em nosso país — é muito difícil prosperar um sistema moderno de capitalismo com esse tipo de entraves.

Ousando contraditar Amartya Sen, não é através da liberdade que se chegará à igualdade, mas, sim, pela igualdade de oportunidades é que as pessoas poderão ter a chance de serem livres. E isso não se conseguirá sem a efetivação de um orçamento público que seja republicano. Aqui se insere o conceito de liberdade igual, pois só os iguais podem ser livres.

***

As linhas aqui escritas são um spoiler, pois resumem em poucas palavras as conclusões a que cheguei na tese que defendi para a cadeira de professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, que em breve chegará às livrarias, através da Editora Fórum. O título é Orçamento Republicano e Liberdade Igual – Ensaio sobre Direito Financeiro, República e Direitos Fundamentais no Brasil, com prefácio de Heleno Taveira Torres e apresentação de Regis Fernandes de Oliveira — ambos professores titulares de Direito Financeiro da USP, que muito me honraram com suas manifestações e aos quais penhoradamente agradeço.

Quem tiver interesse no tema coloque em seu radar.


[1] Sobre escolhas trágicas, ver minhas colunas Você nem sabe, mas vive entre a reserva do possível e as escolhas trágicas e Os direitos sociais, o limite para as escolhas trágicas e o Supremo.
[2] Cito apenas algumas minhas (Direito à saúde pública vem sendo atacado pelo Direito Financeiro e STF deve estar alerta para o financiamento da saúde pública no Brasil), de Élida Graziane Pinto (Piso de custeio é ponto de partida para aprimorar saúde pública STF reconhece o "direito a ter o custeio adequado de direitos" na ADI 5.59) e de Ingo Sarlet (ADI 5.595 e a garantia do custeio dos direitos – uma vitória de Pirro?), dentre várias outras.
[3] Relatório Carga Tributária do Brasil 2015 (análise por tributo e base de incidência). Receita Federal do Brasil, 2016. Disponível em: <http://idg.receita.fazenda.gov.br/dados/receitadata/estudos-e-tributarios-e-aduaneiros/estudos-e-estatisticas/carga-tributaria-no-brasil/ctb-2015.pdf>.
[4] Relatório do Banco Mundial intitulado Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil: http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf. Pág. 26.
[5] Relatório do Banco Mundial intitulado Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil: http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf. Pág. 41.
[6] Relatório do Banco Mundial intitulado Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil: http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf. Pág. 70.
[7] Tratei desse assunto anteriormente (A DRU, os direitos sociais e o pagamento dos juros da dívida). Ver relatório do Banco Mundial intitulado Análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil: http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf. Pág. 93.
[8] Ver, dentre outras: O financiamento de campanhas eleitorais e o risco café society.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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