Constituição e Poder

Pós-verdade processual está na origem do voluntarismo judicial

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

11 de junho de 2018, 10h52

Spacca
Irretocável a lição do Néviton Guedes, em sua coluna "Constituição e Poder" de 4 de junho: o protagonismo judicial está causando e causará uma profunda crise de legitimidade do Poder Judiciário.

A situação é agravada porque esse protagonismo vem, em regra, acompanhado de um voluntarismo judicial (ainda que bem intencionado) cujas raízes remontam à virada niilista no pensamento jusfilosófico e, mais contemporaneamente, ao que se acostumou chamar de era da “pós-verdade”.

Em rápida pesquisa, constata-se que “pós-verdade” foi a palavra do ano de 2016 em pesquisa da Universidade de Oxford e, resumidamente, é entendida como substantivo que “diz respeito a circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos importância do que crenças pessoais”[1].

O que importa é a narrativa, ainda que sem muita consistência lógica, desde que seja possível conectar elementos materiais minimamente coerentes para formar a convicção. A pós-verdade, assim, é marcada por grandes narrativas e desprezo pela realidade.

E é exatamente isso que vem acontecendo nas lides forenses: decisões e mais decisões em que as crenças pessoais têm maior importância que os fatos objetivos.

Retoma-se a tópica jurídica em sua versão mais rudimentar, combinada com crenças típicas do que se pode chamar de “pós-verdade processual”.

E isso é um perigo para a legitimidade do Poder Judiciário, que, entrando de maneira voluntarista em outros campos do conhecimento humano, como a política, corre o risco de “jogar com as mesmas regras” da política e ser jogado na mesma vala comum de descrença com as instituições modernas.

Na coluna de hoje, trarei alguns elementos para que se possa compreender a base filosófica desse “ambiente niilista”, bem como apontando seus elos com o voluntarismo judicial e os danos atuais e futuros que podem acarretar ao Direito.

A história do pensamento filosófico ocidental é marcada pela crença na leitura objetivista que remonta aos antigos gregos e propõe que a linguagem pode revelar essência das coisas. As palavras atuam como espelho da realidade (direta ou indiretamente) e não são mera imitação da natureza nem mesmo é aceitável dar qualquer nome para os objetos (nominalismo arbitrário), conforme se infere da leitura de Platão e, posteriormente, Aristóteles.

Essa é a base da “semântica realista” que aparece na fórmula aristotélica da ideia de verdade: veritas est adaequatio intellectus ad rem, ou seja, a verdade se manifesta na adequação entre o pensamento e/ou enunciado e as coisas como elas são, o mundo como ele é[2]. A exatidão nessa correspondência é a fiadora do verdadeiro.

Note-se que nessa primeira acepção o mundo e os entes que nele estão existem de maneira independente da razão humana (aspecto objetivo) e dão sustentáculo à linguagem e à verdade (revelam a “essência”), daí porque esse paradigma é conhecido como paradigma do “ser” — o “ser” é, o “não ser” “não é”, na equação de Parmênides.

Eis o fundamento do conceito de “verdade material” trazido por inúmeros manuais tradicionais, especialmente os de processo penal, quando reproduzem a mesma fórmula aristotélica: o processo (tal qual o pensamento do magistrado) deve expressar a essência da realidade, a narrativa deve revelar os fatos.

Superando esse modelo, a modernidade cartesiana/kantiana eleva o sujeito racional ao lugar de fundamento e garante da noção de verdade. Ou seja, o método científico e o primado das evidências racionalmente aferidas levará ao conhecimento verdadeiro, à elucidação da consciência[3]. Eis o paradigma do sujeito.

Na explicação de Heidegger, o “mundo real” e a “consciência” formam o fundamento metafísico (lugar da verdade) dos paradigmas do “ser” e do “sujeito”, respectivamente, e é justamente contra a crença nesse tipo de fundamento que Nietzsche se insurge[4].

Nietzsche desconstrói esse “critério de verdade” ao propor que ele é apenas um lugar absoluto e ideal inventado pelos filósofos com o objetivo de servir de parâmetro para regular a realidade e as condutas humanas. Para ele, a ingenuidade e mesmo a idiossincrasia antropocêntrica era entender como absoluto um “lugar da verdade” que, em realidade, era inseparável e condicionado/contaminado pelas imperfeições do mundo vivido[5].

Para ele, a fé na possibilidade de eleger um critério absoluto de verdade e, a partir dele, criar um mundo de sentido fictício demonstra a “vontade de potência” humana, sendo que o niilismo é a alternativa para superá-la[6].

Nessa perspectiva, o niilismo se apresenta como a constatação filosófica de que não há conhecimento verdadeiro a partir de um fundamento idealizado, até porque na base desse processo não há mais o critério absoluto de verdade[7].

De acordo com o pensamento niilista, sem esse critério de verdade desaparece a necessidade de valores superiores que expressam o certo ou errado, o verdadeiro e o falso.

Certamente, o pensamento não fundacionista de Nietzsche propõe alternativas para que a humanidade possa conviver com essa situação filosófica. Uma delas é que a filosofia deve estar voltada à ação. Outra é a substituição da noção de verdadeiro-falso pela de avaliação afirmativa (que faz triunfar a vida) ou de avaliação reativa. Todavia, é inegável que tal concepção está na origem do relativismo irracionalista.

Em consequência, restaria à humanidade conviver com os diferentes jogos de interpretações próprios da chamada era da “pós-verdade”. E é isso que ocorre: cada um elege seu critério de verdade e age de acordo com ele. Hiperindividualismo interpretativo ou mesmo vontade de potência individual.

Em contraponto, mesmo um hermeneuta da envergadura de Vattimo já alertou que a crença nietzschiana de que não existem fatos, apenas interpretações, é uma interpretação, e não um fato[8]. E levar a sério a filosofia de Nietzsche requer enfrentar esse aparente paradoxo, pois o discurso filosófico não pode recair no relativismo irracionalista e se confundir com o discurso poético-literário[9].

O mesmo se pode dizer do Direito: o discurso jurídico não pode se confundir com o discurso poético-literário, onde uma narrativa pode condenar alguém a indenizar outrem ou, em caso extremo, condenar um cidadão à prisão.

Reconhecer que a clássica noção de verdade real no processo está ultrapassada não é dar lugar à pós-verdade processual e sua vontade de potencia individualista, típica do voluntarismo autoritário.

Os riscos para o Direito e para a democracia são enormes, dentre eles a formação de uma quadro mental paranoico que instaura o primado da hipótese sobre os fatos, conforme sempre nos adverte processualistas do porte de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho e Franco Cordero (sobre o tema, já escrevi há alguns anos neste mesmo espaço).

Isso significa que é preciso avançar nos mecanismos teóricos para controlar e/ou eliminar a pós-verdade processual sem recorrer ao retrocesso da doutrina da verdade real, tema para as próximas colunas.


[1] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2016/11/16/O-que-%C3%A9-%E2%80%98p%C3%B3s-verdade%E2%80%99-a-palavra-do-ano-segundo-a-Universidade-de-Oxford. Acesso em 10/6/2018.
[2] HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo: parte 1. 11. ed. Trad. Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 282.
[3] Cf. APEL, Karl-Otto. Transformação da filosofia I: filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. Trad. Paulo Astor Soethe. São Paulo: Loyola, 2000. v. 1., p. 131-137.
[4] HEIDEGGER, Martin. Il nichilismo europeo. A cura di Franco Volpi. Milano: Adelphi, 2006. (col. Piccola Biblioteca, n. 498), p. 33, p. 204-208.
[5] NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência: parte 2. Trad. Mário D. Ferreira Santos. São Paulo: Scala, [2006?]. p. 251-252.
[6] NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência: parte 1. Trad. Mário D. Ferreira Santos. São Paulo: Scala, [2006?]. p. 96.
[7] VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade: niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes: 2002, p. 04.
[8] Idem.
[9] VATTIMO, Gianni. La reconstrucción de la racionalidad. In: _____. (comp.). Hermenêutica y racionalidad. Trad. Santiago Perea Latorre. Santa Fé de Bogotá: Norma, 1994. p. 142.

Autores

  • é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli studi Roma Tre. É ex-presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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