Embargos Culturais

A pluralização dos substantivos abstratos e o poder dos juristas, gramáticos e teólogos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

10 de junho de 2018, 8h00

Spacca
Juristas, teólogos e gramáticos compartilham universo comum de dúvidas. As soluções detereminam as perguntas. A aplicabilidade prática aproxima-se do dado flutuante no espaço inexistente, ou seja, do nada. Desconheço jurista, teólogo ou gramático que em face de uma pergunta ou provocação reconheça que desconhece a solução. Juristas sempre têm teorias subjetivas, ecléticas e mistas. Teólogos contam com explicações filológicas, históricas e sistemáticas, com o problema do hebraico, com a influência do aramaico no grego ou com as soluções simplificadas da versão do São Jerônimo. Gramáticos contam com advérbios anguladores, de afirmação e negação, bem como de inclusão e de exclusão. Taxinomia é a palavra de ordem. Todos queremos classificar e definir. Pode ser um modo de apropriação da realidade.

A obsessão classificatória é patológica. Um filósofo francês iluminadíssimo, falecido prematuramente em junho de 1984, motejou dessa obsessão racionalista e com base num conto do mais conhecido prosador argentino, referiu-se a uma certa enciclopédia chinesa, na qual os animais eram atrabilhariamente classificados[1]. Foucault lembrou do conto de Jorge Luís Borges, cuja classificação chinesa era o ponto de partida. Nessa categorização havia animais pertencentes ao imperador, animais embalsamados, animais domesticados, leitões, sereias, animais fabulosos, cães em liberdade, animais desenhados com um pincel muito fino de pêlo de camelo, entre tantas outras excentricidades que nossa realidade não compreende.

A obsessão classificatória, típica de juristas, teólogos e gramáticos, alimenta o formalismo e o cânone dos manuais. Provavelmente o mais iconoclasta de nossos escritores ilustrou esse estado de aporia intelectual com a figura do Aldrovando Cantagalo, um curioso exemplo de uma galeria de personagens fascinantes, que faz estações também em Emília, Pedrinho e Narizinho. De um modo muito singular, Aldrovando Cantagalo foi o mote literário com o qual Monteiro Lobato também criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático putativo do conto “O Colocador de Pronomes”[2].

Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de Jacó, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem do Antigo Testamento.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um erro na colocação de pronomes: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que freudianamente passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia.

Em relação a esses problemas (ou falsos problemas) questionei-me recentemente sobre a possibilidade de pluralização dos substantivos chamados abstratos. Objetivamente, a questão consiste em decifrar se o correto seria grafar “saudade” ou “saudades”. Parece-me que os aldrovandos cantagalos preferem “saudade” em sua forma singular. Segue-se regra que inviabiliza pluralização dos abstratos, justamente porque substantivos abstratos referem-se a circunstâncias incontáveis. Substantivos abstratos indicam o que não tem existência própria ou independente, e de fato seria difícil conta-los. Não se aplicaria regra geral, de acordo com a qual o plural dos substantivos forma-se tão somente como acréscimo de um “s”, aos que terminam com vogal.

Assim, dada a impossibilidade da flexão em relação a sensações não passíveis de numeração, não se poderia sentir saudades, ou sofrer com ciúmes ou ter boas lembranças. A saudade, que Olavo Bilac definia como a “presença dos ausentes”, no singular, foi pluralizada por Machado de Assis, que em carta a Joaquim Nabuco lembrou que “saudades nascem da distância e do tempo”. Em Esaú e Jacó, a personagem “sorria para sacudir tristezas, e deixou-se estar a matar saudades”. Dom Casmurro, inventado por Machado, lembrou que “a saudade é isto mesmo; é o passar e repassar das memórias antigas”. Para Machado a saudade (no singular) é também o “desgosto mortal do abandono”.

As premissas que os gramáticos elegeram para vedar a pluralização de substantivos abstratos de algum modo lembram as premissas que juristas e teólogos escolhem para justificar suas verdades. A verdade, assim, é sempre contida na premissa, a quem apenas quem detém autoridade seria autorizado definir. Nada mais foucaultiano. Se válido o raciocínio, espanta-se com a relatividade das verdades jurídicas, teológicas e gramaticais.

Talvez uma saudade que prescinda de simetria ou de reciprocidade não seja verdadeira e acessível no plano do sentimento. Não é real. Por isso, soma-se a uma saudade, a saudade contida também no outro, o que resulta na beleza eufônica e sintática que qualifica a dor e a delícia de sentir “saudades”.

[1] Michel Foucault: As Palavras e as Coisas, São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradução de Salma Tannus Muchail.

[2] Tratei de Aldrovando Gantalo neste Conjur, em coluna de 2016.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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