Observatório Constitucional

Congresso reage às decisões monocráticas de ministros do Supremo em ADIs

Autor

  • José dos Santos Carvalho Filho

    é doutorando em Direito Público pela Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França) professor de Processo Constitucional da Escola de Direito de Brasília (EDB-IDP) e chefe de gabinete de ministro do Supremo Tribunal Federal.

9 de junho de 2018, 8h00

Medidas cautelares deferidas monocraticamente por relatores de processos de controle abstrato de constitucionalidade, especialmente em ações diretas de inconstitucionalidade (ADI), consubstanciam grave problema no sistema brasileiro de Justiça constitucional.

Com efeito, o art. 97 da Constituição de 1988 estabelece a cláusula de full Court, ou full bench, segundo a qual os tribunais somente podem declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público por meio de voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial.

Essa determinação é reproduzida em vários dispositivos da Lei 9.868/1999 (artigos 10, 12-F, 21 e 23) e no art. 5° da Lei 9.882/1999,[1] que se aplicam tanto ao julgamento definitivo de mérito quanto à concessão de liminares.

Especialmente no que diz respeito às medidas cautelares, a legislação estabelece exceções: i) o art. 10 da Lei 9.868/1999 ressalva a possibilidade de concessão de liminares durante o período de recesso da corte, o que se opera mediante decisão monocrática do presidente do órgão, nos termos do art. 13, VIII, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal;[2] e ii) o art. 5°, § 1°, da Lei 9.882/1999 estabelece que o relator da arguição de preceito fundamental, em caso de extrema urgência ou perigo de lesão grave, poderá conceder medida liminar, ad referendum do Tribunal Pleno.

Embora o mencionado art. 5°, § 1°, da Lei 9.882/1999 refira-se à arguição de descumprimento de preceito fundamental, os ministros do Supremo Tribunal Federal têm invocado o dispositivo, por analogia, para deferir monocraticamente medidas cautelares em ações diretas de inconstitucionalidade.

Em estudo publicado no Observatório Constitucional,[3] os professores Gilmar Mendes e André Rufino relatam que o fenômeno se tornou mais perceptível a partir de 2009, quando a prática dessas decisões passou a ser recorrente.[4]

A doutrina, desde então, critica avidamente esse tipo de decisão. Lenio Streck[5] ilustra a problemática mencionando o caso dos royalties[6]: decisão monocrática do STF, concedida fora do período de recesso, suspendeu a aplicação de lei promulgada após a derrubada de veto do presidente da República. Essa decisão, de março de 2013, ainda não foi submetida a referendo pelo Plenário, mais de cinco anos depois de sua concessão!

Segundo as críticas doutrinárias, cautelares em ADI, decididas monocraticamente por relator, violam a Constituição Federal,[7] motivo pelo qual sequer poderiam ser adotadas fora do período de recesso. E, ainda que superado esse óbice, a liminar concedida monocraticamente deveria ser submetida a referendo na primeira oportunidade, após alguns dias apenas.[8] A realidade na jurisprudência do STF, contudo, é assaz diversa.

Breve pesquisa no sítio eletrônico do Supremo Tribunal Federal revela que o caso dos royalties é apenas um dos mais conhecidos, mas está longe de ser o único. Somente nos últimos seis meses,[9] o STF deferiu medidas cautelares em pelo menos oito ações diretas de inconstitucionalidade: ADI, 5.814, Rel. Min. Roberto Barroso; ADI-TP 5.907, Rel. Min. Dias Toffoli; ADI 5.855, Rel. Min. Alexandre de Moraes; ADI-MC 5.882, Rel. Min. Gilmar Mendes; ADI 5.874, Rel. Min. Roberto Barroso; ADI-MC 5.353, Rel. Min. Alexandre de Moraes; ADI-MC 5.809, Rel. Min. Ricardo Lewandowski; e ADI-MC 5.838, Rel. Min. Gilmar Mendes.

Consigne-se, ainda, que tais atos, em larga maioria, são proferidos fora do período de recesso do STF e tardam muitos meses, ou até mesmo anos, antes de serem submetidos a referendo pelo Tribunal Pleno. Há exemplos em que o pedido jamais chegará a ser enfrentado, em razão da perda de objeto, como ocorreu em relação à ADI 5.809, relatada pelo ministro Ricardo Lewandowski, na qual se discutiam normas que alteraram o regime de vencimentos dos servidores públicos federais.[10]

Em síntese, a concessão de liminares em ADI por meio de decisões monocráticas tornou-se expediente tão frequente que o próprio Congresso Nacional tenta agora coibir a prática. No último dia 22 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados aprovou proposta que veda decisão monocrática de ministro do Supremo em casos de ADI ou ADPF.

Trata-se do Projeto de Lei 7.104/2017, de autoria do deputado Rubens Pereira Júnior, com alterações feitas pelo relator da proposição na CCJC, deputado Pedro Cunha Lima, cuja justificação, no que interessa, afirma:

“Estamos em um momento de extensa e profunda judicialização em todos os aspectos da sociedade, especialmente no que tange às questões políticas. Temos recentemente um sem número de decisões em sede de ações específicas do controle de constitucionalidade que geraram situações conturbadas de imenso alcance. E o maior complicador é que tais decisões se efetivam, via de regra, em sede de decisões cautelares, precárias por sua própria natureza jurídica, o que, indubitavelmente, gerou uma maior insegurança em seu alcance. O presente Projeto de Lei visa, basicamente, impedir que se concedam decisões de natureza cautelar, liminar ou similares nas ações do controle concentrado de constitucionalidade que não pelo próprio pleno do Supremo Tribunal Federal e por quórum de maioria absoluta dos seus membros”.[11]

A proposta cria contexto oportuno para reflexões acadêmicas e talvez para a instauração de diálogo institucional entre o Congresso e o STF sobre o tema.

Não se deve negligenciar que os juízes detêm poder geral de cautela; que muitas vezes se deparam com questões urgentes, que demandam decisões imediatas; e que a nossa Corte Suprema está com sobrecarga de processos pautados para julgamento, o que dificulta a análise pelo Plenário das decisões monocráticas concedidas em controle abstrato de constitucionalidade.[12] Não obstante, o que está em discussão é a própria legitimidade da Justiça constitucional.

Se as regras do contencioso constitucional – como a imposição de maioria absoluta para julgamento – são vilipendiadas pelos órgãos encarregados da realização do controle de constitucionalidade, há uma inequívoca reação negativa a esse comportamento, que é o enfraquecimento da Justiça constitucional, por perda de legitimidade.

Isso porque, ao mesmo tempo que a Constituição lhe atribui a incumbência de controle dos atos normativos, impõe também limites para sua operacionalização. Em síntese, o juiz constitucional atua como legislador negativo,[13] encarregado de conduzir o processo constitucional previamente estabelecido na Lei Fundamental.

Nessa conjuntura, ainda que se compreendam todas as dificuldades enfrentadas pelo Supremo, no que tange à apreciação de medidas liminares em ADI, não se pode aceitar pacificamente justificativas para a desestruturação do processo constitucional.

É preciso que o STF se empenhe mais para encontrar soluções no sentido de compatibilizar seus procedimentos com as imposições da Constituição, caso contrário, continuará a receber a alcunha de ativista e a enfrentar reações progressivamente intensas às condutas que se reputam incompatíveis com os ditames constitucionais.

Para evitar a restrição anunciada pelo Congresso Nacional, é necessário que o STF revisite suas práticas. Se, por um lado, é certo que a proibição ampla e irrestrita da concessão de liminares monocráticas pode parecer medida desproporcional, diante do poder geral de cautela que é próprio da tutela jurisdicional; não se pode, por outro lado, negar que a generalização dessa prática põe em xeque a própria legitimidade institucional do tribunal, notadamente diante da tensão que instiga em face do poder Legislativo.

Assegurar a celeridade processual e a liberação imediata para a pauta são medidas mínimas que a corte poderia adotar para evitar que a intensificação da tensão Legislativo-Judiciário implique a proibição total de liminares em ADI.

Finalmente, de lege ferenda, cogita-se que o STF possa estabelecer, por exemplo, uma efetiva tramitação prioritária para as ADIs com medida cautelar deferida monocraticamente ou, ainda, instituir regime de trancamento de pauta na pendência de referendo pelo Pleno de tais decisões – algo semelhante ao que ocorre no Congresso Nacional em relação à votação de medidas provisórias.

 


[1] Essas leis dispõem, respectivamente, sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade; e o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental perante o Supremo Tribunal Federal.

[2] Art. 13, VIII, do RISTF: “Art. 13. São atribuições do Presidente: (…) VIII – decidir questões urgentes nos períodos de recesso ou de férias”.

[3] MENDES, Gilmar Ferreira; VALE, André Rufino do. Questões atuais sobre medidas cautelares no controle abstrato de constitucionalidade. In: Observatório da Jurisdição Constitucional. Brasília: IDP, Ano 5, 2011/2012.

[4] No trabalho citado, os autores apresentam levantamento (não exaustivo) em que identificam diversas decisões monocráticas concessivas de liminares em ação direta de inconstitucionalidade entre os anos 2009 e 2011: ADI-MC 4.232, Rel. Min. Menezes Direito; ADI-MC 4.190, Rel. Min. Celso de Mello; ADI-MC 4.307, Rel. Min. Cármen Lúcia; ADI-MC 4.451, Rel. Min. Ayres Britto; ADI-MC 4.598, Rel. Min. Luiz Fux; ADI-MC 4.663, Rel. Min. Luiz Fux; ADI-MC 4.638, Rel. Min. Marco Aurélio; ADI-MC 4.705, Rel. Min. Joaquim Barbosa.

[5] STRECK, Lenio. A decisão de um ministro do STF pode valer como medida provisória? In: Consultor Jurídico, Coluna Senso Incomum, de 4 de dezembro de 2014. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2014-dez-04/senso-incomum-decisao-ministro-stf-valer-medida-provisoria#_ftnref1>.

[6] Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.917, Rel. Min. Cármen Lúcia, em que se questionam regras de distribuição dos royalties do petróleo contidas na Lei 12.734/2012.

[7] VALE, André Rufino do. Cautelares em ADI, decididas monocraticamente, violam a Constituição. In: Revista Consultor Jurídico, Coluna do Observatório Constitucional de 31 de janeiro de 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jan-31/observatorio-constitucional-cautelares-adi-decididas-monocraticamente-violam-constituicao#_ftn1>.

[8] STRECK, Lenio. Op. Cit.

[9] Período compreendido entre dezembro de 2017 e junho de 2018.

[10] Nesse processo, o Ministro Ricardo Lewandowski, às vésperas do recesso de dezembro de 2017, deferiu parcialmente a medida cautelar postulada, para suspender a eficácia dos arts. 1° ao 34 e 40, I e II, da Medida Provisória 805/2017, bem como para determinar a suspensão da eficácia do art. 4°, I e II, § 3°; e art. 5° da Lei 10.887/2004, com a redação que lhe foi dada pela MP 805/2007. Tendo em vista que sua decisão não foi submetida a referendo e que a medida provisória em questão perdeu sua eficácia no dia 8 de abril de 2018, o relator proferiu nova decisão monocrática, no fim de abril de 2018, em que declarou a prejudicialidade da ação.

[11] A íntegra Projeto de Lei 7.104/2017 e sua respectiva justificação estão disponíveis em: <https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/pl-proibe-decisao-monocratica-adi-adc.pdf>.

[12] Há quase mil processos pendentes de julgamento na pauta do Supremo Tribunal Federal.

[13] Segundo Kelsen, a diferença entre a função jurisdicional e a função legislativa consiste, antes de tudo, no fato de que esta última cria normas gerais, ao passo que a primeira cria apenas normas individuais. No que diz respeito à jurisdição constitucional, Kelsen afirma que anular uma lei é apresentar uma norma geral, pois a anulação tem o mesmo caráter genérico da criação. Assim, para o referido autor, é possível dizer que o juiz constitucional exerce função legislativa com sinal invertido (Cf. KELSEN Hans. La garantie juridictionnelle de la Constitution: la justice constitutionnelle. Revue de droit public et de science politique, Vol.XLV, 1928, p. 224).

Autores

  • é doutorando em Direito Público pela Sciences-PO/Aix-Marseille Université (França), professor de Processo Constitucional da Escola de Direito de Brasília (EDB-IDP) e analista judiciário do Supremo Tribunal Federal.

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