Opinião

Incertezas sobre a retenção da CNH e do passaporte de devedores

Autor

  • Carla Regina Kalonki

    é advogada em São Paulo especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP membro do Jurídico de Saias e da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB de Campinas (SP).

9 de junho de 2018, 6h19

Após dois anos da entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, importante revisitarmos a aplicação do artigo 139, inciso IV, no que diz respeito às medidas coercitivas para o cumprimento das ordens judiciais.

Com base em tal dispositivo legal, muitos credores pleitearam — e ainda pleiteiam — o bloqueio de passaportes e carteiras nacionais de habilitação (CNH) como meio de persuadir os devedores nas execuções de títulos judiciais e extrajudiciais.

Sob a ótica do credor, a medida parece ser um meio para garantir o princípio do resultado, que prevê a necessidade de dar ao exequente exatamente aquilo que ele obteria caso o executado tivesse cumprido voluntariamente a sua obrigação.

Soma-se a tal fundamento a baixa eficiência da execução voluntária, bem como a morosidade na tramitação dos processos executivos. Em publicação anual do Conselho Nacional de Justiça, constatamos que a execução demora em média três vezes mais do que o processo de conhecimento.

Neste contexto, juízes de 1ª instância têm admitido a suspensão da CNH e do passaporte dos devedores como meio de “satisfação” da execução. Esse foi o entendimento da juíza da 9ª Vara Cível da Comarca de João Pessoa ao, dentre outras medidas, autorizar o bloqueio da CNH e do passaporte dos devedores na ação em fase de cumprimento de sentença há mais de 16 anos.

No mesmo sentido, o Superior Tribunal de Justiça manteve, em sede e julgamento de Habeas Corpus, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que permitiu a retenção do passaporte e da carteira de motorista do devedor, tendo em vista o esgotamento das pesquisas de bens. Em tal decisão, o ministro Luis Felipe Salomão afastou a alegação de ofensa ao direito constitucional de locomoção e consignou a ausência de comprovação da desproporcionalidade da medida (HC 443.348).

Por outro lado, temos que observar a aplicação das medidas sob a ótica do devedor. Para tanto, deveremos avaliar o direito constitucional de ir e vir (artigo 5º, inciso XV), da menor onerosidade ao devedor e do resultado da execução.

Quanto ao direito constitucional de locomoção, se o observarmos de forma isolada, entendemos que não restariam dúvidas sobre sua infração. Isso porque as medidas supracitadas impedem, ainda que parcialmente, a livre movimentação do devedor.

No que diz respeito aos princípios da menor onerosidade e do resultado da execução, também parece descabida a aplicação de tais medidas, sem a análise do caso concreto. Isso porque o primeiro (menor onerosidade) dispõe que a execução deverá ser feita pelo modo menos gravoso ao devedor, e o segundo (resultado), conforme informado anteriormente, prevê a necessidade de entregar ao exequente o que ele obteria em caso de cumprimento voluntário da obrigação.

Nesse sentido, inúmeras são as decisões proferidas em 2ª instância ou em sede de apreciação de remédio constitucional (Habeas Corpus) que, aplicando os princípios acima, em conjunto com a avaliação da razoabilidade e proporcionalidade, rejeitaram os pedidos de suspensão da CNH e passaporte.

Esse também foi o entendimento da 4ª Turma do STJ ao julgar, na terça-feira (5/6), recurso que visava a liberação do passaporte e CNH de devedor cujo débito atinge o valor de R$ 16.859,10. No caso em questão, o ministro Luis Felipe Salomão consignou que a retenção do passaporte, no caso em concreto, é ilegal e arbitrária. No que tange à carteira de motorista, o mérito não foi apreciado.

Como operadores do Direito, se avaliarmos isoladamente o tema, teremos fundamentos tanto para a aplicação quanto para a vedação de tais medidas coercitivas. Isso porque não vemos nos tribunais superiores e na 1ª e 2ª instâncias entendimento pacificado sobre o assunto.

Assim, em vez de olharmos sob a ótica do credor ou do devedor, entendemos que deveremos observar o tema de forma ampla, ou seja, considerando a eficiência e razoabilidade das medidas, sem prejuízo de nos debruçarmos sobre a situação fática dos casos.

Isso porque a suspensão da CNH e/ou do passaporte não gera ao credor o resultado esperado da execução, que nada mais é do que o recebimento do que está sendo pleiteado. Tais medidas visam apenas persuadir o devedor a cumprir com a sua obrigação, uma vez que o inadimplemento gerará situação mais gravosa do que a sua resolução.

Ao apreciar o Habeas Corpus 439.214, a ministra Maria Isabel Gallotti, em decisão monocrática, indeferiu a liminar pleiteada, com a manutenção do bloqueio da CNH e do passaporte dos devedores, com fundamento na gravidade dos fatos apurados pelo tribunal, bem como na ausência de infração ao direito constitucional de locomoção.

Assim, apesar de extrema, entendemos justificável a utilização da medida, desde que comprovado o esgotamento das tentativas de constrição dos bens dos devedores.

Ainda que já passados dois anos da vigência do novo Código de Processo Civil, a discussão continua e continuará atual por um bom tempo. Caberá a nós ponderarmos a situação fática do caso, bem como os preceitos que regem a execução.

Autores

  • é advogada em São Paulo, especialista em Direito Processual Civil pela PUC-SP, membro do Jurídico de Saias e da Comissão de Recuperação Judicial e Falência da OAB de Campinas (SP).

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