Direito Civil Atual

A tutela jurídica dos animais no Direito Civil Contemporâneo (Parte 3)

Autores

  • Fernando Speck de Souza

    é juiz de direito do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) professor de Direito Civil no Centro Universitário Católica de Santa Catarina mestre e doutorando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) e membro da Rede de Direito Civil Contemporâneo.

  • Rafael Speck de Souza

    é analista jurídico da Justiça Federal de Santa Catarina mestre em Direito Estado e Sociedade pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina e membro do Observatório de Justiça Ecológica/UFSC.

4 de junho de 2018, 8h00

*Esta é a terceira e última parte de nosso estudo sobre a tutela jurídica dos animais no Direito Civil Contemporâneo. Hoje trataremos do estatuto jurídico dos animais na legislação estrangeira; do estado da arte da disciplina no Direito brasileiro; e, finalmente, apresentaremos nossas conclusões.

3. A evolução do tema na legislação estrangeira
O estatuto jurídico dos animais vem sendo modificado em vários países que adotam o sistema romano-germânico. Abordaremos essa evolução legislativa nos principais países de Civil Law.

Em 1988, foi incluído[1] o parágrafo 285a ao Código Civil austríaco (Allgemeines bürgerliches Gesetzbuch – ABGB), passando tal diploma a prever expressamente: “Os animais não são coisas; eles são protegidos por leis especiais”.

Dois anos depois, em 1990, o BGB também foi modificado; o parágrafo 90a, incluído naquele ano, passou a conter previsão idêntica. Ressalvou-se, porém, que “[a] eles se aplicam as normas vigentes para coisas, no que couber, salvo disposição em contrário”. Apesar de tal limitação, em 2002, a Alemanha tornou-se o primeiro país-membro da União Europeia a garantir dignidade aos animais em sua Lei Fundamental de 1949, a chamada Constituição de Bonn.

Em 2003, foi a vez da Suíça “descoisificar” os animais; o artigo 641, inciso II, do seu Código Civil, passou a considerar que os animais não são coisas.

Em 19 de maio de 2011, a Holanda[2] editou lei com o objetivo de implementar obrigações relativas à saúde e bem-estar dos animais.[3] Referida norma, por meio de seu art. 11.2, fez incluir o artigo 2a no livro 3 do Código Civil holandês[4], com a seguinte redação:

Artigo 2a

1. Animais não são coisas.

2. As disposições relativas às coisas são aplicáveis aos animais, com a devida observância das limitações, obrigações e princípios legais decorrentes de normas estatutários e não escritas, bem como da ordem pública e dos bons costumes.[5]

O texto acima só entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 2013.[6]

No ano de 2015, o Código Civil francês foi alterado pela Lei 2015-177, que incluiu naquele o artigo 515-14, cuja redação é a seguinte: “Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade. Sob a reserva das leis que os protegem, os animais estão submetidos ao regime de bens”. Percebe-se aqui um avanço mais contido, assim como o que se deu na Alemanha.

Portugal, por sua vez, criou, no ano de 2016, uma terceira figura jurídica, a par das pessoas e das coisas, passando a considerar que os animais são seres vivos dotados de sensibilidade.

Ainda, em 29 de janeiro de 2017, a Constitución Política de la Ciudad de México redefiniu o status jurídico dos animais ao reconhecê-los como seres sencientes e destinatários de tratamento digno e respeito à vida e à integridade física, sendo sujeitos de consideração moral (artigo 13, B, 1).[7]

Além disso, como salientado na primeira parte deste estudo, o próximo país a caminhar para a reformulação do estatuto jurídico dos animais é a Espanha. Em 12 de dezembro de 2017, a Câmara Baixa do Parlamento espanhol aprovou, por unanimidade, mudanças em seu Código Civil, para que os animais sejam reconhecidos como seres vivos.[8]

4. O Direito Civil brasileiro, os animais e as tentativas de se aprovar um estatuto jurídico próprio
Segundo Antonio Junqueira de Azevedo, a concepção dualista e mecanicista do mundo, herdada de Descartes, condicionou o olhar para que se veja o animal como sendo uma máquina, e a vida na natureza como sendo algo axiologicamente vazio, neutro, bruto, que poderia ser manipulado e, depois, convertido em moeda.[9]

Consequentemente – e também por influência da pandectística alemã –, a orientação ética centrada na pessoa humana (o “personalismo ético”) tornou-se a principal diretriz do Direito Civil desde as codificações do século XIX. Exemplos dessa assertiva estão na Consolidação das Leis Civis (que continha uma Parte Geral) e nos Códigos Civis de 1916[10] e de 2002[11]. Ou seja, “todo homem, toda mulher, toda criança, todo idoso, qualquer um, qualquer que seja a idade, a etnia, a nacionalidade, a cor da pele, a religião, o patrimônio, o status social ou o grau de cultura”.[12]

De outro lado (o dos animais), previa o Código Civil de 1916 que “[s]ão móveis os bens suscetíveis de movimento próprio” (artigo 47, 1ª parte). O artigo 82, primeira parte, do Código Civil vigente possui redação idêntica. Tais disposições referem-se aos semoventes. O Código Civil de 1916 possuía, ainda, outro dispositivo que tratava os animais como objeto; era o artigo 593, localizado na seção relativa à ocupação de coisas móveis, nas quais incluía os animais bravios, mansos e domesticados, os enxames de abelhas e os animais arrojados às praias pelo mar. O Código Civil atual, por sua vez, ao tratar da ocupação, prevê apenas que “[q]uem se assenhorear de coisa sem dono para logo lhe adquire a propriedade, não sendo essa ocupação defesa por lei” (artigo 1.263). A mudança, todavia, ainda é muito sutil.

A previsão do artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, na Constituição de 1988, pode ser considerada um marco para o reconhecimento, no Brasil, do valor intrínseco a todos os animais. Referido texto acabou permitindo uma interpretação que contemplasse a dignidade animal e viabilizou a construção jurisprudencial do conceito de não crueldade animal. Nesse sentido, vale pontuar que alguns precedentes oriundos do Supremo Tribunal Federal se fundamentaram no referido artigo 225, parágrafo 1º, VII, para proibir a “farra do boi”[13], as “rinhas de galo”[14] e, mais recentemente, a vedação da prática da “vaquejada”[15] – esta, por haver crueldade intrínseca aplicada aos animais.

Já era tempo, dizia Antonio Junqueira de Azevedo, “de ousar iniciar um movimento de revisão do tema, personalismo ético, para introduzir retificações na ideia predominante como vem sendo apresentada, de dignidade da pessoa humana”.[16]

Atualmente, tramitam, no Brasil, propostas legislativas tendentes à modificação do status jurídico dos animais, inclusive com efeitos diretos sobre o Código Civil.

O primeiro projeto de lei é o de 215/2007, de iniciativa do deputado Ricardo Tripoli, que visa à criação de um Código Federal de Bem-Estar Animal.[17]

Há, ainda, o Projeto de Lei 3.676/2012, de autoria do deputado Eliseu Padilha, que propõe a criação de um Estatuto dos Animais, cujo artigo 2º tem a seguinte redação: “Os animais são seres sencientes, sujeitos de direitos naturais e nascem iguais perante a vida”.[18]

Merece destaque, por sua vez, o Projeto de Lei 6.799/2013, de iniciativa do deputado federal Ricardo Izar. O artigo 3º da proposta dispõe que “[o]s animais domésticos e silvestres possuem natureza jurídica sui generis, sendo sujeitos de direitos despersonificados, dos quais podem gozar e obter a tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado o seu tratamento como coisa”. Ou seja, objetiva-se conferir aos animais não humanos o tratamento de seres sencientes, como ocorreu na Cidade do México.

Posteriormente, foi formulado o Projeto de Lei 7.991/2014, de autoria do deputado Eliseu Padilha, cujo objetivo é acrescentar o artigo 2º-A ao Código Civil, com o seguinte teor: “Art. 2º-A. Os animais gozam de personalidade jurídica sui generis que os tornam sujeitos de direitos fundamentais em reconhecimento a sua condição de seres sencientes. Parágrafo único: São considerados direitos fundamentais a alimentação, a integridade física, a liberdade, dentre outros necessários à sobrevivência digna do animal”.

Ainda, no ano de 2015, o senador Antônio Anastasia formulou o Projeto de Lei do Senado 351/2015, por meio do qual propôs que os animais não fossem mais classificados como coisas, mas enquadrados na categoria de bens móveis, ressalvado o disposto na legislação especial.

Finalmente, vale citar o Projeto de Lei 650/2015, de autoria da senadora Gleisi Hoffmann, que propôs a criação de um Código de Proteção e Defesa do Bem-Estar dos Animais”.[19]

5. Considerações finais
Por meio de uma análise panorâmica do conceito de dignidade, foi possível verificar que, ao longo da história ocidental, tem prevalecido a concepção da dignidade centrada no humano – aliás, há certo abuso retórico na sua invocação em decisões judiciais, como destacado no já referido Recurso Extraordinário 363.889[20]; afinal, “quem teria coragem de ser contra a dignidade humana?”.[21] Recentemente, a ideia de dignidade animal tem ganhado força, a partir de pensadores que colocam em xeque o paradigma hegemônico antropocêntrico.

No campo legislativo, o estatuto jurídico dos animais vem sendo modificado em países que adotam o sistema romano-germânico. É o caso, como visto, dos Códigos Civis austríaco (modificado em 1988); alemão (em 1990); suíço (em 2003); holandês (em 2011); francês (em 2015); e português (em 2016). Em 2017, foi a vez da Constituição do México, ao reconhecer os animais como seres sencientes e destinatários de tratamento digno e respeito à vida e à integridade física, sendo sujeitos de consideração moral. O próximo país a caminhar para a reformulação do estatuto jurídico dos animais é a Espanha.

No Brasil, despontam propostas legislativas objetivando requalificar o status jurídico dos animais, buscando tirá-los do atual estado de coisas móveis.

Verificamos que a sociedade ainda reserva um estatuto ambíguo aos animais, uma vez que permite, por exemplo, que se tenha na Constituição de 1988 um artigo que tutele o animal-indivíduo contra práticas humanas que venham a submetê-los a crueldade (artigo 225, parágrafo 1º, VII) e outros dispositivos que o preconcebam como coisa móvel.

Observamos que a legislação reflete as ambiguidades e incoerências da relação do ser humano com o animal. Nesse viés, a estratégia brasileira de redefinição do estatuto jurídico para maior proteção animal há de ser precedida de prévio e amplo debate com a sociedade, visando demonstrar a necessidade de ampliação do círculo de consideração moral interespécies, sob pena de se operar apenas reformas pontuais e fragmentadas.

Atualmente, a alternativa que melhor representa a efetiva proteção dos seres sencientes, capaz de enfrentar toda a discussão acerca dos direitos animais, talvez seja a sua tutela pela dignidade da vida.[22] Sua utilização, aqui, diferentemente da ideia de se transformar o princípio da dignidade em “panaceia de todos os males”, visaria impor o reconhecimento da existência de um dever moral e jurídico (dever fundamental de proteção) dos humanos em relação aos animais.[23]

Finalmente, em razão da atualidade do tema, é interessante destacar que chegou ao Superior Tribunal de Justiça o debate acerca do direito de visitas a animal doméstico, cujo julgamento ainda não foi concluído.[24]

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

[1] Pela BGBl. Nr. 179/1988. Disponível em: <https://www.ris.bka.gv.at/GeltendeFassung.wxe?Abfrage=Bundesnormen&Gesetzesnummer=10001622>. Consulta em: 29 dez. 2017.

[2] A Holanda é o primeiro país sem animais abandonados (nesse sentido: <https://awebic.com/animais/holanda-animais-abandonados/>. Acesso em 3 jun. 2018); e, também, o primeiro a adotar a Força Policial Animal e a ter um partido exclusivo em prol dos direitos animais (cf. matéria disponível em: <https://www.anda.jor.br/2018/02/animais-tem-senciencia-e-direitos-reconhecidos-na-holanda/>. Acesso em 3 jun. 2018).

[3] Disponível em: <https://zoek.officielebekendmakingen.nl/stb-2011-345.html>. Acesso em: 3 jun. 2018.

[4] Disponível em: <http://wetten.overheid.nl/BWBR0005291/2017-09-01>. Acesso em: 3 jun. 2018.

[5] Tradução livre do seguinte texto: “Artikel 2a: 1. Dieren zijn geen zaken. 2. Bepalingen met betrekking tot zaken zijn op dieren van toepassing, met in achtneming van de op wettelijke voorschriften en regels van ongeschreven recht gegronde beperkingen, verplichtingen en rechtsbeginselen, alsmede de openbare orde en de goede zeden”.

[6] Informação disponível em: <http://wetten.overheid.nl/BWBR0005291/2017-09-01/0/Boek3/Titeldeel1/Afdeling1/Artikel2a/informatie>. Acesso em: 3 jun. 2018.

[7] “Artículo 13 (Ciudad habitable) […] B. Protección a los animales. 1. Esta Constitución reconoce a los animales como seres sintientes y, por lo tanto, deben recibir trato digno. En la Ciudad de México toda persona tiene un deber ético y obligación jurídica de respetar la vida y la integridad de los animales; éstos, por su naturaleza son sujetos de consideración moral. Su tutela es de responsabilidad común” (Constitución Política de la Ciudad de México, 2017. Disponível em: <http://www.derechoanimal.info/bbdd/Documentos/2215.pdf>. Acesso em 13 mar. 2017).

[8] PARLAMENTO DA ESPANHA apoia por unanimidade considerar os animais como seres vivos e não objetos. El País Internacional cit.

[9] AZEVEDO, Antonio Junqueira. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma ética biocêntrica. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, p. 115-126, jan.-dez. 2008, p. 117.

[10] “Art. 2º. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil”.

[11] “Art. 1º. Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”.

[12] AZEVEDO, Antonio Junqueira. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil cit., p. 115.

[13] STF, RE 153.531/SC, rel. Min. Francisco Rezek, rel. p/ o acórdão Min. Marco Aurélio, Segunda Turma, j. 3 jun.1997, DJ de 13 mar. 1998.

[14] STF, ADI 2.514/SC, rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 29 jun. 2005, DJ de 9 dez. 2005.

[15] STF, ADI 4.983/CE, rel. Min. Marco Aurélio Melo, Tribunal Pleno, j. 6 out. 2016, DJ de 17 out. 2016.

[16] AZEVEDO, Antonio Junqueira. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil cit., p. 116.

[17] Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=436891&filename=PL+215/2007>. Acesso em: 29 dez. 2017.

[18] Tramitação disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=541122>. Acesso em: 29 dez. 2017.

[19] Inteiro teor do projeto disponível em: <http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=2916668&disposition=inline>. Acesso em: 29 dez. 2017. A última movimentação é de 13 mar. 2018. Foi deferido o requerimento n. 88/2018, de autoria do senador Wellington Fagundes, solicitando a retirada do PLS n. 677/2015, que tramitava em conjunto. Assim, o PLS n. 351/2015 voltou a ter tramitação autônoma. Atualmente, está sob a relatoria do senador Flexa Ribeiro e encontra-se na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária. Movimentação disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/123360>. Acesso em: 30 mar. 2018.

[20] STF, RE 363.889, rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, j. 2 jun. 2011, DJe 238, de 15 dez. 2011.

[21] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. “Consensos sobrepostos” e decisões judiciais. Revista Eletrônica Conjur. São Paulo, 26 set. 2012. Coluna Direito Comparado. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2012-set-26/direito-comparado-consensos-sobrepostos-decisoes-judiciais#_ftn2_4214>. Acesso em: 7 jan. 2018.

[22] MEDEIROS, Fernanda Luíza Fontoura de. Direito dos animais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 192-193.

[23] MEDEIROS, Fernanda Luíza Fontoura de. Direito dos animais cit., p. 114.

[24] Notícia disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/STJ-vai-definir-se-%C3%A9-poss%C3%ADvel-regulamentar-visitas-a-animal-de-estima%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 3 jun. 2018.

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    é juiz de Direito em Santa Catarina, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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    é analista jurídico da Justiça Federal de Santa Catarina, mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Observatório de Justiça Ecológica/UFSC.

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