Justiça Tributária

O Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte e a coluna perdida

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

4 de junho de 2018, 8h05

Spacca
Pode não ser essa mulher o que te falta,
Pode não ser esse calor o que faz mal;
Pode não ser essa gravata o que sufoca,
Ou essa falta de dinheiro que é fatal.
Vê como um fogo brando funde um ferro duro;
Vê como o asfalto é teu jardim se você crê;
Que há sol nascente avermelhando o céu escuro,
Chamando os homens pro seu tempo de viver.
(Taiguara, Que as crianças cantem livres.)

Na noite de 25 de maio, tentava voltar para casa onde escreveria a coluna da segunda-feira, 28. O protesto de vans escolares e motos impedia-me de sair do lugar. Pensei em liderar rebelião de peões de rodeio contra a invasão dos estrangeiros e suas músicas esquisitas, mas achei melhor ouvir o Taiguara e depois o Guilherme Silva, cantor moçambicano que ouvi num bar da Rua Canuto do Val. Afinal, sem música a vida não faz sentido.

Em casa, depois de duas taças de vinho, a coluna ficou perdida no labirinto das preocupações do dia. Ainda bem que todos se preocupavam com os combustíveis.

Hoje, com os tanques cheios, volto à suposta realidade da vida e lembro-me que a coluna perdida trataria do Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte, que deveria ser comemorado em 25 de maio, prazo que parece ainda valer, considerando-se sua contagem pelas normas judiciais em vigor.

Essa data – Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte – foi fixada pela Lei 12.325 de 15 de setembro de 2010, aprovada pelo nosso povo, representado pelo Congresso Nacional e sancionada pelo então presidente Lula e com a assinatura do ministro da Fazenda, Guido Mantega.

Trata-se de lei que cumpriu os ritos constitucionais, sem qualquer defeito ou inconstitucionalidade e, portanto, deve ser observada por todas as pessoas por ela alcançadas.

Referido diploma legal é absolutamente claro, razão que o destaca nesse ponto, eis que não deixa qualquer dúvida de interpretação. Com um texto enxuto e objetivo, sua aplicação é facílima, não causando despesas relevantes ou custos adicionais ao orçamento público.

Contem a lei apenas três artigos. Um deles foi vetado e o quarto é meramente indicação de vigência. As leis deste país são assim mesmo: quando desejam trazer algum benefício ou agradar o contribuinte são curtas e ninguém as discute. Se o querem prejudicar são enormes, confusas, mal escritas e mudam com freqüência, formando o cipoal trágico com que somos enforcados.

Diz a referida Lei:

Art. 1º Fica instituído o Dia Nacional do Respeito ao Contribuinte, data de conscientização cívica a ser celebrada, anualmente, no dia 25 de maio, com o objetivo de mobilizar a sociedade e os poderes públicos para a conscientização e a reflexão sobre a importância do respeito ao contribuinte.

Art. 2º Os órgãos públicos responsáveis pela fiscalização e pela arrecadação de tributos e contribuições promoverão, em todas as cidades onde possuírem sede, campanhas de conscientização e esclarecimento sobre os direitos e os deveres dos contribuintes.

Parágrafo único. Os servidores dos órgãos referidos no caput participarão ativamente das atividades de celebração do Dia Nacional do Respeito ao Contribuinte.

Art. 3º (VETADO).

Art. 4º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.”

Parte do servidores públicos que nessa data deveriam promover “campanhas de conscientização e esclarecimento sobre os direitos e os deveres dos contribuintes”, estavam em greve.

Como viram nossos leitores em notícia de 27 de fevereiro de 2018, o juiz Fábio Rubem David Müzel, da 4ª. Vara Federal de Guarulhos, concedeu liminar em Mandado de Segurança ordenando que Agentes Aduaneiros de Cumbica dessem andamento a despacho de mercadorias importadas. O teor da liminar encontra-se anexada à notícia do nosso repórter Tadeu Rover.

Isso demonstra que greve é algo corriqueiro nas atividades do fisco, em diversos níveis. Pior ainda é quando não se sabe se há ou não greve, quando há setores que funcionam enquanto outros não, enfim, quando os profissionais que atuam na área (contadores, advogados etc.) são colocados naquela tragicômica situação do vira-lata que caiu do caminhão de mudanças.

Os contribuintes ou “empreendedores” estaduais parece que são os que mais sofrem com esse descaso, descalabro ou desprezo. Isso já serviu para que contadores resolvessem mudar de carreira. Aqui em São Paulo conheci uma contadora que fez outra faculdade e hoje é psicóloga. Não sei se já atende seus ex-colegas na profissão contábil. Em Goiás conheci outro contador, um senhor bem sucedido que, não resistindo a pressões do trabalho, hoje é dono de casa noturna, adquirida de ex-cliente que se mudou para outro país.

Hoje, como se sabe, muitos ex-empregados tornaram-se “empreendedores”, ainda que sua “mico” empresa seja uma porta onde vende quitutes na garagem de sua casa, depois que vendeu o carro.

Na verdade, todos somos contribuintes, inclusive o mendigo a quem dei uma nota de dois reais naquele congestionamento. Não importa o que ele faça com sua “renda”. Não importa sequer se o prato de comida lhe foi doado por alguém.

Contribuinte é quem suporta a carga dos tributos. Se o nome é “fato gerador”, “hipótese de incidência” ou qualquer outro que os teóricos mais iluminados adotem, a verdade é que se alguém comeu, houve incidência de tributo, seja na produção, no transporte ou no diabo que o carregue!

Não devemos sonegar, surrupiar , corromper etc., mas se vivemos somos tributados e temos o dever de pagar nossos tributos, conforme a lei.

Portanto, não existe a mínima possibilidade de uma reforma tributária digna desse nome enquanto a carga sobre o PIB ficar acima de 25%. Vejam que a Inconfidência surgiu por causa do “quinto”. Em 1967, na reforma que foi gestada em 65, estimava-se em 20%.

Temos necessidade dessa reforma. Mas só pode ser discutida a partir de 2019. Seria uma ofensa ao povo o Congresso tentar fazer mudança, se é ele, Congresso, que precisa passar por uma limpeza geral, com honrosas exceções em ambas as Casas. Não podemos generalizar, mas não podemos deixar de ver os frutos podres que ainda estão na árvore.

Se a Constituição garante os direitos do seu artigo 6º, mas também garante antes disso a igualdade, temos que rever os privilégios, os direitos adquiridos à custa do desrespeito aos das demais pessoas etc. Não basta acabar com a corrupção, se admitimos que aposentados no serviço público ainda mantenham outro cargo público.

No sistema atual não estamos numa democracia, mas num sistema de castas, onde o político profissional é dono de províncias hereditárias atrasadas, sempre pertencem a seus descendentes, à custa de voto de ignorantes manipulados pelos meios de comunicação dominados por esquemas monopolistas.

Devemos acreditar que as leis do país são feitas para o bem da sociedade que se destinam a dar cumprimento a normas constitucionais que, de forma resumida, vemos no preâmbulo da Carta Magna:

…para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias…

A criação do Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte é uma farsa. Fala-se em respeito, mas as poucas mudanças havidas se limitaram a fatos sem importância, como a colocação de mais cadeiras nos locais onde as pessoas esperam atendimento.

Quando a lei fala que os servidores de tais órgãos participarão ativamente das “atividades de celebração do Dia Nacional de Respeito ao Contribuinte” ficamos com várias dúvidas.

Primeira: que atividades são essas? Seremos recebidos com flores nas repartições e convidados a um cafezinho ou quem sabe um chá com torradas? Aquele fiscal que é um excelente músico nas horas vagas levará seu instrumento para nos brindar com seu talento?

Por outro lado, acreditamos que a lei, ao falar em campanhas de conscientização e esclarecimento sobre os direitos e os deveres dos contribuintes pode fazer com que os servidores públicos possam dar um enfoque especial nos nossos direitos, já que são muito eficientes na exigência de nossos deveres.

Nessa direção, seria recomendável que todos seguissem as normas do Decreto 1.171, que instituiu o Código de Ética do Servidor Público Federal. Um dos seus itens diz quase tudo:

IX – A cortesia, a boa vontade, o cuidado e o tempo dedicados ao serviço público caracterizam o esforço pela disciplina. Tratar mal uma pessoa que paga seus tributos direta ou indiretamente significa causar-lhe dano moral.

As relações entre fisco e contribuinte devem ser harmoniosas e conduzidas por normas éticas que ambas as partes respeitem. A instituição do Dia Nacional do Respeito ao Contribuinte deve servir para que isso se aperfeiçoe e devemos insistir para que o Congresso faça seu trabalho, aprovando o Código de Defesa do Contribuinte.

Talvez chegue o dia em que possamos celebrar a data. Por ora o que nos resta é permanecer na trincheira lutando por justiça tributária.

Autores

  • Brave

    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!