Opinião

A quem interessa enterrar as delações premiadas no Brasil?

Autor

  • Adib Abdouni

    é advogado constitucionalista e criminalista e autor do livro "Fake News e os Limites da Liberdade de Expressão".

4 de junho de 2018, 20h18

*Texto originalmente publicado no jornal O Globo, com o título "A quem interessa enterrar as delações?"

A velocidade com que os fatos se sucedem hoje no país faz com que ilações e suposições passem a ser lidas como verdades absolutas. Sem ser. O emocional domina o racional, e noções gasosas sublimam-se.

O acordo de colaboração dos ex-executivos da J&F é um exemplo. Em meio à torrente de fatos trazidos à luz pelos relatos e dados de corroboração apresentados, sobreveio o pedido do Ministério Público para que o contrato assinado fosse rescindido. Alegou-se que fatos importantes teriam sido omitidos, o que — hoje se vê — não aconteceu.

Contudo, estabeleceu-se a ideia de que o Estado, que validou as revelações feitas, pode-se utilizar da colaboração, mas se dispensa de entregar a contrapartida contratada. Na vida real, o Ministério Público pediu a rescisão ao Supremo Tribunal Federal. Muito embora a assessoria de imprensa da Procuradoria-Geral da República tenha divulgado a rescisão, uma decisão que cabe ao STF.

É claro que o entendimento equivocado de que o acordo foi rescindido existe porque foi suspensa a proibição de aplicação de cautelares. Mas daí a entender que o poder público pode denunciar contrato sem demonstrar a falta de boa-fé objetiva há uma grande distância. Até porque os colaboradores cumprem sua parte no contrato, com depoimentos e provas nos mais de 60 inquéritos abertos em decorrência de seus relatos.

O exame do caso pede alguma serenidade. O instituto da colaboração premiada, bastante novo no Brasil, foi recebido pela sociedade como um avanço no contexto da legislação penal. Uma das fontes de inspiração do instrumento são os Estados Unidos, que o utiliza há décadas. Não por acaso, lá, junto com os benefícios oferecidos em troca da colaboração, estabeleceu-se ampla proteção ao colaborador no ordenamento jurídico norte-americano.

Não é difícil de entender. De pouco valeria ao colaborador livrar-se de sanções penais se depois ficasse à mercê do revide daqueles que ele ajudou a condenar. A lei americana pune com até dez anos de prisão mais multa quem retaliar ou perseguir o colaborador da Justiça. As figuras jurídicas do whistleblower e do delator não são as mesmas, mas ambos são colaboradores da Justiça e, igualmente, estão sujeitos a atos de vingança de criminosos.

Imagine-se que em uma delação sejam colhidos relatos a respeito de condutas de pessoas com influência sobre determinado órgão público: o que o colaborador poderia enfrentar em termos de retaliações?

No mês passado, a Procuradoria-Geral da República submeteu ao STF os encaminhamentos sugeridos como desdobramento dos 76 anexos e termos complementares — com dados de corroboração e provas, inclusive de ações controladas — gerados dentro do contrato de colaboração.

Não são poucas nem indefesas as autoridades, políticos, administradores públicos e empresários citados nos anexos entregues pelos ex-executivos do grupo J&F. Dentre eles, certamente, haverá quem atue para encurralar seus algozes — a começar pelos que defendem a rescisão do acordo.

É preciso refletir a respeito de qual será o futuro da colaboração premiada a partir desse quadro. Certamente, não é por coincidência que nenhum novo acordo relevante foi celebrado depois da atitude de Rodrigo Janot de pedir a suspensão do contrato com os ex-executivos do grupo. Não deixa de ser irônico concluir que, depois de tantas tentativas de desmoralizar a colaboração com a Justiça, seja justamente o MPF o seu coveiro.

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