Embargos Culturais

A desilusão com o Direito e uma carta do jovem Marx a seu pai

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

3 de junho de 2018, 8h01

Spacca
Em tempos de crise o Direito parece fenecer. Constituições, códigos, estatutos e jurisprudências parecem apenas esbravejar ante a realidade dos fatos. Em tempos de crise, o Direito vai bem apenas no imaginário dos juristas, que “(…) vivem um paradoxo: (…) cotidiano está marcado pelo contraditório, mas (…) ideologia conservadora está sempre reafirmando a harmonia do mundo”[1]; essa harmonia é empiricamente inexistente.

Uma carta do jovem Marx a seu pai dá pistas dessa desilusão. A carta é datada de 10 de novembro de 1837[2]. Karl Marx, então com 19 anos, revela-nos uma antropologia negativa da ordem jurídica. Essa – a ordem jurídica – só parece funcionar quando as instituições aparentemente se submetem a uma ordem supostamente livre de fissuras ou de conflitos, que de algum modo, ainda quando latentes, são imediatamente abafados.

A missiva é cheia de ternura de esperança. Marca uma percepção de mundo ao mesmo tempo doce e realista. A carta de Marx, é diferente, por exemplo, da famosa epístola que Franz Kafka enviou a seu pai, e que constitui farto material para análise de conflitos típicos entre pai e filho, em contextos edipianos. A carta de Kafka é carregada de pessimismo. A carta de Marx é carregada de otimismo para com a vida, embora se mostrasse desiludido com os estudos de Direito que fazia. Ainda moço, já se revelava como o grande lutador que conhecemos e admiramos, concordemos ou não com suas premissas e conclusões.

Na carta, Marx falava de seus planos. Estava apaixonado por Jenny von Westphalen, com quem noivara secretamente um ano antes (os intelectuais também amam). Explicava o que estava lendo, o que estudava, o que o cativava nesse mundo deliciosamente instigante que é o mundo da cultura. À época, Marx estudava Direito na Universidade de Bonn[3]. As observações que enviou ao pai, relativa aos estudos que fazia, prenunciam o modo desdenhoso como o filósofo revolucionário de Trier trataria o direito no contexto de seu pensamento e da formulação de sua leitura da sociedade.

E nesses dias de hoje, nos quais a ordem jurídica observa inerte e atônita o desdobrar dos acontecimentos de matiz econômico, comprova-se a profecia de quem colocou o mundo das leis como mero coadjuvante do mundo econômico, isto é, como uma expressão de conjuntura em face de uma ativa estrutura. Esse fórmula, porém, e negativamente, foi de algum modo sequestrada pelos adversários que Marx historicamente provocou, e que ao longo dos anos, subverteram o conceito esperançoso de uma ordem justa pelo conceito imaginariamente aferível de uma ordem eficiente. A usarmos termos imprecisos e fora de moda, a direita tomou da esquerda algumas ferramentas de transformação do mundo, do mesmo modo que o direito tomou da teologia várias ferramentas de manutenção desse mesmo mundo.

Marx contou ao pai que estava desencantado com os assuntos então discutidos em sala de aula, a exemplo da oposição entre leis do ser e leis do dever ser, ponto de partida para uma construção metafísica da justiça, carregada de idealismo. Denunciava que o Direito consistia em mera apropriação inconsciente de um dogmatismo matemático, o que sentia especialmente com a exploração dos problemas jurídicos tornados clássicos pelos cultores do Direito romano.

Marx não se conformava com classificações jurídicas intermináveis, e que se iniciavam com digressões em torno de semelhanças e de dissemelhanças entre Direito Público e Direito Privado. Reproduziu na mencionada carta excerto das categorizações que fazia em sala de aula, perguntando ao pai por que deveria encher páginas com conceitos e taxonomias absolutamente distantes da realidade, desprovidos de funcionalidade. Percebia que seus esforços para um estudo sério se perdiam nas trivialidades e na futilidade. Achava que perdia tempo precioso.

Queixou-se que se arruinava em estudos que desdenhavam a natureza, a arte, o mundo real, o que o alienava, bem como aos amigos que então tinha. Explicou ao pai que estudava o tema da propriedade em Savigny, o Direito Criminal em Feuerbach (de quem se tornou amigo, e justamente quem formulou o preceito clássico de que não há crime sem lei anterior que o defina). Estou Aristóteles, de quem teria traduzido a Retórica. Estudou também o Direito alemão, com base no método histórico, como se fazia à época, voltando no tempo até a época dos reis francos.

Quanto aos planos do pai, no sentido de que Marx obtivesse um emprego público, na área jurídica, o jovem estudante pouco entusiasticamente admitiu que, de fato, a jurisprudência o interessaria um pouco mais do que o estudo da administração. Pensava também na carreira acadêmica, porém os concursos exigiam dos candidatos pelo menos a produção de um livro medíocre, com comentários dos códigos das várias províncias germânicas, o que ocorreu antes da unificação do Direito alemão, público (ocorrido em 1871, com a vitória de Bismarck) e privado (o que ocorreu em 1900, com o advento do Código Civil alemão).

Marx distanciou-se do Direito, aproximando-se da filosofia, preparando tese de doutorado sobre a filosofia da natureza em Demócrito e em Epicuro. Profetizou que a ordem jurídica seria uma serva da ordem econômica, bem como as demais instâncias da vida humana, a exemplo da política e da estética, vaticinando que a ilusão da justiça comprovaria delírio ideológico e patológico para com uma ordem que atenderia a poucos.

Nessa carta do jovem Marx já se capta certa apreensão para com a fragilidade das coisas do mundo, onde, o que é sólido desmancha-se no ar, ao mesmo tempo em que o sagrado acaba profanado, a usarmos uma de suas expressões mais ricas de sentido.

[1] É a passagem clássica de Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, talvez o mais lúcido texto sobre direito e ideologia escrito no Brasil. Conferir Amílton Bueno de Carvalho, Revista de Direito Alternativo, nº 2, São Paulo: Acadêmica, 1993, pp. 18-27.

[2] Tenho comigo uma versão traduzida da carta, para o inglês. Loyd D. Easto e Kurt H. Guddat, Karl Marx- writings og the young Marx on Philosophy and Society, Indianapolis: Hackett, 1997, pp. 40-50.

[3] Para uma compreensão biográfica dessa fase de Marx, conferir David McLellan, Karl Marx, a Biography, London: Palmgrave, 2006, pp. 13 e ss.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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