Direito do Agronegócio

A alteração das circunstâncias nos contratos de venda de produtos agrários

Autores

  • Flavia Trentini

    é professora associada do Departamento de Direito Privado e de Processo Civil e do programa de mestrado da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP) e livre docente em Direito Agrário pela FDRP-USP com estágio pós-doutoral pela Scuola Superiore Sant'Anna di Studi Universitari e Perfezionamento (SSSUP Itália) e em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP).

  • Gabriel Fernandes Khayat

    é advogado e mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP).

1 de junho de 2018, 8h05

Spacca
A análise dessa semana envolve a alteração das circunstâncias nos contratos de comercialização de produtos agrários[1]. Estes contratos, além de organizarem a atividade agrária e permitirem a circulação de riquezas, exercem a importantíssima função de comportar o interesse das partes e atenuar o risco que é próprio de toda atividade econômica, e se revela mais presente pela situação própria do campo.

Com efeito, na atividade agrária, a gestão do risco se revela ainda mais essencial para que o agente econômico tenha o retorno e a produção esperada. Isso porque, para além dos riscos ordinários de qualquer transação (risco operacional, de preço ou de mercado, de crédito, jurídicos), há o chamado risco de produção/físico[2], que são as questões naturais aptas a influenciar e determinar o ciclo biológico do produto agrícola, como as variantes climáticas (temperatura, precipitação, umidade e radiação solar), e a ocorrência de doenças e pragas, podendo gerar oscilação ou mesmo a quebra de safra[3].

Muitas vezes, esses eventos podem provocar uma alteração das circunstâncias que leve ao desequilíbrio contratual, tornando o desempenho da prestação demasiadamente oneroso para uma das partes. Para estas situações de agravamento do risco – absolutamente excepcionais, ressalte-se –, atribui-se eficácia jurídica à perturbação da econômica do contrato, podendo levar à resolução contratual, ou a revisão, seja negocial ou judicial, tudo a depender do preenchimento das hipóteses dos artigos 317 ou 478 e seguintes do Código Civil.

Neste particular, ressalte-se que não mais se questiona, na doutrina ou na jurisprudência, a natureza empresarial dos contratos de comercialização de produtos agrários. Justamente por isso, é que a jurisprudência (especialmente do STJ) tem entendimento consolidado de que as revisões ou resoluções judiciais de contrato não podem se tornar tábua de salvação para obrigações mal assumidas. Neste sentido, o REsp 803.481-GO, de relatoria da ministra Nancy Andrighi se tornou emblemático ao indeferir o pedido de revisão do valor da saca de soja por não considerar que a alta do dólar seja fato imprevisível, já que:

O produtor rural de hoje não é o rurícola de pés descalços e sem qualquer acesso a informação. Ao contrário, bate recordes de produtividade por conta da aplicação maciça de tecnologia, tem acesso às cotações das bolsas de mercado futuro, sabe muito bem, até mesmo por eventos recentes, que o Dólar é moeda com variações bruscas, e somente faz contratos de venda antecipada com a certeza de que, calculados os custos de produção daquele plantio, o resultado a ser obtido lhe será favorável, inclusive por experiência prática, pois nas duas safras anteriores as compradoras tiveram que pagar soja adquirida via comercialização antecipada em preço maior que a cotação da época da entrega do produto[4].

Ao lado desta jurisprudência consolidada e criteriosa na apreciação dos pedidos de revisão ou resolução de contratos de comercialização de produtos agrícola, há características próprias do setor que interferem na prática. Neste sentido, a depender da possibilidade de perecimento do produto, o vendedor tem um reduzido número de potenciais compradores, o que faz com que a mesma operação, entre os mesmos agentes, se repitam no tempo, o que lhe conferem o atributo da “frequência”[5].

Esta situação eleva a confiança recíproca entre as partes, de modo que os instrumentos contratuais desta natureza, em geral, são dispensados, predominando a relação contratual verbal[6]. Quando adotam a forma escrita, buscam apenas reproduzir a existência da operação econômica, sem a preocupação de haver detalhamento sob a possibilidade de alteração de circunstâncias, já que o texto do contrato é proposto pela parte que tem maior poder econômico.

Tudo isso faz com que haja poucas demandas questionando o equilíbrio destes contratos, pois eventual embate judicial poderá ser interpretado como uma conduta oportunista. Deste modo o agente econômico pode enfrentar dificuldades para manter suas relações contratuais, sendo punido pelos players, que poderão evitar novos contratos com aquele que demandou judicialmente.

Soma-se a tudo isso os prejuízos decorrentes da demora no julgamento, a possibilidade de perecimento do produto, o custo total do ajuizamento da ação judicial, a grande probabilidade de decisão desfavorável, e a oralidade e cooperação típica deste mercado, além do que, neste setor predominam os contratos de parceria rural e arrendamento rural, que não permitem tanta discussão em relação a desequilíbrio contratual.

Portanto, diante do posicionamento jurisprudencial criterioso e das características próprias deste sistema econômico, a demanda judicial para evitar uma situação de desequilíbrio contratual provocado pela alteração das circunstâncias não parece ser uma saída eficiente.

Em seu lugar, devem os contratantes formular instrumentos que (i) permitam a composição extrajudicial, como cláusula de hardship[7], e (ii) antecipem e mitiguem o risco, como a previsão expressa da consequência diante da ocorrência de determinada situação indesejada, o hedge no mercado de derivativos, ou a fixação do preço de acordo com a quantidade x qualidade, a exemplo do sistema Consecana (Conselho dos Produtores de Cana de Açúcar, Açúcar e Etanol do Estado de São Paulo) e do ainda não implantado Fórum Nacional de Integração (FONIAGRO)[8].

[1] VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito comercial: contratos empresariais em espécie. 5.v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 112.

[2] WINTER, Marcelo Franchi. Riscos físicos, de mercado, comerciais e jurídicos do agronegócio e seus mitigantes. In: BURANELLO, Renato; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (coords.). Direito do agronegócio: mercado, regulação, tributação e meio ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 162-179.

[3] Segundo Fernando Scaff, trata-se do fato técnico, que é o elemento extrajurídico oriundo de outras ciências relacionado ao ciclo biológico, que irá interferir diretamente no regime jurídico dos institutos em questão, legitimando a sua qualificação e sua relevância para o mundo jurídico, pois invariavelmente determinará os fatores de oferta (SCAFF, Fernando Campos. Direito agrário: origens, evolução e biotecnologia. São Paulo: Atlas, 2012. p. 14.)

[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 803.481-GO. Min. Rel. Nancy Andrighi. j. 28.07.2007. p. 01.08.2007.

[5] TADELIS, Steven; WILLIAMSON, Oliver. Transaction Cost Economics (unpublished manuscript). University of California, Berkeley, 2010. Disponível em: << http://faculty.haas.berkeley.edu/stadelis/tce_org_handbook_111410.pdf>>. Acesso em: 19.07.2016. p. 12.

[6] SZTAJN, Rachel. Direito e economia dos contratos – os conceitos fundamentais. In: VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Direito comercial: teoria geral do contrato – fundamentos da teoria geral do contrato. 2. ed. rev. atual. ampl. 4.v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 79.

[7] GOMES, Júlio; MONTEIRO, António Pinto. A <<hardship clause>> e o problema da alteração das circunstâncias (breve apontamento). In: Juris et de jure. Porto: Porto, 1998. p. 37.

[8] Trata-se de entidade de composição paritária entre as partes dos contratos de integração e as entidades representativas destes, tendo por objetivo geral o fortalecimento das relações entre o produtor integrado e o integrador, conforme previsto no artigo 5º, da Lei 13.288/2016, que trata dos contratos de integração vertical nas atividades agrossilvipastoris.

Autores

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    é professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. Doutora em Direito pela USP, com pós-doutorado em Administração/Economia das Organizações (FEA/USP). Atualmente é visiting professor na Scuola Universitaria Superiore Sant’anna (Itália). Tem experiência na área de Direito Privado, com ênfase em Direito Agroambiental.

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    é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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