Contas à Vista

Manter o TCM-SP reduzido é dizer que ele importa menos que os outros

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31 de julho de 2018, 13h14

Spacca
O Tribunal de Contas do Município de São Paulo parece, para muitos e para si próprio, algo estranho, fora de lugar, mas na verdade não é e não deveria ser visto assim. Com apenas cinco conselheiros, todos de indicação política — três indicados pela Câmara de Vereadores e dois de livre escolha do prefeito —, é o único tribunal de contas do país com essa reduzida composição e maximizada influência política.

Todos os demais tribunais de contas do país, ainda que alguns com vexatória demora, implementaram o figurino constitucional que determina a presença entre os conselheiros de um oriundo da carreira de conselheiro substituto e outro com origem entre os membros do Ministério Público de Contas. Só o TCM-SP resiste a adotar a conformação prevista na Constituição, passados já quase 30 anos de sua promulgação! Pior, no TCM-SP, além de não haver conselheiro oriundo do MP de Contas, nem sequer há MP de Contas para atuar como fiscal da lei e defensor da ordem jurídica, como existe em absolutamente todos os tribunais do país, incluído o STF.

Para justificar sua resistência, vale-se de sua autoproclamada excentricidade. Seria ele peculiar por ser um tribunal de contas municipal, um caso à parte, uma situação sui generis na federação, algo tão excepcional que justificaria qualquer outra excepcionalidade, como não ter nem a carreira do conselheiro substituto nem a do Ministério Público de Contas. Uma espécie de ornitorrinco do controle externo.

Lança mão do argumento de que não poderia existir Ministério Público municipal e, por arrastamento, não deveria haver mais magistrados municipais que as cinco exceções já existentes, motivo para não implementar também a carreira de conselheiro substituto.

O pior é que essa visão empobrecida, que o olha como uma instituição anômala, de segunda categoria, está sendo acolhida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento das ADIs 346 e 4.776, ambas propostas pela Associação Nacional dos Auditores dos Tribunais de Contas (Audicon), com o apoio da Associação Nacional do Ministério Público de Contas (AMPCon), funcionando como amicus curiae. Essa visão, sem dúvida alguma, fragiliza o almejado sistema nacional de controle externo, defendido pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas (Atricon).

A Audicon aponta na ADI 346 a inconstitucionalidade da fixação do número de conselheiros do TCM-SP por norma estadual, violando a autonomia do município de São Paulo. Já na ADI 4.776, assinala a quebra do princípio da simetria com essa composição reduzida e sem a presença das carreiras instituídas pela Constituição Federal de conselheiro substituto e do Ministério Público de Contas. Pretendia a Audicon que a ação resultasse em determinação para a implantação das carreiras faltantes para adequada conformação constitucional do órgão. Oito ministros já votaram pela improcedência da ação. O julgamento foi suspenso por um pedido de vista.

Trata-se de um equívoco monumental, comparável ao tamanho e à importância da cidade de São Paulo para o país.

Ao recepcionar os TCMs de São Paulo e do Rio de Janeiro, o constituinte originário assim o fez não em homenagem a meramente preservar o que já existia, mas teve em mente também o porte e a relevância dessas cidades, cujos orçamentos superam com folga o de muitos estados brasileiros. Não obstante a fiscalização do município pudesse ser feita pelo TCE-SP, como ocorre na maioria dos estados da federação, não há negar que a cidade de São Paulo, assim como o município do Rio de Janeiro, tem porte suficiente para justificar a existência de um tribunal de contas só para si. Não é absolutamente necessário, mas também não é desarrazoado.

O município de São Paulo tem mais habitantes que países como Portugal, por exemplo. Seu orçamento é o sétimo do país! Só perde para o da União e dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Paraná. Trata-se de um município, mas poderia muito bem ser tratado como um estado brasileiro, como referi aqui mesmo, na coluna Por que não repensar os municípios e ter uma administração mais eficiente?, de 8 de maio.

Vale dizer, com tamanha materialidade de recursos envolvidos, faz sentido tratar o TCM-SP como uma entidade sui generis, como um órgão cuja adequada estruturação possa ser considerada de menor importância? Essa interpretação reducionista da estrutura do TCM-SP é coerente e compatível com o vulto e complexidade da tarefa que lhe incumbe realizar?

Não seria muito mais coerente com a vontade da Constituição que ele tivesse conformação completa, que seu colegiado fosse enriquecido? Considerando o princípio da máxima efetividade constitucional, qual interpretação maximiza em concreto o princípio da simetria que a Constituição adota para a estruturação dos tribunais de contas? Qual interpretação maximiza a possibilidade de fiscalização mais completa e adequada das contas públicas?

Em seu voto, o relator das ADIs, ministro Gilmar Mendes, adotou o singelo raciocínio de que, se Constituição previu nove ministros para o TCU e sete para os TCEs, por que um tribunal municipal não poderia ter apenas cinco? Esqueceu-se o ministro de que não se trata de um município qualquer, mas do maior e mais complexo município do Brasil, com orçamento superior a 21 estados e ao Distrito Federal. Esse dado da realidade há de ter algum valor, afinal, o Direito é feito pelo homem para o homem. A realidade há que ser considerada, até porque é a realidade do gigantismo das cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro que justifica a existência de TCMs só para esses municípios.

Esqueceu-se também o relator da ação de que a redução de nove membros no TCU para sete nos TCEs foi feita explicitamente pelo texto constitucional, decorre de vontade expressa do constituinte originário, e não de mera interpretação. Se não houvesse essa redução expressa no texto constitucional federal, o princípio da simetria imporia aos estados que seus TCEs tivessem nove membros. Somente têm sete porque a Constituição Federal foi explícita nessa redução. Não tendo ela reduzido o número de membros dos TCMs de São Paulo e do Rio de Janeiro, não cabe a nenhuma outra autoridade legislativa ou judicial fazer essa redução, sob pena de violação ao princípio da simetria, como corretamente apontado pela Audicon na ADI 4.776.

Ao votar pela improcedência das ações, o relator também não enfrentou a questão central da falta das carreiras constitucionalmente estabelecidas dos conselheiros substitutos e do Ministério Público de Contas no TCM-SP.

Ora, se a Constituição quer que os recursos públicos de todos os cidadãos brasileiros sejam fiscalizados com a presença e atuação de membros do Ministério Público de Contas e de conselheiros substitutos, de perfil técnico, não só exercendo as atribuições próprias de seus cargos, como também fornecendo integrantes para o colegiado, como julgadores titulares, por que só em São Paulo, logo São Paulo, que poderia ser um país, essa fiscalização vai se dar de forma mutilada, canhestra, reduzida?

O que o STF estará fazendo com esse entendimento é colocar o cidadão do município de São Paulo em condição inferior de proteção do seu patrimônio que os demais cidadãos do país, que contam com um órgão com composição completa, em que os conselheiros de origem técnica fazem fundamental e necessário contraponto aos de origem política, embora francamente minoritários, em que os processos de contas recebem o parecer do Ministério Público de Contas, que se faz presente também às sessões de julgamento representando a sociedade.

Manter o TCM-SP reduzido, sem a presença de conselheiros de origem técnica e sem a atuação vibrante do Ministério Público de Contas, é enfraquecê-lo, é mutilá-lo, é dizer que ele importa menos que os outros, embora fiscalize mais recursos que a grande maioria dos demais tribunais de contas do país.

O pior é que esse julgamento ainda não concluído já está servindo de paradigma negativo para o TCM-RJ, que está tentando descaracterizar o Ministério Público de Contas, ao qual intencionalmente chama apenas de procuradoria especial, não obstante as evidentes competências de Ministério Público que lhe são atribuídas pela Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro. Pretende agora o TCM-RJ que a Câmara de Vereadores permita aos membros do MP de Contas que lá oficiam o exercício da advocacia, por meio de alteração na lei orgânica municipal. Assim, seriam procuradores-advogados, subordinados à presidência do órgão, sem nenhuma independência funcional, e não mais procuradores de contas, membros do Ministério Público de Contas que atuam com independência em defesa da sociedade, com evidente prejuízo para o cidadão carioca.

Se o julgamento do STF for concluído nesses termos e a iniciativa de retrocesso institucional vingar na Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, teremos, aí sim, uma situação deveras sui generis. Os cidadãos das duas maiores e mais importantes cidades brasileiras serão os únicos a contarem com a mais deficiente fiscalização entre todos os cidadãos do país. Justamente as cidades que deveriam ser mais fiscalizadas, porque gerem mais recursos, serão as menos fiscalizadas.

O cidadão de Osasco terá as contas de seu município fiscalizadas pelo Ministério Público de Contas e julgadas por um colegiado mais completo e qualificado que o cidadão de São Paulo. O cidadão de Niterói também terá seu patrimônio mais protegido que o cidadão carioca. Será que é essa a vontade do constituinte originário? Será que é essa a interpretação que confere a máxima efetividade à nossa Constituição?

Ora, se esse prejuízo para o cidadão paulistano e para o carioca prevalecer, melhor será para eles que esses TCMs sejam extintos e que a fiscalização desses municípios passe a ser feita pelos tribunais de contas estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, com composição completa e regular funcionamento das carreiras de conselheiro substituto e do Ministério Público de Contas.

Com oito votos proferidos pela improcedência da ação, consagrando a composição deficiente do TCM-SP, poder-se-ia imaginar que aquele órgão estaria obtendo uma retumbante vitória judicial, mas em verdade trata-se de uma vitória de Pirro, em que o pretenso vencedor nada ganha, só perde, e, pior, faz perder ainda mais o cidadão que deveria ser o mais importante nessa discussão.

O que estariam ganhando o TCM-SP e o cidadão paulistano com a ausência do Ministério Público de Contas e de dois conselheiros oriundos de carreiras técnicas? Evidentemente, nada. Ao contrário, perdem muito. Basta lançar os olhos para os tribunais de contas para observar o bem que lhes fazem um Ministério Público de Contas atuante, que provoca a discussão de temas importantes, e a presença de ministros e conselheiros de origem técnica. Basta lembrar que uma das mais importantes decisões do TCU para a história do país, senão a mais, teve origem numa representação do Ministério Público de Contas. Quem conhece o TCU bem sabe o peso e a importância dos votos do ministro oriundo da carreira de ministro substituto, assim como dos votos do ministro oriundo do Ministério Público de Contas.

Negar isso ao TCM e ao cidadão de São Paulo não faz jus à importância dessa cidade e à magnitude de seu orçamento e não fará esse órgão melhor. Ao contrário, significa manter o TCM-SP mutilado, manietado, incapaz de honrar o cidadão paulistano com um órgão à altura do que poderia dispor se contasse com o auxílio do Ministério Público de Contas e dos conselheiros substitutos, recrutados por concurso público, e com dois conselheiros técnicos oriundos dessas carreiras. Repita-se, se isso prevalecer, será melhor para o cidadão paulistano a extinção do órgão, com a assunção dessa função pelo Tribunal de Contas do Estado de São Paulo.

O julgamento no STF foi suspenso por um pedido de vista para que se avaliasse se, não havendo Ministério Público de Contas municipal oficiando junto ao TCM, seria o caso de o Ministério Público de Contas estadual, que já oficia perante o TCE, passar também a oficiar perante o TCM, mitigando a deficiência estrutural do órgão, suprindo pelo menos essa grave ausência que já perdura por 30 anos.

As ADIs já foram incluídas novamente em pauta. A retomada do julgamento está marcada para o dia 15 de agosto. Embora não seja comum uma expressiva mudança de votos após iniciado um julgamento no STF, vamos esperar que o tempo de reflexão propiciado pelo pedido de vista e quem sabe o sopesar de alguns dos aspectos aqui delineados possam permitir que o STF reoriente o curso dessa votação e contemple o cidadão de São Paulo com um Tribunal de Contas com composição plena.

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