As iniciativas não se restringem ao Congresso Nacional. Também nas Assembleias Legislativas ocorrem movimentos no sentido de conter os MPs. Exemplos recentes ou remotos não faltam.
Em 2017, a Assembleia Legislativa do Piauí, através da Emenda Constitucional 49, tentou restringir aos procuradores de Justiça a condição de elegibilidade ao cargo de Procurador-Geral de Justiça. A questão foi parar no Supremo Tribunal Federal e o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a eficácia da citada norma que alterou o artigo 142, § 1º da Constituição do Estado do Piauí.
Anteriormente, a Assembleia Legislativa de Pernambuco, através da Emenda Constitucional 20/2000, estabeleceu a possibilidade de destituição do procurador-geral de Justiça sem a autorização prévia do Colégio de Procuradores de Justiça. Também a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal e, por meio de decisão cautelar na ADI 2.436, a inovação legislativa foi afastada.
Em ambos os casos, as medidas judiciais propostas tiveram um mesmo fundamento: a assimetria da norma estadual em relação a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público – Lei 8.625/93.
Contudo, as alterações propostas invadem matéria reservada à Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.
O artigo 61, § 1º, II, d, da Constituição da República reserva à iniciativa privativa do presidente da República leis que disponham sobre organização do Ministério Público e sobre normas gerais para organização dos Ministérios Públicos estaduais. O artigo 128, § 5º, da CF estabelece que organização, atribuições e estatuto de cada Ministério Público serão estabelecidos em lei complementar de iniciativa do respectivo procurador-geral.
Editou o Congresso Nacional, com fulcro naquele comando constitucional, a Lei 8.625/1993 (LONMP), que estabelece normas gerais do Ministério Público dos estados e estabelece o estatuto básico de seus membros, de modo a conferir uniformidade básica entre os MPs, evitar disparidades institucionais e fortalecer o Ministério Público brasileiro.
Assim, cabe ao chefe de cada Ministério Público, na forma do artigo 128, § 5º, da Constituição da República, a iniciativa de lei complementar estadual que disponha sobre a organização, as atribuições e o estatuto correspondentes, atendido o regramento geral definido pela Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. A esse respeito, assinala Hugo Nigro Mazzilli:
“Leis complementares da União e dos Estados, cuja iniciativa agora também é facultada aos respectivos procuradores-gerais estabelecerão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público (CF, art. 61, caput, e 128, § 5º).
Não se esqueça de que cabe ao presidente da República a iniciativa exclusiva da lei de organização do Ministério Público da União e da lei que fixará normas gerais para a organização do Ministério da União e da lei que fixará normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados, do Distrito Federal e Territórios (artigo 61, § 1º, II, d).
É preciso vencer a contradição, até certo ponto apenas aparente, entre esses dispositivos.
O procurador-geral da República terá a iniciativa de leis na forma e nos casos previstos na Constituição de 1988 (artigo 61, caput); pelo princípio da simetria, os procuradores-gerais de justiça dos Estados também terão a iniciativa de leis, nas hipóteses correspondentes. Haverá uma lei federal, de iniciativa do presidente da República, que estabelecerá: a) a organização do Ministério Público da União (artigo 61, § 1º, II, d); b) normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal (artigo 61, § 1º, II, d, segunda parte).
Na União, haverá ainda uma lei complementar, cuja iniciativa é facultada ao procurador-geral da República (e, por tanto, é de iniciativa concorrente do presidente da República) que estabelecerá a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União (artigo 128, § 5º). Nos estados, haverá leis complementares, de iniciativa facultada aos seus procuradores-gerais (e, igualmente, de iniciativa concorrente dos governadores), que farão o mesmo com os Ministérios Públicos locais (ainda o artigo 128, § 5º).
Ora, a iniciativa presidencial exclusiva é reservada para uma lei nacional que fixará apenas as normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal. Assim, leis complementares da União e dos estados, cuja iniciativa é facultada aos respectivos procuradores-gerais, minudenciarão a organização, as atribuições e o estatuto de cada Ministério Público, obedecidas as normas gerais fixadas na lei federal.
Segundo o parágrafo único do artigo 96 da Carta de 1969, com a Emenda 7/77, era bem mais restrito o campo reservado à lei complementar nacional do Ministério Público; destinava-se esta apenas à fixação de normas gerais a serem adotadas na organização do Ministério Público estadual, observado o disposto no § 1º do artigo 95 (que cuidava do concurso de ingresso, da estabilidade e da inamovibilidade relativa).
O novo texto constitucional, entretanto, além de conferir à lei federal a explicitação de normas gerais de organização do Ministério Público dos estados e do Distrito Federal (artigos 21, XIII, 22, XVII, 48, IX, 61, § 1º, II, d, 68, § 1º, I), ainda prevê possa a lei complementar respectiva estabelecer-lhe o respectivo estatuto e fixar-lhe atribuições. Conquanto em tese a legislação processual caiba à União (CF, artigo 22, I, ressalvada a exceção do seu parágrafo único, bem como a matéria procedimental de competência concorrente dos Estados, conforme artigo 24, X e XI), o permissivo constitucional que faculta à legislação complementar local estipular normas de atribuição do Ministério Público acabará por permitir, sem dúvida, que a legislação local disponha sobre novas áreas de atuação, inclusive conferindo-lhe, por exemplo, hipótese de intervenção processual (como a defesa de deficientes, por exemplo)”.[1]
Deste modo, nos Ministérios Públicos estaduais coexistem dois regimes de organização: o da Lei Orgânica Nacional, que estatui normas gerais, e o da lei orgânica do estado, que delimita, em lei complementar de iniciativa do procurador-geral de Justiça, o estatuto de cada Ministério Público.
O Supremo Tribunal Federal já decidiu pela inconstitucionalidade de lei estadual que dispunha sobre matéria regulada pela LONMP, em razão do caráter nacional desta última e que se impõe aos estados-membros:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. EXTENSÃO DO AUXÍLIO-MORADIA AOS MEMBROS INATIVOS DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL.
INCONSTITUCIONALIDADE FORMAL. A Lei 8.625/1993 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (LONMP) –, ao traçar as normas gerais sobre a remuneração no âmbito do Ministério Público, não prevê o pagamento de auxílio-moradia para membros aposentados do parquet. Como a LONMP regula de modo geral as normas referentes aos membros do Ministério Público e não estende o auxílio-moradia aos membros aposentados, conclui-se que o dispositivo em análise viola o artigo 127, § 2º, da Carta Magna, pois regula matéria própria da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público e em desacordo com esta.
(…)
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.
(ADI 3783, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/03/2011, DJe-107 DIVULG 03-06-2011 PUBLIC 06-06-2011 EMENT VOL-02537-01 PP-00004 RTJ VOL-00224-01 PP-00318 RT v. 100, n. 910, 2011, p. 355-363)”
Destaque-se os ensinamentos de Emerson Garcia: “no âmbito estadual, os Procuradores-Gerais de Justiça terão a iniciativa para a edição das respectivas leis complementares (artigo 128, § 5º, da CF/1988), observadas às normas gerais estatuídas pela Lei Orgânica Nacional”.
Isto porque o artigo 24, § 2º, da Constituição da República, prevê que a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
Segundo Tércio Sampaio Ferraz, “a competência suplementar não é para a edição de legislação concorrente, mas para a edição de legislação decorrente, que é uma legislação de regulamentação, portanto, de normas gerais que regulam situações já configuradas na legislação federal e às quais não se aplica o disposto no § 4º (ineficácia por superveniência de legislação federal), posto que com elas não concorrem (se concorrem, podem ser declaradas inconstitucionais). É, pois, competência que se exerce à luz de normas gerais da União e não na falta delas”.[2]
O ministro Celso de Mello, quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.903/PB, afirmou que:
“é evidente que não assiste, ao Estado-Membro, a possibilidade constitucional de contrariar, no domínio da legislação concorrente, as diretrizes gerais que a União Federal estabelecer em sede de legislação nacional de princípios, pois, tratando-se de temas objeto da competência concorrente a que alude a Carta Política, há uma precisa delimitação jurídica que bem discrimina o âmbito material da intervenção normativa de cada uma dessas pessoas políticas, reservando-se, à União Federal, a competência para legislar sobre normas gerais (CF, art. 24, § 1º), e atribuindo-se ao Estado-membro, o exercício da ‘competência suplementar’ (CF, art. 24, § 2º, in fine).
Cabe mencionar, ademais, as decisões proferidas nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 1.245, 2.084, 2.396, 2.667, 5.163 e Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.700; nas quais, de igual modo, se analisou controvérsia análoga a presente – normas locais em antinomia com regras gerais definidas pela União.
Os exemplos do Piauí e de Pernambuco mostram, sem sombra de dúvida, que a Lei Orgânica Nacional, longe de constituir um estorvo que impede o aperfeiçoamento dos Ministério Públicos, representa uma garantia para a instituição e, em última análise, para a sociedade. Abriga e protege contra as tentativas de desfiguração que, ora e outra, emergem contra o Ministério Público.
Infelizmente, algumas ações podem por em risco essas garantias institucionais. Isso ocorre quando o próprio Ministério Público propõe alterações nas normas estaduais fora do escopo da Lei Orgânica Nacional ou quando se aceita que, mesmo sem ter a iniciativa legislativa para tal, deputados estaduais modifiquem pontos da Lei Orgânica local sem que tal mudança tenha surgido no âmbito da instituição.
Um e outro caso representam verdadeiros cavalos de Tróia em um momento em que várias forças políticas se mobilizam contra o Ministério Público. Como advertia Frei Caneca, Patrono de nossa República: “Cautela, união, valor constante. Andar, assim, é bom andar”.
[1] 3 MAZZILLI, Hugo Nigro. O Ministério Público na Constituição de 1988. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 73-75.
[2] Ferraz Junior, Tércio Sampaio. In Normas Gerais e Competência Concorrente. Uma exegese do art. 24 da Constituição Federal.